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Os Maias - Um título que se justifica pela existência de quatro gerações da mesma família


[Caetano da Maia] * [Afonso da Maia] * [Pedro da Maia] * [Carlos da Maia]



Caetano da Maia

  • Pai de Afonso

    • Fidalgo antigo e defensor dos valores do absolutismo (fiel ao infante D. Miguel), odiava os ideais da Revolução Francesa1;

    • Doente1;

    • Intolerante em relação às tendências revolucionárias do filho2;

    • Facilmente influenciável em relação aos elementos femininos da casa3;

    • Beato4.

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Afonso da Maia


Na sua juventude
    • Jacobino, maçónico e ateu, por oposição ao pai, conservador e religioso5;

    • Inadaptado no seu "exílio" em Santa Olávia, pede a bênção ao pai e dinheiro para partir para Inglaterra6;

    • Em Inglaterra, rapidamente esquece os ideais revolucionários7;

    • Com a morte do pai, regressa a Portugal, casando-se após o luto, e revelando-se antimiguelista8;

    • Devido às suas convicções e manifestações políticas, a sua casa, em Benfica, é invadida e vasculhada pela polícia, o que o leva a novo exílio em Inglaterra9;

    • Descrença do liberalismo10;

    • Interesse pela cultura inglesa11;

    • Preocupado com a infelicidade da mulher12;

    • Triste e indignado com a educação que sua mulher impusera para seu filho Pedro13;

    • Afectuoso em ralação a sua mulher14;

    • Invadido por um ateísmo rancoroso15;

  • No tempo em que Pedro é já adulto

    • Oponente em relação à ligação de Pedro com Maria Monforte16;

    • Perante a hipótese da chegada do filho para uma possível reconciliação, parte para Santa Olávia17;

    • Na desgraça do filho, a ternura de pai sobrepõe-se à indignação do escândalo e do vexame e à sua enorme cólera18;

    • A presença do neto fá-lo esquecer a agonia do filho e a vergonha doméstica19;

    • Parece deixar-se abater com a morte do filho20;

  • Após a morte do filho

    • Retrato físico21;

    • Responsável pela educação de Carlos e adepto do método inglês22;

    • Preocupado em tirar a sua neta a Maria Monforte23;

    • Favorável às touradas e não às corridas de cavalos à inglesa24;

    • Pródigo na caridade25;

    • Apoiante de Carlos na compra da Quinta dos Olivais a Craft26:

    • Apenas três conselhos para uma revista, mais um projecto de Carlos e de Ega27;

    • Surpreendido, transfigurado e esmagado pela revelação da carta de Maria Monforte28;

    • Escandalizado, angustiado, horrorizado com a falta de escrúpulos do neto29;

    • «Lívido, mudo, grande, espectral», como um fantasma, à chegada de Carlos após o incesto30;

    • Não resiste à tragédia e morre31.

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Pedro da Maia


  • Em criança

    • Em Inglaterra, recebe uma educação religiosa tipicamente portuguesa e provinciana32;

    • Um fraco: medroso e cobarde33;

  • Quase um homem e adulto

    • Pequenino e nervoso sem raça e a força dos Maias34;

    • Semelhante a um belo árabe35;

    • Alma indiferente, meio adormecida e passiva36;

    • «Era em tudo um fraco.»37;

    • Um único sentimento vivo: a paixão pela mãe38;

    • Afirmação pela bebida e um bastardozinho aos 19 anos39;

    • Arrebatamentos de loucura com a morte da mãe40;

    • Vida dissipada, turbulenta e de estroinice banal41;

    • Devoto42;

    • Parecido com um avô da mãe, que se suicidara enforcado43;

    • Amor à Romeu44;

    • Desprezo pela opinião do pai, casando-se com a «negreira»: hybris (desafio)45;

    • Disposto a restabelecer a relação com o pai, aproveitando a gravidez de Maria Monforte46;

    • Ferido com a partida do pai para Santa Olávia, não lhe participa o nascimento da filha47;

    • Atraiçoado por Maria Monforte (adultério), procura o refúgio do pai48;

    • Suicídio49.

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Carlos da Maia


  • Em bebé

    • Primeira aparição, em casa do avô, depois que Maria Monforte fugiu com Tancredo, o italiano50;

  • Em criança

    • Parecenças físicas com o pai, Pedro; «Mas há-de ser muito mais homem!»51;

    • É o Carlinhos quem governa; vivendo em Portugal, em Santa Olávia, tem uma educação segundo o sistema inglês, ao contrário de seu pai que, tendo vivido em Inglaterra, tivera uma educação tipicamente portuguesa e provinciana52;

    • Carlos não gosta do Eusebiozinho53;

    • Sensibilidade de Carlos face à pequena corujazinha que se perde do seu ninho, preocupado com inquietação da mãe coruja, ao contrário do que aconteceu com a sua própria mãe, Maria Monforte54;

    • Como se revela a sua vocação pela Medicina55;

  • Na sua Juventude

    • Matrícula em Medicina com entusiasmo56;

    • «Paços de Celas», luxos raros na Academia57;

    • Leitor de Proudhon, Augusto Comte e Herbet Spencer, conquista a familiaridade dos revolucionários58;

    • Como Carlos passava as suas férias59;

    • Relação adulterina com a mulher de um empregado do Governo Civil, em Coimbra60;

    • Arrependimento e rompimento desta relação ao ver o marido a passear com o filhinho61;

    • Formatura de Carlos e sua longa viagem pela Europa62;

  • Carlos adulto

    • Na parte final da viagem, despacho de caixas de livros e outras de instrumentos e aparelhos destinados à sua biblioteca e à montagem dum laboratório63;

    • Retrato físico de Carlos adulto: «a fisionomia de belo cavaleiro da Renascença.»64;

    • Planos de Carlos65;

    • Caracterização através dos espaços onde deverá exercer a sua actividade profissional:

      - Um consultório muito sui generis66;

      - Um laboratório igualmente sui generis67;

    • Carlos segundo a perspectiva de Ega68;

    • Muito solícito para com a primeira doente grave69;

    • A carreira médica; a primeira libra que, pelo trabalho, ganhava um homem da sua família; planos para a escrita de um livro sobre medicina e a criação de uma revista70;

    • Interesse pela Gouvarinho; enredado na relação amorosa com a condessa: vagamente arrependido e ansioso por se ver livre dela; rompimento violento desta relação71;

    • Crítico em relação aos ares científicos do realismo72;

    • «Modelo» venerado por Dâmaso73;

    • Um diletante que não é levado a sério pelos colegas de profissão74;

    • Sorte ao jogo: mau prenúncio segundo o ditado popular75;

    • Recordação do passado diante daquilo que fora o seu consultório, após o regresso da sua longa viagem76;

    • Tal como Ega, um romântico77;

    • Um estóico rendido ao «fatalismo muçulmano»78.

  • Nota: para evitar ser redundante, não incluo, neste passo, tudo quanto possa ajudar a compreender o carácter desta personagem e que esteja directamente relacionado com a intriga principal, na qual, aliás, ao lado de Maria Eduarda, é protagonista. Os interessados poderão consultar as Sequências Narrativas da Intriga Principal.

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Extractos da Obra


1 «Caetano da Maia era um português antigo e fiel que se benzia ao nome de Robespierre, e que, na sua apatia de fidalgo beato e doente, tinha só um sentimento vivo - o horror, o ódio ao Jacobino, a quem atribuía todos os males, os da pátria e os seus, desde a perda das colónias até às crises da sua gota. Para extirpar da nação o Jacobino, dera ele o seu amor ao senhor infante D. Miguel, messias forte e restaurador providencial... E ter justamente por filho um jacobino, parecia-lhe uma provação comparável só às de Job!» (p. 13)

2 «A gota cruel, cravando-o na poltrona, não lhe deixou espancar o mação, com a sua bengala da Índia, à lei de bom pai português: mas decidiu expulsá-lo de sua casa, sem mesada e sem benção, renegado como um bastardo!» (pp. 13/14)

3 «As lágrimas da mamã amoleceram-no; sobretudo as razões de uma cunhada de sua mulher, que vivia com eles em Benfica, senhora irlandesa de alta instrução, Minerva respeitada e tutelar, que ensinara inglês ao menino e o adorava como um bebé. Caetano da Maia limitou-se a desterrar o filho para a Quinta de Santa Olávia [...]» (p. 14)

4 [...] «mas não cessou de chorar no seio dos padres que vinham a Benfica a desgraça de sua casa. E esses santos lá o consolavam, afirmando-lhe que Deus, o velho Deus de Ourique, não permitiria jamais que um Maia pactuasse com Belzebu e com a Revolução! E, à falta de Deus-Padre, lá estava Nossa Senhora da Soledade, padroeira da casa e madrinha do menino, para fazer o milagre.

E o milagre fez-se. Meses depois, o jacobino, o Marat, voltava de Santa Olávia um pouco contrito, enfastiado sobretudo daquela solidão [...] Vinha pedir ao pai a bênção, e alguns mil cruzados, para ir para Inglaterra [...] O pai beijou-o, todo e lágrimas, acedeu a tudo fervorosamente, vendo ali a evidente, a gloriosa intercessão de Nossa Senhora da Soledade!» (p. 14)

5 « O antepassado, cujos olhos se enchiam agora de uma luz de ternura diante das suas rosas, e que ao canto do lume relia com gosto o seu Guizot, fora, na opinião de seu pai, algum tempo, o mais feroz jacobino de Portugal! E todavia, o furor revolucionário do pobre moço consistira em ler Rousseau, Volney, Helvécio, e a «Enciclopédia»; em atirar foguetes de lágrimas à Constituição; e ir, de chapéu à liberal e alta gravata azul, recitando pelas lojas maçónicas odes abomináveis ao Supremo Arquitecto do Universo.» (p. 13)

6 «E o milagre fez-se. Meses depois, o jacobino, o Marat, voltava de Santa Olávia um pouco contrito, enfastiado sobretudo daquela solidão [...] Vinha pedir ao pai a bênção, e alguns mil cruzados, para ir para Inglaterra [...]» (p. 14)

7 «Afonso partiu. Era na Primavera - e a Inglaterra toda verde, os seus parques de luxo, os copiosos confortos, a harmonia permanente dos seus nobres costumes, aquela raça tão séria e tão forte - encantaram-no. Bem depressa esqueceu o seu ódio aos sorumbáticos padres da Congregação, as horas ardentes passadas no café dos Remolares a recitar Mirabeau, e a república que quisera fundar, clássica e voltairiana, com um triunvirato de Cipiões e festas ao Ente Supremo. Durante os dias da Abrilada estava ele nas corridas de Epson, no alto de uma sege de posta, com um grande nariz postiço, dando hurras medonhos - bem indiferente aos seus irmãos de Maçonaria, que a essas horas o senhor infante espicaçava a chuço, pelas vielas do Bairro Alto, no seu rijo cavalo de Alter.» (pp. 14/15)

8 «Mas não esquecia a Inglaterra: - e tornava-lha mais apetecida essa Lisboa miguelista que ele via, desordenada como uma Tunes barbaresca; essa rude conjuração apostólica de frades e boleeiros, atroando tabernas e capelas; essa plebe beata, suja e feroz, rolando do lausperene para o curro, e ansiando tumultuosamente pelo príncipe que lhe encarnava tão bem os vícios e as paixões...

Este espectáculo indignava Afonso da Maia [...] O que não tolerava era o mundo de Queluz, bestial e sórdido.» (p.15)

9 «Tais palavras, apenas soltas, voavam a Queluz. E quando se reuniram as Cortes Gerais, a polícia invadiu Benfica, «a procurar papéis e armas escondida».

Afonso da Maia, com o seu filho nos braços e a mulher tremendo ao lado - viu, impassivelmente e sem uma palavra, a busca, as gavetas arrombadas pela coronha das escopetas, as mãos sujas do malsim rebuscando os colchões do seu leito. [...] e daí a semanas, com a mulher e com o filho, Afonso da Maia partia para Inglaterra e para o exílio.» (pp. 15/16)

10 «Ao princípio os emigrados liberais, Palmela e a gente do «Belfast», ainda o vieram desassossegar e consumir. A sua alma recta não tardou a protestar vendo a separação de castas, de jerarquias, mantidas ali na terra estranha entre os vencidos da mesma ideia - os fidalgos e os desembargadores vivendo no luxo de Londres à forra, a a plebe, o exército, depois dos padecimentos da Galiza, sucumbindo agora à fome, à vérmina, à febre nos barracões de Plymouth. Teve logo conflitos com os chefes liberais; foi acusado de vintista e demagogo; descreu por fim do liberalismo. Isolou-se então - sem fechar todavia a sua bolsa, donde saíam às cinquenta, às cem moedas... Mas quando a primeira expedição partiu, e pouco a pouco se foram vazando os depósitos de emigrados, respirou enfim - e, como ele disse, pela primeira vez lhe soube bem o ar de Inglaterra!» (p. 16)

11 «Teve relações; estudou a nobre e rica literatura inglesa; interessou-se, como convinha a um fidalgo em Inglaterra, pela cultura, pela cria dos cavalos, pela prática da caridade - e pensava com prazer em ficar ali para sempre naquela paz e naquela ordem.» (p. 17)

12 «Somente Afonso sentia que sua mulher não era feliz. Pensativa e triste, tossia sempre pelas salas. À noite sentava-se ao fogão, suspirava e ficava calada...

Pobre senhora! A nostalgia do país, da parentela, das igrejas, ia-a minando. Verdadeira lisboeta, pequenina e trigueira, sem se queixar e sorrindo palidamente, tinha vivido desde que chegara num ódio surdo àquela terra de hereges e ao seu idioma bárbaro: sempre arrepiada, abafada em peles, olhando com pavor os céus fuscos ou a neve nas árvores, o seu coração não estivera nunca ali, mas longe, em Lisboa, nos adros, nos bairros batidos do sol. A sua devoção (a devoção dos Runas!) sempre grande, exaltara-se, exacerbara-se àquela hostilidade ambiente que ela sentia em redor contra os «papistas». E só se satisfazia à noite, indo refugiar-se no sótão com as criadas portuguesas, para rezar o terço agachada numa esteira - gozando ali, nesse murmúrio de ave-marias em país protestante, o encanto de uma conjuração católica!

Odiando tudo o que era inglês, não consentira que seu filho, o Pedrinho, fosse estudar ao colégio de Richmond. Debalde Afonso lhe provou que era um colégio católico. Não queria: aquele catolicismo sem romarias, sem fogueiras pelo S. João, sem imagens do Senhor dos Passos, sem frades nas ruas - não lhe parecia a religião. A alma do seu Pedrinho não abandonaria ela à heresia; - e para o educar mandou vir de Lisboa o padre Vasques, capelão do conde de Runa.» (pp. 17/18)

13 «O Vasques ensinava-lhe as declinações latinas, sobretudo a cartilha: e a face de Afonso da Maia cobria-se de tristeza quando ao voltar de alguma caçada ou das ruas de Londres, entre o forte rumor da vida livre - ouvia no quarto dos estudos a voz dormente do reverendo, perguntando como do fundo de uma treva:

- Quantos são os inimigos da alma?

E o pequeno, mais dormente, lá ia murmurando:

- Três. Mundo, Diabo e Carne...

Pobre Pedrinho! Inimigo da sua alma só havia ali o reverendo Vasques, obeso e sórdido, arrotando do fundo da sua poltrona, com o lenço do rapé sobre o joelho...

Às vezes Afonso, indignado, vinha ao quarto, interrompia a doutrina, agarrava a mão do Pedrinho - para o levar, correr com ele sob as árvores do Tamisa, dissipar-lhe na grande luz do rio o pesadume crasso da cartilha. Mas a mamã acudia de dentro, em terror, a abafá-lo numa grande manta: depois, lá fora, o menino acostumado ao colo das criadas e aos recantos estofados, tinha medo do vento e das árvores: e pouco a pouco, num passo desconsolado, os dois iam pisando em silêncio as folhas secas - o filho todo acobardado das sombras do bosque vivo, o pai vergando os ombros, pensativo, triste daquela fraqueza do filho...» (p. 18)

14 «Por esse tempo veio um grave desgosto à casa: a tia Fanny morreu, de uma pneumonia, nos frios de Março; e isto enegreceu mais a melancolia de Maria Eduarda, que a amava muito também - por ser irlandesa e católica.

Para a distrair, Afonso levou-a para a Itália, para uma deliciosa villa ao pé de Roma. Aí não lhe faltava o sol: tinha-o pontual e generoso todas as manhãs, banhando largamente os terraços, dourando loureirais e mirtos. E depois, lá em baixo, entre mármores, estava a coisa mais preciosa e santa - o Papa!

Mas a triste senhora continuava a choramingar. O que realmente apetecia era Lisboa, as suas novenas, os santos devotos do seu bairro, as procissões passando num rumor de pachorrenta penitência por tardes de sol e de poeira...

Foi necessário calmá-la, voltar a Benfica.» (p. 19)

15 «[...] O padre Vasques, apoderando-se daquela alma aterrada para quem Deus era um amo feroz, tornara-se o grande homem da casa. De resto Afonso encontrava em cada momento pelos corredores outras figuras canónicas, de capote e solidéu, em que reconhecia antigos franciscanos, ou algum magro capuchinho parasitando no bairro; a casa tinha um bafio de sacristia; e dos quartos da senhora vinha constantemente, dolente e vago, um rumor de ladainha.

Todos aqueles santos varões comiam, bebiam o seu vinho do Porto na copa. As contas do administrador apareciam sobrecarregadas com mesadas piedosas que dava a senhora: um frei Patrício surripiara-lhe duzentas missas de cruzado por alma do senhor D. José I...

Esta carolice que o cercava ia lançando Afonso num ateísmo rancoroso: quereria as igrejas fechadas como os mosteiros, as imagens escavacadas a machado, uma matança de reverendos... Quando sentia na casa a voz das rezas, fugia, ia para o fundo da quinta, sob as trepadeiras do mirante, ler o seu Voltaire: ou então partia a desabafar com o seu velho amigo, o coronel Sequeira, que vivia numa quinta a Queluz.

[...]

- Esta educação faz atletas mas não faz cristãos. Já o tenho dito...

- Já o tem dito, abade, já! - exclamou Afonso alegremente. - Diz-mo todas as semanas... Quer você saber, Vilaça? O nosso Custódio mata-me o bicho do ouvido para que eu ensine a cartilha ao rapaz. A cartilha!...

Custódio ficou um momento a olhar Afonso, com uma face desconsolada e a caixa de rapé aberta na mão; a irreligião daquele velho fidalgo, senhor de quase toda a freguesia, era uma das suas dores.» (pp. 19/20, 66/67)

16 «Uma noite que o coronel Sequeira, à mesa do whist, contava que vira Maria Monforte e Pedro passeando a cavalo, «ambos muito bem e muito distingués», Afonso, depois de um silêncio, disse com ar enfastiado:

- Enfim, todos os rapazes têm as suas amantes... Os costumes são assim, a vida é assim, e seria absurdo querer reprimir tais coisas. Mas essa mulher com um pai desses, mesmo para amante acho má.

O Vilaça suspendeu o baralhar das cartas, e ajeitando os óculos de oiro exclamou com espanto:

- Amante! Mas a rapariga é solteira, meu senhor, é uma menina honesta!...

Afonso da Maia enchia o seu cachimbo; as mãos começaram a tremer-lhe; e voltando-se para o administrador, numa voz que tremia um pouco também:

- O Vilaça decerto não supõe que meu filho queira casar com essa criatura...

[...]

- Meu pai - disse, esforçando-se por ser claro e decidido - venho pedir-lhe licença para casar com uma senhora que se chama Maria Monforte.

Afonso pousou o livro aberto sobre os joelhos, e numa voz grave e lenta:

- Não me tinhas falado disso... Creio que é a filha de um assassino, de um negreiro, a quem chamam também a «negreira»...

- Meu pai!...

Afonso ergueu-se diante dele, rígido e inexorável como a encarnação mesma da honra doméstica.

- Que tens a dizer-me mais? Fazes-me corar de vergonha.» (pp. 27/28, 30)

17 «Antes de partir, porém, escreveu ao pai.

Fora um conselho, quase uma exigência de Maria. [...]

Com efeito, apenas desembarcou, correu num trem a Benfica. Dois dias antes o pai partira para Santa Olávia: isto pareceu-lhe uma desfeita - e feriu-o acerbamente.

Fez-se então entre o pai e o filho uma grande separação.» (pp. 33/34)

18 «Uma sombria tarde de Dezembro, de grande chuva, Afonso da Maia estava no seu escritório lendo, quando a porta se abriu violentamente, e, alçando os olhos do livro, viu Pedro diante de si. Vinha todo enlameado, desalinhado,, e na sua face lívida, sob os cabelos revoltos, luzia um olhar de loucura. O velho ergueu-se aterrado. E Pedro sem uma palavra atirou-se aos braços do pai, rompeu a chorar perdidamente.

- Pedro! Que sucedeu, filho?

[...]

- Estive fora de Lisboa dois dias... Voltei esta manhã... A Maria tinha fugido de casa com a pequena... Partiu com um homem, um italiano... E aqui estou!

Afonso da Maia ficou diante do filho, quedo, mudo, como uma figura de pedra; e a sua bela face, onde todo o sangue subira, enchia-se, pouco a pouco, de uma grande cólera. Viu, num relance, o escândalo, a cidade galhofando, as compaixões, o seu nome pela lama. E era aquele filho que, desprezando a sua autoridade, ligando-se a essa criaturaz, estragara o sangue da raça, cobria agora a sua casa de vexame. E ali estava, ali jazia sem um grito, sem um furor, um arranque brutal de homem traído! Vinha atirar-se para um sofá, chorando miseravelmente! Isto indignou-o, e rompeu a passear pela sala, rígido e áspero, cerrando os lábios para que não lhe escapassem palavras de ira e de injúria que lhe enchiam o peito em tumulto... - Mas era pai: ouvia, ali ao seu lado, aquele soluçar de funda dor; via tremer aquele pobre corpo desgraçado que ele outrora embalara nos braços... Parou junto de Pedro, tomou-lhe gravemente a cabeça entre as mãos, e beijou-o na testa, uma vez, outra vez, como se ele fosse ainda criança, restituindo-lhe ali e para sempre a sua ternura inteira.» (pp. 44/45)

19 «O velho correu, logo; e daí a pouco aparecia, erguendo nos braços o pequeno, na sua longa capa branca de franjas e a sua touca de rendas. Era gordo, de olhos muito negros, com uma adorável bochecha fresca e cor-de-rosa. Todo ele ria, grulhando, agitando o seu guizo de prata. A ama não passou da porta tristonha, com os olhos no tapete e uma trouxazinha na mão.

Afonso sentou-se lentamente na sua poltrona, e acomodou o neto no colo. Os olhos enchiam-se-lhe de uma bela luz de ternura; parecia esquecer a agonia do filho, a vergonha doméstica; agora só havia ali aquela facezinha tenra, que se lhe babava nos braços...»

20 «[...] o próprio encanto de Santa Olávia, o fresco cantar das águas vivas por tanques e repuxos, vinha agora com a cadência saudosa de um choro. E Vilaça foi encontrar Afonso na Livraria, com as janelas cerradas ao lindo sol de Inverno, caído para uma poltrona, a face cavada sob os cabelos crescidos e brancos, as mãos magras e ociosas sobre os joelhos.

O procurador veio dizer para Lisboa que o velho não durava um ano.»

21 «Afonso era um pouco baixo, maciço, de ombros quadrados e fortes: e com a sua face larga de nariz aquilino, a pele corada, quase vermelha, o cabelo branco todo cortado à escovinha, e barba de neve e longa - lembrava, como dizia Carlos, um varão esforçado das idades heróicas, um D. Duarte de Meneses ou um Afonso de Albuquerque.» (p. 12)

22 «Mas o Teixeira, muito grave, muito sério, desiludiu o senhor administrador. Mimos e mais mimos, dizia Sua Senhoria? Coitadinho dele, que tinha sido educado com uma vara de ferro! Se ele fosse a contar ao sr. Vilaça! Não tinha a criança cinco anos já dormia num quarto só, sem lamparina; e todas as manhãs zás, para dentro de uma tina de água fria, às vezes a gear lá fora... E outras barbaridades. Se não se soubesse a grande paixão do avô pela criança, havia de se dizer que a queria morta. Deus lhe perdoe, ele, Teixeira, chegara a pensá-lo... Mas não, parece que era sistema inglês! Deixava-o correr, cair, trepar às árvores, molhar-se, apanhar soalheiras, como um folho de caseiro. E depois o rigor com as comidas! E depois o rigor com as comidas! Só a certas horas e de certas coisas... E às vezes a criancinha, com os olhos abertos, a aguar! Muita, muita dureza.

[...]

- Sabe Vossa Senhoria, apenas veio o mestre inglês, o que lhe ensinou? A remar! A remar, sr. Vilaça, como um barqueiro! Sem contar o trapézio, e as habilidades de palhaço;

[...]

Afonso apoiava-o, gravemente. O Brown estava na verdade. O latim era um luxo de erudito... Nada mais absurdo que começar a ensinar a uma criança numa língua morta quem foi Fábio, rei dos Sabinos, o caso dos Gracos, e outros negócios de uma nação extinta, deixando-o ao mesmo tempo sem saber o que é a chuva que o molha, como se faz o pão que come, e todas as outras coisas do universo em que vive...» (pp. 57/58, 63)

23 «- Vossa Excelência sabe que apareceu a Monforte?

[...]

- Em Lisboa?

- Não senhor, em Paris. Viu-a lá o Alencar, esse rapaz que escreve, e que era muito de Arroios... Esteve até em casa dela.

E ficaram calados. Havia anos que entre eles se não pronunciara o nome de Maria Monforte. Ao princípio, quando se retirara para Santa Olávia, a preocupação ardente de Afonso da Maia fora tirar-lhe a filha que ela levara.» (p. 78)

24 «E o Dâmaso apelou logo para o marquês. Não era verdade, como ele estivera dizendo ao sr. Afonso da Maia, que iam ser as melhores corridas que se tinham feito em Lisboa?

[...]

- Pois não é verdade, sr. Afonso da Maia?

O velho sorriu, amaciando o seu gato.

- O verdadeiro patriotismo, talvez - disse ele - seria, em lugar de corridas, fazer uma boa tourada.

Dâmaso levou as mãos à cabeça. Uma tourada! Então o sr. Afonso da Maia preferia toiros a corridas de cavalos? O sr. Afonso da Maia, um inglês!...

- Um simples beirão, ser. Salcede, um simples beirão, e que faz gosto nisso; se habitei a Inglaterra é que o meu rei, que era então, me pôs fora do meu país... Pois é verdade, tenho esse fraco português, prefiro toiros. Cada raça possui o seu sport próprio, e o nosso é o toiro: o toiro com muito sol, ar de dia santo, água fresca, e foguetes... Mas sabe o sr. Salcede qual é a importância da tourada? É ser uma grande escola de força, de coragem e de destreza... Em Portugal não instituição que tenha uma importância igual à tourada de curiosos. E acredite uma coisa: é que se nesta triste geração moderna ainda há em Lisboa uns rapazes com certo músculo, a espinha direita, e capazes de dar um bom soco, deve-se isso ao toiro e à tourada de curiosos...» (pp. 307/308)

25 «[...] Ele mesmo costumava dizer que era simplesmente um egoísta: - mas nunca, como agora na velhice, as generosidades do seu coração tinham sido tão profundas e largas. Parte do seu rendimento ia-se-lhe por entre os dedos, esparsamente, numa caridade enternecida. Cada vez amava mais o que era pobre e o que é fraco. Em Santa Olávia, as crianças corriam para ele, dos portais, sentindo-o acariciador e paciente. Tudo o que vive lhe merecia amor - e era dos que não pisam um formigueiro e se compadecem da sede de uma planta.

[...]

Carlos, rindo, arrastou-o [o marquês] pelo corredor. E de repente, ao entrarem na antecâmara, deram com Afonso falando a uma mulher carregada de luto, que lhe beijava a mão, meio de joelhos, sufocada de lágrimas: e ao lado outra mulher, com os olhos turvos de água também, embalava dentro do xale uma criancinha que parecia doente e gemia. Carlos parara embaraçado; o marquês instintivamente levou a mão à algibeira. Mas o velho, assim surpreendido na sua caridade, foi logo empurrando as duas mulheres para a escada: elas desciam, encolhidas, abençoando-o, num murmúrio de soluços; e ele, voltando-se para Carlos, quase se desculpou numa voz que ainda tremia:

- Sempre estes peditórios... Caso bem triste todavia... E o que é pior, é que por mais que se dê nunca se dá bastante. Mundo muito mal feito, marquês.» (pp. 12, 311)

26 «Afonso da Maia aprovou plenamente a compra das colecções do Craft. «É um valor», disse ele ao Vilaça, «e acabamos de encher com boa arte Santa Olávia e o Ramalhete.»» (p. 415)

27 «- [...] Que têm vocês feito?

- Mil coisas! - acudiu Ega alegremente. - Planos, ideias, títulos... Temos sobretudo o projecto de uma revista, um aparelho de educação superior, que vamos montar com uma força de mil cavalos! ...

[...] E Afonso escutava, encantado com aquelas belas ambições e luta, querendo partilhar da grande obra, como sócio capitalista... Mas Ega entendia que o sr. Afonso da Maia devia descer à arena, lançar também a palavra do seu saber e da sua experiência. Então o velho riu. O quê! compor prosa, ele, que hesitava para traçar uma carta ao feitor? De resto, o que teria a dizer ao seu país, como fruto da sua experiência, reduzia-se pobremente a três conselhos, em três frases - aos políticos: «menos liberalismo e mais carácter»; aos homens de letras: «menos eloquência e mais ideia»; aos cidadãos em geral: «menos progresso e mais moral». (pp. 565/566)

28 «- Há uma coisa extraordinária, avô! O avô talvez saiba... O avô deve saber alguma coisa que nos tire desta aflição!... Aqui está, em duas palavras. Eu conheço aí uma senhora que chegou há tempos a Lisboa, mora na Rua de S. Francisco. Agora, de repente, descobre-se que é minha irmã legítima!... Passou aí um homem que a conhecia, que tinha uns papéis... Os papéis aí estão. São cartas, uma declaração de minha mãe... Enfim, uma trapalhada, um montão de provas... Que significa tudo isto? Essa minha irmã, a que foi levada em pequena, não morreu?... O avô deve saber!

Afonso da Maia, que um tremor tomara, agarrou-se um momento com força à bengala, caiu por fim pesadamente numa poltrona, junto do reposteiro. E ficou devorando o neto, o Ega, com um olhar esgazeado e mudo.

[...]

O velho levou muito tempo a procurar, a tirar a luneta de entre o colete, com os seus pobres dedos que tremiam; leu o papel devagar, empalidecendo mais a cada linha, respirando penosamente; ao findar deixou cair sobre os joelhos as mãos, que ainda agarravam o papel, ficou como esmagado e sem força. As palavras por fim vieram-lhe apagadas, morosas. Ele nada sabia... O que a Monforte ali assegurava, ele não o podia destruir... Essa senhora da Rua de S. Francisco era talvez, na verdade, sua neta... Não sabia mais...

[...]

- Eu sabia dessa mulher!... Vive na Rua de S. Francisco, passou todo o Verão nos Olivais... É a amante dele!» (pp. 644/646)

29 «- O Carlos esteve lá?

Ega balbuciou, atarantado, em mangas de camisa. Não sabia... Estivera apenas um momento nos Gouvarinhos... Era provável que Carlos tivesse ido mais tarde com o Taveira, para a ceia.

O velho cerrara os olhos, como se desfalecesse, estendendo a mão para se apoiar. Ega correu para ele:

- Não se aflija, sr. Afonso da Maia!

- Que queres então que faça? Onde está ele? Lá metido, com essa mulher... Escusas de dizer, eu sei, mandei espreitar... Desci a isso, mas quis acabar esta angústia... E esteve lá ontem até de manhã, está lá a dormir neste instante... E foi para este horror que Deus me deixou viver até agora!» (p. 663)

30 «Defronte do Ramalhete os candeeiros ainda ardiam. Abriu de leve  porta. Pé ante pé, subiu as escadas ensurdecidas pelo veludo cor de cereja. No patamar tacteava, procurava a vela, quando, através do reposteiro entreaberto, avistou uma claridade que se movia no fundo do quarto. Nervoso, recuou, parou no recanto. O clarão chegava, crescendo; passos lentos, pesados, pisavam surdamente o tapete; a luz surgiu - e com ela o avô em mangas e camisa, lívido, mudo, grande, espectral. Carlos não se moveu, sufocado; e os dois olhos do velho, vermelhos, esgazeados, cheios de horror, caíram sobre ele, ficaram sobre ele, varando-o até às profundidades da alma, lendo lá o seu segredo. Depois, sem uma palavra, com a cabeça branca a tremer, Afonso atravessou o patamar, onde a luz sobre o veludo espalhava um tom de sangue - e os seus passos perderam-se no interior da casa, lentos, abafados, cada vez mais sumidos, como se fossem os derradeiros que devesse dar na vida! » (pp. 667/668)

31 «O Sol ia alto, um barulho passou, o Baptista rompeu pelo quarto:

- Ó sr. D. Carlos, ó meu menino! O avô achou-se mal no jardim, não dá acordo!...

Carlos pulou do leito [...]

Arrebatadamente, Carlos levantara-lhe a face, já rígida, cor de cera, com os olhos cerrados, um fio de sangue aos cantos da longa barba de neve. Depois caiu de joelhos no chão húmido, sacudia-lhe as mãos, murmurando: "Ó avô! ó avô!" Correu ao tanque, borrifou-o de água:

- Chamem alguém! Chamem alguém!

Outra vez lhe palpava o coração... Mas estava morto. Estava morto, já frio, aquele corpo que, mais velho que o século, resistira tão formidavelmente, como um grande roble, aos anos e aos vendavais. Ali morrera solitariamente, já o Sol ia alto, naquela tosca mesa de pedra onde deixara pender a cabeça cansada.» (pp. 668/669)

32 «Odiando tudo o que era inglês, não consentira que seu filho, o Pedrinho, fosse estudar ao colégio de Richmond. Debalde Afonso lhe provou que era um colégio católico. Não queria: aquele catolicismo sem romarias, sem fogueiras pelo S. João, sem imagens do Senhor dos Passos, sem frades nas ruas - não lhe parecia a religião. A alma do seu Pedrinho não abandonaria ela à heresia; - e para o educar mandou vir de Lisboa o padre Vasques, capelão do conde de Runa.

O Vasques ensinava-lhe as declinações latinas, sobretudo a cartilha [...]

- Quantos são os inimigos da alma?

E o pequeno, mais dormente, lá ia murmurando:

- Três. Mundo, Diabo e Carne...

Pobre Pedrinho!» (pp.17/18)

33 «Às vezes Afonso, indignado, vinha ao quarto, interrompia a doutrina, agarrava a mão do Pedrinho - para o levar, correr com ele sob as árvores do Tamisa, dissipar-lhe na grande luz do rio o pesadume crasso da cartilha. Mas a mamã acudia de dentro, em terror, a abafá-lo numa grande manta: depois, lá fora, o menino acostumado ao colo das criadas e aos recantos estofados, tinha medo do vento e das árvores: e pouco a pouco, num passo desconsolado, os dois iam pisando em silêncio as folhas secas - o filho todo acobardado das sombras do bosque vivo, o pai vergando os ombros, pensativo, triste daquela fraqueza do filho...» (p.18)

34 «O Pedrinho no entanto estava quase um homem. Ficara pequenino e nervoso como Maria Eduarda, tendo pouco da força dos Maias;» (p. 20)

35 «a sua linda face oval de um trigueiro cálido, dois olhos maravilhosos e irresistíveis, prontos sempre a humedecer-se, faziam-no assemelhar a um belo árabe.» (p. 20)

36 «Desenvolvera-se lentamente, sem curiosidades, indiferente a brinquedos, a animais, a flores, a livros. Nenhum desejo forte parecera jamais vibrar naquela alma meio adormecida e passiva» (p. 20)

37 «Era em tudo um fraco; e esse abatimento contínuo de todo o seu ser resolvia-se a espaços em crises de melancolia negra, que o traziam dias e dias mudo, murcho, amarelo, com as olheiras fundas e já velho.» (p. 20)

38 «O seu único sentimento vivo, intenso, até aí, fora a paixão pela mãe.» (p. 20)

39 «O menino continuou em Benfica, dando os seus lentos passeios a cavalo, de criado de farda atrás, começando já a ir beber a sua genebra aos botequins de Lisboa... Depois foi despontando naquela organização uma grande tendência amorosa: aos dezanove anos teve o seu bastardozinho.» (p. 20)

40 «Quando a mãe morreu, numa agonia terrível de devota debatendo-se dias nos pavores do Inferno, Pedro teve na sua dor os arrebatamentos de uma loucura. Fizera a promessa histérica, se ela escapasse, de dormir durante um ano sobre as lajes do pátio: e levado o caixão, saídos os padres, caiu numa angústia soturna, obtusa, sem lágrimas, de que não queria emergir, estirado de bruços sobre a cama numa obstinação de penitente.» (p. 21)

41 «Esta dor exagerada e mórbida cessou por fim; e sucedeu-lhe, quase sem transição, um período de vida dissipada e turbulenta, estroinice banal, em que Pedro, levado por um romance torpe, procurava afogar em lupanares e botequins as saudades da mamã.» (p. 21)

42 «Nesses períodos tornava-se também devoto: lia «Vida de Santos», visitava o lausperene: eram desses bruscos abatimentos de alma que outrora levavam os fracos aos mosteiros.»

43 «E havia agora uma ideia que, a seu pesar, às vezes o [Afonso] torturava: descobrira a grande parecença de Pedro com um avô de sua mulher, um Runa, de quem existia um retrato em Benfica: este homem extraordinário, com que na casa se metia medo às crianças, enlouquecera - e julgando-se Judas enforcara-se numa figueira...» (p. 22)

44 «Mas um dia, excessos e crises findaram. Pedro da Maia amava! Era um amor à Romeu, vindo de repente numa troca de olhares fatal e deslumbradora, uma dessas paixões que assaltam uma existência, a assolam como um furacão, arrancando a vontade, a razão, os respeitos humanos e empurrando-os de roldão aos abismos.» (p. 22)

45 «- Meu pai - disse, esforçando-se por ser claro e decidido - venho pedir-lhe licença para casar com uma senhora que se chama Maria Monforte.

Afonso pousou o livro aberto sobre os joelhos, e numa voz grave e lenta:

- Não me tinhas falado disso... Creio que é a filha de um assassino, de um negreiro, a quem chamam também a «negreira»...

- Meu pai!...

[...]

Dois dias depois Vilaça entrou em Benfica, com as lágrimas nos olhos, contando que o menino casara nessa madrugada - e segundo lhe dissera o Sérgio, procurador do Monforte, ia partir com a noiva para Itália.» (p. 30)

46 «E quando ela apareceu grávida. ansiou por a tirar daquele Paris batalhador e fascinante, vir abrigá-la na pacata Lisboa adormecida ao sol.

Antes de partir, porém, escreveu ao pai.

Fora um conselho, quase uma exigência de Maria.

[...]

E foi bonita, foi terna a carta de Pedro ao papá.» (p. 33)

47 «Com efeito, apenas desembarcou, correu num trem a Benfica. Dois dias antes o pai partira para Santa Olávia: isto pareceu-lhe uma desfeita - e feriu-o acerbamente.

Fez-se então entre o pai e o filho uma grande separação. Quando lhe nasceu uma filha Pedro não lho participou - dizendo dramaticamente ao Vilaça « que já não tinha pai!»» (p. 34)

48 «Uma sombria tarde de Dezembro, de grande chuva, Afonso da Maia estava no seu escritório lendo, quando a porta se abriu violentamente, e, alçando os olhos do livro, viu Pedro diante de si. Vinha todo enlameado, desalinhado, e na sua face lívida, sob os cabelos revoltos, luzia um olhar de loucura. O velho ergueu-se aterrado. E Pedro sem uma palavra atirou-se aos braços do pai, rompeu a chorar perdidamente.

- Pedro! Que sucedeu, filho?

[...]

- Sossega filho, que foi?

 Pedro então caiu para o canapé, como cai um corpo morto; e levantando para o pai um rosto devastado, envelhecido, disse, palavra a palavra, numa voz surda:

- Estive fora de Lisboa dois dias... Voltei esta manhã... A Maria tinha fugido de casa com a pequena... Partiu com um homem, um italiano... E aqui estou!» (pp. 44/45)

49 «A madrugada clareava, Afonso ia adormecendo - quando de repente um tiro atroou a casa. Precipitou-se do leito, despido, e gritando: um criado acudia também com uma lanterna. Do quarto de Pedro, ainda entreaberto, vinha um cheiro de pólvora; e aos pés da cama, caído de bruços, numa poça de sangue que se ensopava no tapete, Afonso encontrou seu filho morto, apertando uma pistola na mão.» (p. 52)

50 «- E o pequeno, onde está o pequeno? - exclamou Afonso.

Pedro pareceu recordar-se:

- Está lá dentro com a ama, trouxe-o na sege.

O velho correu, logo; e daí a pouco aparecia, erguendo nos braços o pequeno, na sua longa capa branca de franjas e a sua touca de rendas. Era gordo, de olhos muito negros, com uma adorável bochecha fresca e cor-de-rosa. Todo ele ria, grulhando, agitando o seu guizo de prata.» (p. 46)

51 «- Está uma linda criança! Faz gosto! E parece-se com o pai. Os mesmos olhos, olhos dos Maias, o cabelo encaracolado... Mas há-de ser muito mais homem!» (p. 54)

52 «- Olhe que Vossa Senhoria tem só dez minutos... O menino não gosta de esperar.

[...]

- Então o nosso Carlinhos não gosta de esperar, hem? Já se sabe, é ele quem governa... Mimos e mais mimos, naturalmente...

Mas o Teixeira, muito grave, desiludiu o senhor administrador. Mimos e mais mimos, dizia Sua Senhoria? Coitadinho dele, que tinha sido educado com uma vara de ferro! Se ele fosse a contar ao sr. Vilaça! Não tinha a criança cinco anos já dormia num quarto só, sem lamparina; e todas as manhãs, zás, para dentro de uma tina de água fria, às vezes a gear lá fora... E outras barbaridades. Se não se soubesse a grande paixão do avô pela criança, havia de se dizer que a queria morta. Deus lhe perdoe, ele, Teixeira, chegara a pensá-lo... Mas não, parece que era sistema inglês! Deixava-o correr, cair, treoar às árvores, molhar-se, apanhar soalheiras, como um filho de caseiro. E depois o rigor com as comidas! Só a certas horas e de certas coisas... E às vezes a criancinha, com os olhos abertos, a aguar! Muita, muita dureza!

E o Teixeira acrescentou:

- Enfim era a vontade de Deus, saiu forte. Mas que nós aprovássemos a educação que tem levado, isso nunca aprovámos, nem eu, nem a Gertrudes.

[...]

- Sabe Vossa Senhoria, apenas veio o mestre inglês, o que lhe ensinou? A remar! A remar, sr. Vilaça, como um barqueiro! Sem contar o trapézio, e as habilidades de palhaço; eu nisso nem gosto de falar... Que eu sou o primeiro a dizê-lo: o Brown é boa pessoa, calado, asseado, excelente músico. Mas é o que eu tenho repetido à Gertrudes: pode ser muito bom para inglês, não é para ensinar um fidalgo português... Não é.

[...]

- Vilaça, Vilaça - advertiu o abade, de garfo no ar e um sorriso de santa malícia - não se deve falar em latim aqui ao nosso nobre amigo... Não admite, acha que é antigo... Ele, antigo é...

[...]

- Deve-se começar pelo latinzinho, deve-se começar por lá... É a base; é a basezinha!

- Não! latim mais tarde! - esclamou o Brown, com um gesto possante. - Prrimeiro forrça! Músculo...

E repetiu, duas vezes, agitando os formidáveis punhos:

- Prrimeiro músculo, músculo!...

Afonso apoiava-o gravemente. O Brown estava na verdade. O latim era um luxo de erudito... Nada mais absurdo que começar a ensinar a uma criança numa língua morta quem foi Fábio, rei dos Sabinos, o caso dos Gracos, e outros negócios de uma nação extinta, deixando-o ao mesmo tempo sem saber o que é a chuva que o molha, como se faz o pão que come, e todas as outras coisas do universo em que vive...

- Mas enfim os clássicos - arriscou timidamente o abade.

- Qual clássicos! O primeiro dever do homem é viver.

E para isso é necessário ser são, e ser forte. Toda a educação sensata consiste nisto: criar a saúde, a força e os hábitos, desenvolver exclusivamente o animal, armá-lo de uma grande superioridade física. Tal qual como se não tivesse alma. A alma vem depois... A alma é outro luxo. é um luxo de gente grande...» (pp. 57/58, 62/63)

53 «O Carlos não gosta dele, e tivemos aí um desgosto horroroso... Foi já há meses. Havia uma procissão e o Eusebiozinho ia de anjo... [...] Em primeiro lugar ia-o matando porque embirra com anjos... Mas o pior não foi isso. Imagine você o nosso terror, quando nos aparece o Eusebiozinho aos berros pela titi, todo desfrisado, sem uma asa, com a outra a bater-lhe os calcanhares dependurada de um barbante, a coroa de rosas enterrada até ao pescoço, e os galões de ouro, os tules, as lentejoulas, toda a vestimenta celeste em frangalhos!... Enfim, um anjo depenado e sovado... Eu ia dando cabo do Carlos.» (p. 77)

54 «Nesse momento Carlos, cuja voz gritava no corredor pelo vovô, precipitou-se no quarto, esguedelhado,, escarlate como uma romã. - O Brown tinha achado uma corujazinha pequena! Queria que o vovô viesse ver, andara buscá-lo por toda a casa... Era de morrer a rir... Muito pequena, muito feia, toda pelada, e com dois olhos de gente grande! E sabiam onde havia o ninho...

- Vem depressa, ó vovô! Depressa, que é necessário ir pô-la no ninho, por causa da coruja velha que se pode afligir... O Brown está-lhe a dar azeite. Ó Vilaça, vem ver! Ó vovô, pelo amor de Deus! Tem uma cara tão engraçada! Mas depressa, que a coruja velha pode dar pela falta!...

E impaciente com a lentidão risonha do vovô, tanta indiferença pela inquietação da coruja velha, abalou atirando com a porta.

- Que bom coração! - exclamou o Vilaça comovido. - A pensar nas saudades da coruja... A mãe dele é que não tem saudades! Sempre o disse, é uma fera!» (p. 82)

55 «Carlos ia formar-se em Medicina. [...]

A «vocação» revelara-se bruscamente um dia que ele descobriu no sótão, entre rumas de velhos alfarrábios, um rolo manchado e antiquado de estampas anatómicas; tinha passado dias asa recortá-las, pregando pelas paredes do quarto fígados, liaças de intestinos, cabeças de perfil « com o recheio à mostra».

[...]

Em Coimbra, estudante do Liceu, Carlos deixava os seus compêndios de lógica e retórica, para se ocupar de anatomia...» (pp. 87/88)

56 «E o que justamente seduzia Carlos na medicina era essa vida «a sério», prática e útil, as escadas de doentes galgadas à pressa no fogo de uma vasta clínica, as existências que se salvam com um golpe de bisturi, as noites veladas à beira de um leito, entre o terror de uma família, dando grandes batalhas à morte. [...]

Matriculou-se realmente com entusiasmo.» (p. 89)

57 «Matriculou-se realmente com entusiasmo. Para esses longos anos de quieto estudo o avô preparara-lhe uma linda casa em Celas, isolada, com graças de cottage inglês, ornada de persianas verdes, toda fresca entre árvores. Um amigo de Carlos (um certo João da Ega) pôs-lhe o nome de «Paços de Celas», por causa dos luxos então raros na Academia, um tapete na sala, poltronas de marroquim, panóplias de armas, e um escudeiro de libré.» (p. 89)

58 «Ao princípio este esplendor tornou Carlos venerado dos fidalgotes, mas suspeito aos democratas; quando se soube, porém, que o dono destes confortos lia Proudhon, Augusto Comte, Herbert Spencer, e considerava também o país uma «choldra ignóbil» - os mais rígidos revolucionários começaram a vir aos Paços de Celas tão familiarmente como ao quarto do Trovão, o poeta boémio, o duro socialista, que tinha apenas por mobília uma enxerga e uma Bíblia.

[...]

Os Paços de Celas, sob a sua aparência preguiçosa e campestre, tornaram-se uma fornalha de actividades» (pp. 89/90)

59 «Carlos passava as férias grandes em Lisboa, às vezes em Paris ou Londres; mas por Natais e Páscoas vinha sempre a Santa Olávia, que o avô, mais só, se entretinha a embelezar com amor.» (p. 91)

60 «Carlos escarnecia estes idílios futricas; mas também ele terminou por se enredar num episódio romântico com a mulher de um empregado do Governo Civil, uma lisboetazinha, que o seduziu pela graça de um corpo de boneca e por uns lindos olhos verdes. A ela o que a fanatizara fora o luxo, o groom, a égua inglesa de Carlos. Trocaram-se cartas; e ele viveu semanas banhado na poesia áspera e tumultuosa do primeiro amor adúltero.» (p. 93)

61 «Um dia, Carlos andava tomando o sol da feira, quando o empregado do Governo Civil passou junto dele com o filhinho pela mão. Pela primeira vez via tão de perto o marido de Hermengarda. Achou-o enxovalhado e macilento. Mas o pequerrucho era adorável, muito gordo, parecendo mais roliço por aquele dia de Janeiro sob os agasalhos de lã azul, tremelicando nas pobres perninhas roxas de frio, e rindo na clara luz - rindo todo ele, pelos olhos, pelas covinhas do queixo, pelas duas rosas das faces. O pai amparava-o; e o encanto, o cuidado com que o rapaz ia assim guiando os passos do seu filho, impressionou Carlos. Era no momento em que lia Michelet - e enchia-lhe a alma a veneração literária da santidade doméstica. Sentiu-se canalha em andar ali de cima do seu dog.cart, a preparar friamente a vergonha, e as lágrimas daquele pobre pai tão inofensivo no seu paletó coçado! Nunca mais respondeu às cartas em que Hermengarda lhe chamava «seu ideal».» (p. 93)

62 «Em Agosto, no acto da formatura de Carlos, houve uma alegre festa em Celas. [...]

- Aí temos o nosso Maia, Carolus Eduardus ab Maia, começando a sua gloriosa carreira, preparado para salvar a humanidade enferma - ou acabar de a matar, segundo as circunstâncias!

[...]

E então Carlos Eduardo partira para a sua longa viagem pela Europa.» (p. 95)

63 «Depois começaram a chegar, dirigidas ao Ramalhete, caixas sucessivas de livros, outras de instrumentos e aparelhos, toda uma biblioteca e todo um laboratório [...] (p. 96)

64 «Era decerto um formoso e magnífico moço, alto, bem feito, de ombros largos, com uma testa de mármore sob os anéis dos cabelos pretos, e os olhos dos Maias, aqueles irresistíveis olhos do pai, de um negro líquido, ternos como os dele e mais graves. Trazia a barba toda, muito fina, castanho-escura, rente na face, aguçada no queixo - o que lhe dava, com o bonito bigode arqueado aos cantos da boca, uma fisionomia de belo cavaleiro da Renascença.» (p. 96)

65 « - E onde vais tu acomodar este museu?

Carlos pensara em arranjar um vasto laboratório ali perto no bairro, com fornos para trabalhos químicos, uma sala disposta para estudos anatómicos e fisiológicos, a sua biblioteca, os seus aparelhos, uma concentração metódica de todos os instrumentos de estudo...

[...]

Carlos trazia realmente resoluções sinceras de trabalho [...] desejava ser útil. Mas as suas flutuações flutuavam, intensas e vagas [...]» (pp. 97/98)

66 «- E o consultório, meu senhor, não é aqui, nem acolá; é no Rossio, ali em pleno Rossio!

[...]

Carlos mobilou-o com luxo. Numa antecâmara, guarnecida de banquetas de marroquim, devia estacionar, à francesa, um criado de libré. A sala de espera dos doentes alegrava com o seu papel verde de ramagens prateadas, as plantas em vasos de Ruão, quadros de muita cor, e ricas poltronas cercando a jardineira coberta de colecções de «Charivari», de vistas estereoscópicas, de álbuns de actrizes seminuas, para tirar inteiramente o ar triste de consultório, até um piano mostrava o seu teclado branco.

[...]

O seu gabinete, no consultório, dormia numa paz tépida entre espessos veludos escuros, na penumbra que faziam os estores de seda verde corridos. Na sala, porém, as três janelas abertas bebiam à farta a luz; tudo ali parecia festivo; as poltronas em torno da jardineira estendiam os seus braços, amáveis e convidativos; o teclado branco do piano ria e esperava, tendo abertas por cima as »Canções» de Gounot; mas não aparecia jamais um doente. E carlos - exactamente como o criado que, na ociosidade da antecâmara, dormitava sob o «Diário de Notícias», acaçapado na banqueta - acendia um cogarro «Laferme», tomava uma revista, e estendia-se no divã. A prosa, porém, dos artigos estava como embebida do tédio moroso do gabinete: bem depressa bocejava, deixava cair o volume.» (pp. 98/99, 102/103)

67 «Ocupava-se então mais do laboratório, que decidira instalar no armazém às Necessidades. Todas as manhãs, antes de almoço, ia visitar as obras. Entrava-se por um grande pátio, onde uma bela sombra cobria um poço, e uma trepadeira se mirrava nos ganchos de ferro que a prendiam ao muro. Carlos já decidira transformar aquele espaço em fresco jardinete inglês; e a aporta do casarão encantava-o, ogival e nobre, resto de fachada de ermida, fazendo um acesso venerável para o seu santuário de ciência.

[...]

O laboratório de Carlos estava pronto - e muito convidativo, com o seu soalho novo, fornos de tijolo fresco, uma vasta mesa de mármore, um amplo divã de crina para o repouso depois das grandes descobertas, e em redor, por sobre as peanhas e prateleiras, um rico brilho de metais e cristais; mas as semanas passavam, e todo esse belo material de experimentação, sob a luz branca da clarabóia, jazia virgem e ocioso. Só pela manhã um servente ia ganhar o seu tostão diário, dando lá uma volta preguiçosa com um espanador na mão.

Carlos realmente não tinha tempo de se ocupar do laboratório [...]» (pp. 99/100, 128)

68 «Caramba! - exclamava Ega [...] - Caramba! Tu vens esplêndido desses Londres, dessas civilizações superiores. Estás com um ar Renascença, um ar Valois... Não há nada como a barba toda!» (p. 104)

69 «Era a primeira doente grave de Carlos, uma rapariga de origem alsaciana, casada com o Marcelino, padeiro, muito conhecida no bairro pelos seus belos cabelos, loiros e penteados sempre em tranças soltas. Tinha estado à morte com uma pneumonia; e apesar de melhor, como a padaria ficava defronte, Carlos ainda às vezes à noite atravessava a rua para a ir ver, tranquilizar o Marcelino, que, defronte do leito e de gabão pelos ombros, sufocava soluços de amante, escrevinhando no livro de contas.» (p. 114)

70 «Começava a ser conhecido como médico. Tinha visitas no consultório - ordinariamente bacharéis, seus contemporâneos, que sabendo-o rico o consideravam gratuito, e lá entravam murchos e com má cara, a contar a velha e mal disfarçada história de ternuras funestas. Salvara de um garrotilho a filha de um brasileiro, ao Aterro - e ganhara aí a sua primeira libra, a primeira que pelo seu trabalho ganhava um homem da sua família. [...] carlos já falava a sério da sua carreira. Escrevera, com laboriosos requintes de estilista, dois artigos para a «Gazeta Médica», e pensava em fazer um livro de ideias gerais que se devia chamar «Medicina Antiga e Moderna». De resto ocupava-se sempre dos seus cavalos, do seu luxo, do seu bricabraque. [...]  atraía-o singularmente a antiga ideia do Ega, a criação de uma revista, que dirigisse o gosto, pesasse na política, regulasse a sociedade, fosse a força pensante de Lisboa...» (p. 129)

71 «Carlos, no entanto, fumando preguiçosamente, continuava a falar na Gouvarinho e nessa brusca saciedade que o invadira, mal trocara com ela três palavras numa sala. E não era a primeira vez que tinha desses falsos arranques de desejo, vindo quase com as formas de amor, ameaçando absorver, pelo menos por algum tempo, todo o seu ser, e resolvendo-se em tédio, em «seca».» (p. 151)

[...]

«Insensivelmente, irresistivelmente, Carlos achou-se com os lábios nos lábios dela. [...]

Daí a um momento estavam ambos de pé: Carlos, junto do busto, coçando a barba, com o ar embaraçado, e já vagamente arrependido [...] (p. 297)

[...] 

«Mas Carlos vinha de lá enervado, amolecido, sentindo já na alma os primeiros bocejos da saciedade. [...] ele ia pensando como se poderia desembaraçar da sua tenacidade, do seu ardor, do seu peso... É que a condessa ia-se tornando absurda com aquela determinação ansiosa e audaz de invadir toda a sua vida, tomar nela o lugar mais largo e mais profundo - como se o primeiro beijo trocado tivesse unido não só os lábios de ambos um momento, mas os seus destinos também e para sempre.» (p. 301/302)

[...]

«A Gouvarinho, num tom amargo, queixava-se [em carta] que, já por duas vezes, Carlos faltara ao rendez-vous em casa da titi, sem lhe ter sequer escrito uma palavra; ela vira nisto uma ofensa, uma brutalidade; e vinha agora intimá-lo, «em nome de todos os sacrifícios que por ele fizera», a que aparecesse na Rua de S. Marçal, domingo ao meio-dia, para terem uma explicação definitiva antes de ela partir para Sintra.

- Excelente ocasião de acabar! - exclamou Ega [...]

- É o que vou fazer - disse Carlos, começando a calçar as luvas. - Jesus! Que mulher maçadora!» (p. 421)

[...]

«É um cocheiro de praça - murmurou Baptista. - Diz que está ali uma senhora dentro de uma carruagem que lhe quer falar.

- Que senhora?

[...]

Que alívio! Era a Gouvarinho! Então, na sua indignação, Carlos foi brutal.

- Que diabo de tolice é esta? Que quer?» (p. 441)

[...]

«Teve então horror à Gouvarinho; brutalmente, sem piedade, repeliu-a para o canto do coupé.

- Basta! Tudo isto é absurdo... As nossas relações estão acabadas, não temos mais nada que nos dizer!

[...]

Pois bem! Vai, deixa-me! Vai para a outra, para a brasileira! [...]

Ele voltou-se, com os punhos fechados, como para a espancar; e na tipóia escura, onde já havia um vago cheiro de verbena, os olhos de ambos, sem se verem, dardejavam o ódio que os enchia... Carlos bateu raivosamente no vidro.

[...]

O calhambeque parou. Carlos pulou para fora, fechou de estalo a portinhola; e sem uma palavra, sem erguer o chapéu, virou costas, abalou a grandes passadas para o Ramalhete, trémulo ainda, cheio de ideias de rancor, sob a paz da noite estrelada.» (p. 446)

72 «Ega, horrorizado, apertava as mãos na cabeça - quando do outro lado Carlos declarou que o mais intolerável no realismo eram os seus grandes ares científicos, a sua pretensiosa estética deduzida de uma filosofia alheia, e a invocação de Claude Bernard, do experimentalismo, do positivismo, de Stuart Mill e de Darwin, a propósito de uma lavadeira que dorme com um carpinteiro!» (p. 164)

73 «Era realmente sincero. Desde que Carlos habitava Lisboa, tivera ali, naquele moço gordo e bochechudo, sem o saber, uma adoração muda e profunda; o próprio verniz dos seus sapatos, a cor das suas luvas eram para o Dâmaso motivo de veneração, e tão importantes como princípios. Considerava Carlos um tipo supremo de chique, do seu querido chique, um Brummel, um D' Orsay, um Morny - uma «destas coisas que só se vêem lá fora», como ele dizia arregalando os olhos.» (p. 177)

74 «Carlos saía pouco de casa. Trabalhava no seu livro. Aquela revoada de clientela que lhe dera esperanças de uma carreira cheia, activa, tinha passado miseravelmente, sem se fixar; restavam-lhe três doentes no bairro; e sentia agora que as suas carruagens, os cavalos, o Ramalhete, os hábitos de luxo, o condenavam irremediavelmente ao diletantismo. Já o fino dr. Teodósio lhe dissera um dia, francamente: «Você é muito elegante para médico! As suas doentes, fatalmente, fazem-lhe olho! Quem é o burguês que lhe vai confiar a esposa dentro de uma alcova?... Você aterra o pater-famílias!» O laboratório mesmo prejudicara-o. Os colegas diziam que o Maia, rico, inteligente, ávido de inovações, de modernismos, fazia sobre os doentes experiências fatais. Tinha-se troçado muito a sua ideia, apresentada na «Gazeta Médica», a prevenção das epidemias pela inoculação dos vírus. Consideravam-no um fantasista.» (p. 187)

75 «Então em volta de Carlos foi uma desconsolação, um longo murmúrio de lassidão. Todos perdiam; ele apanhava a poule, ganhava as apostas, empolgava tudo. Que sorte! Que chance! [...]

- Ah, monsieur - exclamou a vasta ministra da Baviera, furiosa - mefiez-vous... Vous connaissez de proverbe: heureux au jeu...» (p. 336)

76 «Ora na Europa o homem requintado já não ri - sorri regeladamente, lividamente. Só nós aqui, neste canto do mundo bárbaro, conservamos ainda esse dom supremo, essa coisa bendita e consoladora - a barrigada de riso!...

- Que diabo estás tu a olhar?

Era o consultório, o antigo consultório de Carlos - onde agora, pela tabuleta, parecia existir um pequeno atelier de modista. Então bruscamente os dois amigos recaíram nas recordações do passado. Que estúpidas horas Carlos ali arrastara, com a «Revista dos Dois Mundos», na espera vã dos doentes, cheio ainda de fé nas alegrias do trabalho!... [...]

- Em que tudo ficou!

- Em que tudo ficou! Mas rimos bastante! Lembras-te daquela noite em que o pobre marquês queria levar ao consultório a Paca, para utilizar enfim o divã, móvel de serralho?...» (p. 700)

77 «Ega ergueu-se, atirou um gesto desolado:

- Falhámos a vida, menino!

[...]

- E que somos nós? - exclamou Ega. - Que temos nós sido desde o colégio, desde o exame de latim? Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento, e não pela razão...

Mas Carlos queria realmente saber se, no fundo, eram mais felizes esses que se dirigiam só pela razão, não se desviando nunca dela, torturando-se para se manter na sua linha inflexível, secos, hirtos, lógicos, sem emoção até ao fim...

- Creio que não - disse o Ega.» (pp. 713/714)

78 «Riram ambos. Depois Carlos, outra vez sério, deu a sua teoria da vida, a teoria definitiva que ele deduzira da experiência e que agora o governava. Era o fatalismo muçulmano. Nada desejar e nada recear... Não se abandonar a uma esperança - nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquilidade com que se acolhem as naturais mudanças de dias agrestes e de dias suaves. E, nesta placidez, deixar esse pedaço de matéria organizada que se chama o Eu ir-se deteriorando e decompondo até reentrar e se perder no infinito Universo... Sobretudo não ter apetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.»

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