1 «Caetano da
                              Maia era um português antigo e fiel que se
                              benzia ao nome de Robespierre, e que, na
                              sua apatia de fidalgo beato e doente,
                              tinha só um sentimento vivo - o horror, o
                              ódio ao Jacobino, a quem atribuía todos os
                              males, os da pátria e os seus, desde a
                              perda das colónias até às crises da sua
                              gota. Para extirpar da nação o Jacobino,
                              dera ele o seu amor ao senhor infante D.
                              Miguel, messias forte e restaurador
                              providencial... E ter justamente por filho
                              um jacobino, parecia-lhe uma provação
                              comparável só às de Job!» (p. 13)
                          2
                              «A gota cruel, cravando-o na poltrona, não
                              lhe deixou espancar o mação, com a sua
                              bengala da Índia, à lei de bom pai
                              português: mas decidiu expulsá-lo de sua
                              casa, sem mesada e sem benção, renegado
                              como um bastardo!» (pp. 13/14)
                          3
                              «As lágrimas da mamã amoleceram-no;
                              sobretudo as razões de uma cunhada de sua
                              mulher, que vivia com eles em Benfica,
                              senhora irlandesa de alta instrução,
                              Minerva respeitada e tutelar, que ensinara
                              inglês ao menino e o adorava como um bebé.
                              Caetano da Maia limitou-se a desterrar o
                              filho para a Quinta de Santa Olávia [...]»
                              (p. 14)
                          4
                              [...] «mas não cessou de chorar no seio
                              dos padres que vinham a Benfica a desgraça
                              de sua casa. E esses santos lá o
                              consolavam, afirmando-lhe que Deus, o
                              velho Deus de Ourique, não permitiria
                              jamais que um Maia pactuasse com Belzebu e
                              com a Revolução! E, à falta de Deus-Padre,
                              lá estava Nossa Senhora da Soledade,
                              padroeira da casa e madrinha do menino,
                              para fazer o milagre.
                          E
                              o milagre fez-se. Meses depois, o
                              jacobino, o Marat, voltava de Santa Olávia
                              um pouco contrito, enfastiado sobretudo
                              daquela solidão [...] Vinha pedir ao pai a
                              bênção, e alguns mil cruzados, para ir
                              para Inglaterra [...] O pai beijou-o, todo
                              e lágrimas, acedeu a tudo fervorosamente,
                              vendo ali a evidente, a gloriosa
                              intercessão de Nossa Senhora da Soledade!»
                              (p. 14)
                          5 «
                              O antepassado, cujos olhos se enchiam
                              agora de uma luz de ternura diante das
                              suas rosas, e que ao canto do lume relia
                              com gosto o seu Guizot, fora, na opinião
                              de seu pai, algum tempo, o mais feroz
                              jacobino de Portugal! E todavia, o furor
                              revolucionário do pobre moço consistira em
                              ler Rousseau, Volney, Helvécio, e a
                              «Enciclopédia»; em atirar foguetes de
                              lágrimas à Constituição; e ir, de chapéu à
                              liberal e alta gravata azul, recitando
                              pelas lojas maçónicas odes abomináveis ao
                              Supremo Arquitecto do Universo.» (p. 13)
                          6
                              «E o milagre fez-se.  Meses depois, o jacobino, o
                              Marat, voltava de Santa Olávia um pouco
                              contrito, enfastiado sobretudo daquela
                              solidão [...] Vinha pedir ao pai a bênção,
                              e alguns mil cruzados, para ir para
                              Inglaterra [...]» (p. 14)
                          7
                              «Afonso partiu. Era na Primavera - e a
                              Inglaterra toda verde, os seus parques de
                              luxo, os copiosos confortos, a harmonia
                              permanente dos seus nobres costumes,
                              aquela raça tão séria e tão forte -
                              encantaram-no. Bem depressa esqueceu o seu
                              ódio aos sorumbáticos padres da
                              Congregação, as horas ardentes passadas no
                              café dos Remolares a recitar Mirabeau, e a
                              república que quisera fundar, clássica e
                              voltairiana, com um triunvirato de Cipiões
                              e festas ao Ente Supremo. Durante os dias
                              da Abrilada estava ele nas corridas de
                              Epson, no alto de uma sege de posta, com
                              um grande nariz postiço, dando hurras
                              medonhos - bem indiferente aos seus irmãos
                              de Maçonaria, que a essas horas o senhor
                              infante espicaçava a chuço, pelas vielas
                              do Bairro Alto, no seu rijo cavalo de
                              Alter.» (pp. 14/15)
                          8
                              «Mas não esquecia a Inglaterra: - e
                              tornava-lha mais apetecida essa Lisboa
                              miguelista que ele via, desordenada como
                              uma Tunes barbaresca; essa rude conjuração
                              apostólica de frades e boleeiros, atroando
                              tabernas e capelas; essa plebe beata, suja
                              e feroz, rolando do lausperene para o
                              curro, e ansiando tumultuosamente pelo
                              príncipe que lhe encarnava tão bem os
                              vícios e as paixões...
                          Este
                              espectáculo indignava Afonso da Maia [...]
                              O que não tolerava era o mundo de Queluz,
                              bestial e sórdido.» (p.15)
                          9
                              «Tais palavras, apenas soltas, voavam a
                              Queluz. E quando se reuniram as Cortes
                              Gerais, a polícia invadiu Benfica, «a
                              procurar papéis e armas escondida».
                          Afonso
                              da Maia, com o seu filho nos braços e a
                              mulher tremendo ao lado - viu,
                              impassivelmente e sem uma palavra, a
                              busca, as gavetas arrombadas pela coronha
                              das escopetas, as mãos sujas do malsim
                              rebuscando os colchões do seu leito. [...]
                              e daí a semanas, com a mulher e com o
                              filho, Afonso da Maia partia para
                              Inglaterra e para o exílio.» (pp. 15/16)
                          10
                              «Ao princípio os emigrados liberais,
                              Palmela e a gente do «Belfast», ainda o
                              vieram desassossegar e consumir. A sua
                              alma recta não tardou a protestar vendo a
                              separação de castas, de jerarquias,
                              mantidas ali na terra estranha entre os
                              vencidos da mesma ideia - os fidalgos e os
                              desembargadores vivendo no luxo de Londres
                              à forra, a a plebe, o exército, depois dos
                              padecimentos da Galiza, sucumbindo agora à
                              fome, à vérmina, à febre nos barracões de
                              Plymouth. Teve logo conflitos com os
                              chefes liberais; foi acusado de vintista e
                              demagogo; descreu por fim do liberalismo.
                              Isolou-se então - sem fechar todavia a sua
                              bolsa, donde saíam às cinquenta, às cem
                              moedas... Mas quando a primeira expedição
                              partiu, e pouco a pouco se foram vazando
                              os depósitos de emigrados, respirou enfim
                              - e, como ele disse, pela primeira vez lhe
                              soube bem o ar de Inglaterra!» (p. 16)
                          11
                              «Teve relações; estudou a nobre e rica
                              literatura inglesa; interessou-se, como
                              convinha a um fidalgo em Inglaterra, pela
                              cultura, pela cria dos cavalos, pela
                              prática da caridade - e pensava com prazer
                              em ficar ali para sempre naquela paz e
                              naquela ordem.» (p. 17)
                          12
                              «Somente Afonso sentia que sua mulher não
                              era feliz. Pensativa e triste, tossia
                              sempre pelas salas. À noite sentava-se ao
                              fogão, suspirava e ficava calada...
                          Pobre
                              senhora! A nostalgia do país, da
                              parentela, das igrejas, ia-a minando.
                              Verdadeira lisboeta, pequenina e
                              trigueira, sem se queixar e sorrindo
                              palidamente, tinha vivido desde que
                              chegara num ódio surdo àquela terra de
                              hereges e ao seu idioma bárbaro: sempre
                              arrepiada, abafada em peles, olhando com
                              pavor os céus fuscos ou a neve nas
                              árvores, o seu coração não estivera nunca
                              ali, mas longe, em Lisboa, nos adros, nos
                              bairros batidos do sol. A sua devoção (a
                              devoção dos Runas!) sempre grande,
                              exaltara-se, exacerbara-se àquela
                              hostilidade ambiente que ela sentia em
                              redor contra os «papistas». E só se
                              satisfazia à noite, indo refugiar-se no
                              sótão com as criadas portuguesas, para
                              rezar o terço agachada numa esteira -
                              gozando ali, nesse murmúrio de ave-marias
                              em país protestante, o encanto de uma
                              conjuração católica!
                          Odiando
                              tudo o que era inglês, não consentira que
                              seu filho, o Pedrinho, fosse estudar ao
                              colégio de Richmond. Debalde Afonso lhe
                              provou que era um colégio católico. Não
                              queria: aquele catolicismo sem romarias,
                              sem fogueiras pelo S. João, sem imagens do
                              Senhor dos Passos, sem frades nas ruas -
                              não lhe parecia a religião. A alma do seu
                              Pedrinho não abandonaria ela à heresia; -
                              e para o educar mandou vir de Lisboa o
                              padre Vasques, capelão do conde de Runa.»
                              (pp. 17/18)
                          13
                              «O Vasques ensinava-lhe as declinações
                              latinas, sobretudo a cartilha: e a face de
                              Afonso da Maia cobria-se de tristeza
                              quando ao voltar de alguma caçada ou das
                              ruas de Londres, entre o forte rumor da
                              vida livre - ouvia no quarto dos estudos a
                              voz dormente do reverendo, perguntando
                              como do fundo de uma treva:
                          -
                              Quantos são os inimigos da alma?
                          E
                              o pequeno, mais dormente, lá ia
                              murmurando:
                          -
                              Três. Mundo, Diabo e Carne...
                          Pobre
                              Pedrinho! Inimigo da sua alma só havia ali
                              o reverendo Vasques, obeso e sórdido,
                              arrotando do fundo da sua poltrona, com o
                              lenço do rapé sobre o joelho...
                          Às
                              vezes Afonso, indignado, vinha ao quarto,
                              interrompia a doutrina, agarrava a mão do
                              Pedrinho - para o levar, correr com ele
                              sob as árvores do Tamisa, dissipar-lhe na
                              grande luz do rio o pesadume crasso da
                              cartilha. Mas a mamã acudia de dentro, em
                              terror, a abafá-lo numa grande manta:
                              depois, lá fora, o menino acostumado ao
                              colo das criadas e aos recantos estofados,
                              tinha medo do vento e das árvores: e pouco
                              a pouco, num passo desconsolado, os dois
                              iam pisando em silêncio as folhas secas -
                              o filho todo acobardado das sombras do
                              bosque vivo, o pai vergando os ombros,
                              pensativo, triste daquela fraqueza do
                              filho...» (p. 18)
                          14
                              «Por esse tempo veio um grave desgosto à
                              casa: a tia Fanny morreu, de uma
                              pneumonia, nos frios de Março; e isto
                              enegreceu mais a melancolia de Maria
                              Eduarda, que a amava muito também - por
                              ser irlandesa e católica.
                          Para
                              a distrair, Afonso levou-a para a Itália,
                              para uma deliciosa villa ao pé de
                              Roma. Aí não lhe faltava o sol: tinha-o
                              pontual e generoso todas as manhãs,
                              banhando largamente os terraços, dourando
                              loureirais e mirtos. E depois, lá em
                              baixo, entre mármores, estava a coisa mais
                              preciosa e santa - o Papa!
                          Mas
                              a triste senhora continuava a choramingar.
                              O que realmente apetecia era Lisboa, as
                              suas novenas, os santos devotos do seu
                              bairro, as procissões passando num rumor
                              de pachorrenta penitência por tardes de
                              sol e de poeira...
                          Foi
                              necessário calmá-la, voltar a Benfica.»
                              (p. 19)
                          15
                              «[...] O padre Vasques, apoderando-se
                              daquela alma aterrada para quem Deus era
                              um amo feroz, tornara-se o grande homem da
                              casa. De resto Afonso encontrava em cada
                              momento pelos corredores outras figuras
                              canónicas, de capote e solidéu, em que
                              reconhecia antigos franciscanos, ou algum
                              magro capuchinho parasitando no bairro; a
                              casa tinha um bafio de sacristia; e dos
                              quartos da senhora vinha constantemente,
                              dolente e vago, um rumor de ladainha.
                          Todos
                              aqueles santos varões comiam, bebiam o seu
                              vinho do Porto na copa. As contas do
                              administrador apareciam sobrecarregadas
                              com mesadas piedosas que dava a senhora:
                              um frei Patrício surripiara-lhe duzentas
                              missas de cruzado por alma do senhor D.
                              José I...
                          Esta
                              carolice que o cercava ia lançando Afonso
                              num ateísmo rancoroso: quereria as igrejas
                              fechadas como os mosteiros, as imagens
                              escavacadas a machado, uma matança de
                              reverendos... Quando sentia na casa a voz
                              das rezas, fugia, ia para o fundo da
                              quinta, sob as trepadeiras do mirante, ler
                              o seu Voltaire: ou então partia a
                              desabafar com o seu velho amigo, o coronel
                              Sequeira, que vivia numa quinta a Queluz.
                          [...]
                          -
                              Esta educação faz atletas mas não faz
                              cristãos. Já o tenho dito...
                          -
                              Já o tem dito, abade, já! - exclamou
                              Afonso alegremente. - Diz-mo todas as
                              semanas... Quer você saber, Vilaça? O
                              nosso Custódio mata-me o bicho do ouvido
                              para que eu ensine a cartilha ao rapaz. A
                              cartilha!...
                          Custódio
                              ficou um momento a olhar Afonso, com uma
                              face desconsolada e a caixa de rapé aberta
                              na mão; a irreligião daquele velho
                              fidalgo, senhor de quase toda a freguesia,
                              era uma das suas dores.» (pp. 19/20,
                              66/67)
                          16
                              «Uma noite que o coronel Sequeira, à mesa
                              do whist, contava que vira Maria
                              Monforte e Pedro passeando a cavalo,
                              «ambos muito bem e muito distingués»,
Afonso,
                              depois de um silêncio, disse com ar
                              enfastiado:
                          -
                              Enfim, todos os rapazes têm as suas
                              amantes... Os costumes são assim, a vida é
                              assim, e seria absurdo querer reprimir
                              tais coisas. Mas essa mulher com um pai
                              desses, mesmo para amante acho má.
                          O
                              Vilaça suspendeu o baralhar das cartas, e
                              ajeitando os óculos de oiro exclamou com
                              espanto:
                          -
                              Amante! Mas a rapariga é solteira, meu
                              senhor, é uma menina honesta!...
                          Afonso
                              da Maia enchia o seu cachimbo; as mãos
                              começaram a tremer-lhe; e voltando-se para
                              o administrador, numa voz que tremia um
                              pouco também:
                          -
                              O Vilaça decerto não supõe que meu filho
                              queira casar com essa criatura...
                          [...]
                          -
                              Meu pai - disse, esforçando-se por ser
                              claro e decidido - venho pedir-lhe licença
                              para casar com uma senhora que se chama
                              Maria Monforte.
                          Afonso
                              pousou o livro aberto sobre os joelhos, e
                              numa voz grave e lenta:
                          -
                              Não me tinhas falado disso... Creio que é
                              a filha de um assassino, de um negreiro, a
                              quem chamam também a «negreira»...
                          -
                              Meu pai!...
                          Afonso
                              ergueu-se diante dele, rígido e inexorável
                              como a encarnação mesma da honra
                              doméstica.
                          -
                              Que tens a dizer-me mais? Fazes-me corar
                              de vergonha.» (pp. 27/28, 30)
                          17
                              «Antes de partir, porém, escreveu ao pai.
                          Fora
                              um conselho, quase uma exigência de Maria.
                              [...]
                          Com
                              efeito, apenas desembarcou, correu num
                              trem a Benfica. Dois dias antes o pai
                              partira para Santa Olávia: isto
                              pareceu-lhe uma desfeita - e feriu-o
                              acerbamente.
                          Fez-se
                              então entre o pai e o filho uma grande
                              separação.» (pp. 33/34)
                          18
                              «Uma sombria tarde de Dezembro, de grande
                              chuva, Afonso da Maia estava no seu
                              escritório lendo, quando a porta se abriu
                              violentamente, e, alçando os olhos do
                              livro, viu Pedro diante de si. Vinha todo
                              enlameado, desalinhado,, e na sua face
                              lívida, sob os cabelos revoltos, luzia um
                              olhar de loucura. O velho ergueu-se
                              aterrado. E Pedro sem uma palavra
                              atirou-se aos braços do pai, rompeu a
                              chorar perdidamente.
                          -
                              Pedro! Que sucedeu, filho?
                          [...]
                          -
                              Estive fora de Lisboa dois dias... Voltei
                              esta manhã... A Maria tinha fugido de casa
                              com a pequena... Partiu com um homem, um
                              italiano... E aqui estou!
                          Afonso
                              da Maia ficou diante do filho, quedo,
                              mudo, como uma figura de pedra; e a sua
                              bela face, onde todo o sangue subira,
                              enchia-se, pouco a pouco, de uma grande
                              cólera. Viu, num relance, o escândalo, a
                              cidade galhofando, as compaixões, o seu
                              nome pela lama. E era aquele filho que,
                              desprezando a sua autoridade, ligando-se a
                              essa criaturaz, estragara o sangue da
                              raça, cobria agora a sua casa de vexame. E
                              ali estava, ali jazia sem um grito, sem um
                              furor, um arranque brutal de homem traído!
                              Vinha atirar-se para um sofá, chorando
                              miseravelmente! Isto indignou-o, e rompeu
                              a passear pela sala, rígido e áspero,
                              cerrando os lábios para que não lhe
                              escapassem palavras de ira e de injúria
                              que lhe enchiam o peito em tumulto... -
                              Mas era pai: ouvia, ali ao seu lado,
                              aquele soluçar de funda dor; via tremer
                              aquele pobre corpo desgraçado que ele
                              outrora embalara nos braços... Parou junto
                              de Pedro, tomou-lhe gravemente a cabeça
                              entre as mãos, e beijou-o na testa, uma
                              vez, outra vez, como se ele fosse ainda
                              criança, restituindo-lhe ali e para sempre
                              a sua ternura inteira.» (pp. 44/45)
                          19
                              «O velho correu, logo; e daí a pouco
                              aparecia, erguendo nos braços o pequeno,
                              na sua longa capa branca de franjas e a
                              sua touca de rendas. Era gordo, de olhos
                              muito negros, com uma adorável bochecha
                              fresca e cor-de-rosa. Todo ele ria,
                              grulhando, agitando o seu guizo de prata.
                              A ama não passou da porta tristonha, com
                              os olhos no tapete e uma trouxazinha na
                              mão.
                          Afonso
                              sentou-se lentamente na sua poltrona, e
                              acomodou o neto no colo. Os olhos
                              enchiam-se-lhe de uma bela luz de ternura;
                              parecia esquecer a agonia do filho, a
                              vergonha doméstica; agora só havia ali
                              aquela facezinha tenra, que se lhe babava
                              nos braços...»
                          20
                              «[...] o próprio encanto de Santa Olávia,
                              o fresco cantar das águas vivas por
                              tanques e repuxos, vinha agora com a
                              cadência saudosa de um choro. E Vilaça foi
                              encontrar Afonso na Livraria, com as
                              janelas cerradas ao lindo sol de Inverno,
                              caído para uma poltrona, a face cavada sob
                              os cabelos crescidos e brancos, as mãos
                              magras e ociosas sobre os joelhos.
                          O
                              procurador veio dizer para Lisboa que o
                              velho não durava um ano.»
                          21
                              «Afonso era um pouco baixo, maciço, de
                              ombros quadrados e fortes: e com a sua
                              face larga de nariz aquilino, a pele
                              corada, quase vermelha, o cabelo branco
                              todo cortado à escovinha, e barba de neve
                              e longa - lembrava, como dizia Carlos, um
                              varão esforçado das idades heróicas, um D.
                              Duarte de Meneses ou um Afonso de
                              Albuquerque.» (p. 12)
                          22
                              «Mas o Teixeira, muito grave, muito sério,
                              desiludiu o senhor administrador. Mimos e
                              mais mimos, dizia Sua Senhoria? Coitadinho
                              dele, que tinha sido educado com uma vara
                              de ferro! Se ele fosse a contar ao sr.
                              Vilaça! Não tinha a criança cinco anos já
                              dormia num quarto só, sem lamparina; e
                              todas as manhãs zás, para dentro de uma
                              tina de água fria, às vezes a gear lá
                              fora... E outras barbaridades. Se não se
                              soubesse a grande paixão do avô pela
                              criança, havia de se dizer que a queria
                              morta. Deus lhe perdoe, ele, Teixeira,
                              chegara a pensá-lo... Mas não, parece que
                              era sistema inglês! Deixava-o correr,
                              cair, trepar às árvores, molhar-se,
                              apanhar soalheiras, como um folho de
                              caseiro. E depois o rigor com as comidas!
                              E depois o rigor com as comidas! Só a
                              certas horas e de certas coisas... E às
                              vezes a criancinha, com os olhos abertos,
                              a aguar! Muita, muita dureza.
                          [...]
                          -
                              Sabe Vossa Senhoria, apenas veio o mestre
                              inglês, o que lhe ensinou? A remar! A
                              remar, sr. Vilaça, como um barqueiro! Sem
                              contar o trapézio, e as habilidades de
                              palhaço;
                          [...]
                          Afonso
                              apoiava-o, gravemente. O Brown estava na
                              verdade. O latim era um luxo de erudito...
                              Nada mais absurdo que começar a ensinar a
                              uma criança numa língua morta quem foi
                              Fábio, rei dos Sabinos, o caso dos Gracos,
                              e outros negócios de uma nação extinta,
                              deixando-o ao mesmo tempo sem saber o que
                              é a chuva que o molha, como se faz o pão
                              que come, e todas as outras coisas do
                              universo em que vive...» (pp. 57/58, 63)
                          23
                              «- Vossa Excelência sabe que apareceu a
                              Monforte?
                          [...]
                          -
                              Em Lisboa?
                          -
                              Não senhor, em Paris. Viu-a lá o Alencar,
                              esse rapaz que escreve, e que era muito de
                              Arroios... Esteve até em casa dela.
                          E
                              ficaram calados. Havia anos que entre eles
                              se não pronunciara o nome de Maria
                              Monforte. Ao princípio, quando se retirara
                              para Santa Olávia, a preocupação ardente
                              de Afonso da Maia fora tirar-lhe a filha
                              que ela levara.» (p. 78)
                          24
                              «E o Dâmaso apelou logo para o marquês.
                              Não era verdade, como ele estivera dizendo
                              ao sr. Afonso da Maia, que iam ser as
                              melhores corridas que se tinham feito em
                              Lisboa?
                          [...]
                          -
                              Pois não é verdade, sr. Afonso da Maia?
                          O
                              velho sorriu, amaciando o seu gato.
                          -
                              O verdadeiro patriotismo, talvez - disse
                              ele - seria, em lugar de corridas, fazer
                              uma boa tourada.
                          Dâmaso
                              levou as mãos à cabeça. Uma tourada! Então
                              o sr. Afonso da Maia preferia toiros a
                              corridas de cavalos? O sr. Afonso da Maia,
                              um inglês!...
                          -
                              Um simples beirão, ser. Salcede, um
                              simples beirão, e que faz gosto nisso; se
                              habitei a Inglaterra é que o meu rei, que
                              era então, me pôs fora do meu país... Pois
                              é verdade, tenho esse fraco português,
                              prefiro toiros. Cada raça possui o seu sport
                              próprio, e o nosso é o toiro: o toiro com
                              muito sol, ar de dia santo, água fresca, e
                              foguetes... Mas sabe o sr. Salcede qual é
                              a importância da tourada? É ser uma grande
                              escola de força, de coragem e de
                              destreza... Em Portugal não instituição
                              que tenha uma importância igual à tourada
                              de curiosos. E acredite uma coisa: é que
                              se nesta triste geração moderna ainda há
                              em Lisboa uns rapazes com certo músculo, a
                              espinha direita, e capazes de dar um bom
                              soco, deve-se isso ao toiro e à tourada de
                              curiosos...» (pp. 307/308)
                          25
                              «[...] Ele mesmo costumava dizer que era
                              simplesmente um egoísta: - mas nunca, como
                              agora na velhice, as generosidades do seu
                              coração tinham sido tão profundas e
                              largas. Parte do seu rendimento ia-se-lhe
                              por entre os dedos, esparsamente, numa
                              caridade enternecida. Cada vez amava mais
                              o que era pobre e o que é fraco. Em Santa
                              Olávia, as crianças corriam para ele, dos
                              portais, sentindo-o acariciador e
                              paciente. Tudo o que vive lhe merecia amor
                              - e era dos que não pisam um formigueiro e
                              se compadecem da sede de uma planta.
                          [...]
                          Carlos,
                              rindo, arrastou-o [o marquês] pelo
                              corredor. E de repente, ao entrarem na
                              antecâmara, deram com Afonso falando a uma
                              mulher carregada de luto, que lhe beijava
                              a mão, meio de joelhos, sufocada de
                              lágrimas: e ao lado outra mulher, com os
                              olhos turvos de água também, embalava
                              dentro do xale uma criancinha que parecia
                              doente e gemia. Carlos parara embaraçado;
                              o marquês instintivamente levou a mão à
                              algibeira. Mas o velho, assim surpreendido
                              na sua caridade, foi logo empurrando as
                              duas mulheres para a escada: elas desciam,
                              encolhidas, abençoando-o, num murmúrio de
                              soluços; e ele, voltando-se para Carlos,
                              quase se desculpou numa voz que ainda
                              tremia:
                          -
                              Sempre estes peditórios... Caso bem triste
                              todavia... E o que é pior, é que por mais
                              que se dê nunca se dá bastante. Mundo
                              muito mal feito, marquês.» (pp. 12, 311)
                          26
                              «Afonso da Maia aprovou plenamente a
                              compra das colecções do Craft. «É um
                              valor», disse ele ao Vilaça, «e acabamos
                              de encher com boa arte Santa Olávia e o
                              Ramalhete.»» (p. 415)
                          27
                              «- [...] Que têm vocês feito?
                          -
                              Mil coisas! - acudiu Ega alegremente. -
                              Planos, ideias, títulos... Temos sobretudo
                              o projecto de uma revista, um aparelho de
                              educação superior, que vamos montar com
                              uma força de mil cavalos! ...
                          [...]
                              E Afonso escutava, encantado com aquelas
                              belas ambições e luta, querendo partilhar
                              da grande obra, como sócio capitalista...
                              Mas Ega entendia que o sr. Afonso da Maia
                              devia descer à arena, lançar também a
                              palavra do seu saber e da sua experiência.
                              Então o velho riu. O quê! compor prosa,
                              ele, que hesitava para traçar uma carta ao
                              feitor? De resto, o que teria a dizer ao
                              seu país, como fruto da sua experiência,
                              reduzia-se pobremente a três conselhos, em
                              três frases - aos políticos: «menos
                              liberalismo e mais carácter»; aos homens
                              de letras: «menos eloquência e mais
                              ideia»; aos cidadãos em geral: «menos
                              progresso e mais moral». (pp. 565/566)
                          28
                              «- Há uma coisa extraordinária, avô! O avô
                              talvez saiba... O avô deve saber alguma
                              coisa que nos tire desta aflição!... Aqui
                              está, em duas palavras. Eu conheço aí uma
                              senhora que chegou há tempos a Lisboa,
                              mora na Rua de S. Francisco. Agora, de
                              repente, descobre-se que é minha irmã
                              legítima!... Passou aí um homem que a
                              conhecia, que tinha uns papéis... Os
                              papéis aí estão. São cartas, uma
                              declaração de minha mãe... Enfim, uma
                              trapalhada, um montão de provas... Que
                              significa tudo isto? Essa minha irmã, a
                              que foi levada em pequena, não morreu?...
                              O avô deve saber!
                          Afonso
                              da Maia, que um tremor tomara, agarrou-se
                              um momento com força à bengala, caiu por
                              fim pesadamente numa poltrona, junto do
                              reposteiro. E ficou devorando o neto, o
                              Ega, com um olhar esgazeado e mudo.
                          [...]
                          O
                              velho levou muito tempo a procurar, a
                              tirar a luneta de entre o colete, com os
                              seus pobres dedos que tremiam; leu o papel
                              devagar, empalidecendo mais a cada linha,
                              respirando penosamente; ao findar deixou
                              cair sobre os joelhos as mãos, que ainda
                              agarravam o papel, ficou como esmagado e
                              sem força. As palavras por fim vieram-lhe
                              apagadas, morosas. Ele nada sabia... O que
                              a Monforte ali assegurava, ele não o podia
                              destruir... Essa senhora da Rua de S.
                              Francisco era talvez, na verdade, sua
                              neta... Não sabia mais...
                          [...]
                          -
                              Eu sabia dessa mulher!... Vive na Rua de
                              S. Francisco, passou todo o Verão nos
                              Olivais... É a amante dele!» (pp. 644/646)
                          29
                              «- O Carlos esteve lá?
                          Ega
                              balbuciou, atarantado, em mangas de
                              camisa. Não sabia... Estivera apenas um
                              momento nos Gouvarinhos... Era provável
                              que Carlos tivesse ido mais tarde com o
                              Taveira, para a ceia.
                          O
                              velho cerrara os olhos, como se
                              desfalecesse, estendendo a mão para se
                              apoiar. Ega correu para ele:
                          -
                              Não se aflija, sr. Afonso da Maia!
                          -
                              Que queres então que faça? Onde está ele?
                              Lá metido, com essa mulher... Escusas de
                              dizer, eu sei, mandei espreitar... Desci a
                              isso, mas quis acabar esta angústia... E
                              esteve lá ontem até de manhã, está lá a
                              dormir neste instante... E foi para este
                              horror que Deus me deixou viver até
                              agora!» (p. 663)
                          30
                              «Defronte do
                                  Ramalhete os candeeiros ainda ardiam.
                                  Abriu de leve  porta.
                                  Pé ante pé, subiu as escadas
                                  ensurdecidas pelo veludo cor de
                                  cereja. No patamar tacteava, procurava
                                  a vela, quando, através do reposteiro
                                  entreaberto, avistou uma claridade que
                                  se movia no fundo do quarto. Nervoso,
                                  recuou, parou no recanto. O clarão
                                  chegava, crescendo; passos lentos,
                                  pesados, pisavam surdamente o tapete;
                                  a luz surgiu -
                                  e com ela o avô em mangas e camisa,
                                  lívido, mudo, grande, espectral.
                                  Carlos não se moveu, sufocado; e os
                                  dois olhos do velho, vermelhos,
                                  esgazeados, cheios de horror, caíram
                                  sobre ele, ficaram sobre ele,
                                  varando-o até às profundidades da
                                  alma, lendo lá o seu segredo. Depois,
                                  sem uma palavra, com a cabeça branca a
                                  tremer, Afonso atravessou o patamar,
                                  onde a luz sobre o veludo espalhava um
                                  tom de sangue -
                                  e os seus passos perderam-se no
                                  interior da casa, lentos, abafados,
                                  cada vez mais sumidos, como se fossem
                                  os derradeiros que devesse dar na
                                  vida! » (pp. 667/668)
                          31 «O Sol
                              ia alto, um barulho passou, o Baptista
                              rompeu pelo quarto:
                          - Ó sr. D. Carlos, ó meu menino!
                              O avô achou-se mal no jardim, não dá
                              acordo!...
                          Carlos pulou do leito [...]
                          Arrebatadamente, Carlos
                              levantara-lhe a face, já rígida, cor de
                              cera, com os olhos cerrados, um fio de
                              sangue aos cantos da longa barba de neve.
                              Depois caiu de joelhos no chão húmido,
                              sacudia-lhe as mãos, murmurando: "Ó avô! ó
                              avô!" Correu ao tanque, borrifou-o de
                              água:
                          - Chamem alguém! Chamem alguém!
                          Outra vez lhe palpava o
                              coração... Mas estava morto. Estava morto,
                              já frio, aquele corpo que, mais velho que
                              o século, resistira tão formidavelmente,
                              como um grande roble, aos anos e aos
                              vendavais. Ali morrera solitariamente, já
                              o Sol ia alto, naquela tosca mesa de pedra
                              onde deixara pender a cabeça cansada.»
                              (pp. 668/669)
                          32
                              «Odiando tudo o que
                              era inglês, não consentira que seu filho,
                              o Pedrinho, fosse estudar ao colégio de
                              Richmond. Debalde Afonso lhe provou que
                              era um colégio católico. Não queria:
                              aquele catolicismo sem romarias, sem
                              fogueiras pelo S. João, sem imagens do
                              Senhor dos Passos, sem frades nas ruas -
                              não lhe parecia a religião. A alma do seu
                              Pedrinho não abandonaria ela à heresia; -
                              e para o educar mandou vir de Lisboa o
                              padre Vasques, capelão do conde de Runa.
                          O Vasques ensinava-lhe as
                              declinações latinas, sobretudo a cartilha
                              [...]
                          -
                              Quantos são os inimigos da alma?
                          E
                              o pequeno, mais dormente, lá ia
                              murmurando:
                          -
                              Três. Mundo, Diabo e Carne...
                          Pobre
                              Pedrinho!» (pp.17/18)
                          33
                              «Às vezes Afonso,
                              indignado, vinha ao quarto, interrompia a
                              doutrina, agarrava a mão do Pedrinho -
                              para o levar, correr com ele sob as
                              árvores do Tamisa, dissipar-lhe na grande
                              luz do rio o pesadume crasso da cartilha.
                              Mas a mamã acudia de dentro, em terror, a
                              abafá-lo numa grande manta: depois, lá
                              fora, o menino acostumado ao colo das
                              criadas e aos recantos estofados, tinha
                              medo do vento e das árvores: e pouco a
                              pouco, num passo desconsolado, os dois iam
                              pisando em silêncio as folhas secas - o
                              filho todo acobardado das sombras do
                              bosque vivo, o pai vergando os ombros,
                              pensativo, triste daquela fraqueza do
                              filho...» (p.18)
                          34
                              «O Pedrinho no entanto estava quase um
                              homem. Ficara pequenino e nervoso como
                              Maria Eduarda, tendo pouco da força dos
                              Maias;» (p. 20)
                          35
                              «a sua linda face oval de um trigueiro
                              cálido, dois olhos maravilhosos e
                              irresistíveis, prontos sempre a
                              humedecer-se, faziam-no assemelhar a um
                              belo árabe.» (p. 20)
                          36
                              «Desenvolvera-se lentamente, sem
                              curiosidades, indiferente a brinquedos, a
                              animais, a flores, a livros. Nenhum desejo
                              forte parecera jamais vibrar naquela alma
                              meio adormecida e passiva» (p. 20)
                          37
                              «Era em tudo um fraco; e esse abatimento
                              contínuo de todo o seu ser resolvia-se a
                              espaços em crises de melancolia negra, que
                              o traziam dias e dias mudo, murcho,
                              amarelo, com as olheiras fundas e já
                              velho.» (p. 20)
                          38
                              «O seu único sentimento vivo, intenso, até
                              aí, fora a paixão pela mãe.» (p. 20)
                          39
                              «O menino continuou em Benfica, dando os
                              seus lentos passeios a cavalo, de criado
                              de farda atrás, começando já a ir beber a
                              sua genebra aos botequins de Lisboa...
                              Depois foi despontando naquela organização
                              uma grande tendência amorosa: aos dezanove
                              anos teve o seu bastardozinho.» (p. 20)
                          40
                              «Quando a mãe morreu, numa agonia terrível
                              de devota debatendo-se dias nos pavores do
                              Inferno, Pedro teve na sua dor os
                              arrebatamentos de uma loucura. Fizera a
                              promessa histérica, se ela escapasse, de
                              dormir durante um ano sobre as lajes do
                              pátio: e levado o caixão, saídos os
                              padres, caiu numa angústia soturna,
                              obtusa, sem lágrimas, de que não queria
                              emergir, estirado de bruços sobre a cama
                              numa obstinação de penitente.» (p. 21)
                          41
                              «Esta dor exagerada e mórbida cessou por
                              fim; e sucedeu-lhe, quase sem transição,
                              um período de vida dissipada e turbulenta,
                              estroinice banal, em que Pedro, levado por
                              um romance torpe, procurava afogar em
                              lupanares e botequins as saudades da
                              mamã.» (p. 21)
                          42
                              «Nesses períodos tornava-se também devoto:
                              lia «Vida de Santos», visitava o
                              lausperene: eram desses bruscos
                              abatimentos de alma que outrora levavam os
                              fracos aos mosteiros.»
                          43
                              «E havia agora uma ideia que, a seu pesar,
                              às vezes o [Afonso] torturava: descobrira
                              a grande parecença de Pedro com um avô de
                              sua mulher, um Runa, de quem existia um
                              retrato em Benfica: este homem
                              extraordinário, com que na casa se metia
                              medo às crianças, enlouquecera - e
                              julgando-se Judas enforcara-se numa
                              figueira...» (p. 22)
                          44
                              «Mas um dia, excessos e crises findaram.
                              Pedro da Maia amava! Era um amor à Romeu,
                              vindo de repente numa troca de olhares
                              fatal e deslumbradora, uma dessas paixões
                              que assaltam uma existência, a assolam
                              como um furacão, arrancando a vontade, a
                              razão, os respeitos humanos e
                              empurrando-os de roldão aos abismos.» (p.
                              22)
                          45
                              «- Meu pai - disse, esforçando-se por ser
                              claro e decidido - venho pedir-lhe licença
                              para casar com uma senhora que se chama
                              Maria Monforte.
                          Afonso
                              pousou o livro aberto sobre os joelhos, e
                              numa voz grave e lenta:
                          -
                              Não me tinhas falado disso... Creio que é
                              a filha de um assassino, de um negreiro, a
                              quem chamam também a «negreira»...
                          -
                              Meu pai!...
                          [...]
                          Dois
                              dias depois Vilaça entrou em Benfica, com
                              as lágrimas nos olhos, contando que o
                              menino casara nessa madrugada - e segundo
                              lhe dissera o Sérgio, procurador do
                              Monforte, ia partir com a noiva para
                              Itália.» (p. 30)
                          46
                              «E quando ela apareceu grávida. ansiou por
                              a tirar daquele Paris batalhador e
                              fascinante, vir abrigá-la na pacata Lisboa
                              adormecida ao sol.
                          Antes
                              de partir, porém, escreveu ao pai.
                          Fora
                              um conselho, quase uma exigência de Maria.
                          [...]
                          E
                              foi bonita, foi terna a carta de Pedro ao
                              papá.» (p. 33)
                          47
                              «Com efeito, apenas desembarcou, correu
                              num trem a Benfica. Dois dias antes o pai
                              partira para Santa Olávia: isto
                              pareceu-lhe uma desfeita - e feriu-o
                              acerbamente.
                          Fez-se
                              então entre o pai e o filho uma grande
                              separação. Quando lhe nasceu uma filha
                              Pedro não lho participou - dizendo
                              dramaticamente ao Vilaça « que já não
                              tinha pai!»» (p. 34)
                          48
                              «Uma sombria tarde de Dezembro, de grande
                              chuva, Afonso da Maia estava no seu
                              escritório lendo, quando a porta se abriu
                              violentamente, e, alçando os olhos do
                              livro, viu Pedro diante de si. Vinha todo
                              enlameado, desalinhado, e na sua face
                              lívida, sob os cabelos revoltos, luzia um
                              olhar de loucura. O velho ergueu-se
                              aterrado. E Pedro sem uma palavra
                              atirou-se aos braços do pai, rompeu a
                              chorar perdidamente.
                          -
                              Pedro! Que sucedeu, filho?
                          [...]
                          -
                              Sossega filho, que foi?
                           Pedro
                              então caiu para o canapé, como cai um
                              corpo morto; e levantando para o pai um
                              rosto devastado, envelhecido, disse,
                              palavra a palavra, numa voz surda:
                          -
                              Estive fora de Lisboa dois dias... Voltei
                              esta manhã... A Maria tinha fugido de casa
                              com a pequena... Partiu com um homem, um
                              italiano... E aqui estou!» (pp. 44/45)
                          49
                              «A madrugada clareava, Afonso ia
                              adormecendo - quando de repente um tiro
                              atroou a casa. Precipitou-se do leito,
                              despido, e gritando: um criado acudia
                              também com uma lanterna. Do quarto de
                              Pedro, ainda entreaberto, vinha um cheiro
                              de pólvora; e aos pés da cama, caído de
                              bruços, numa poça de sangue que se
                              ensopava no tapete, Afonso encontrou seu
                              filho morto, apertando uma pistola na
                              mão.» (p. 52)
                          50
                              «- E o pequeno, onde está o pequeno? -
                              exclamou Afonso.
                          Pedro
                              pareceu recordar-se:
                          -
                              Está lá dentro com a ama, trouxe-o na
                              sege.
                          O
                              velho correu, logo; e daí a pouco
                              aparecia, erguendo nos braços o pequeno,
                              na sua longa capa branca de franjas e a
                              sua touca de rendas. Era gordo, de olhos
                              muito negros, com uma adorável bochecha
                              fresca e cor-de-rosa. Todo ele ria,
                              grulhando, agitando o seu guizo de prata.»
                              (p. 46)
                          51
                              «- Está uma linda criança! Faz gosto! E
                              parece-se com o pai. Os mesmos olhos,
                              olhos dos Maias, o cabelo encaracolado...
                              Mas há-de ser muito mais homem!» (p. 54)
                          52
                              «- Olhe que Vossa Senhoria tem só dez
                              minutos... O menino não gosta de esperar.
                          [...]
                          -
                              Então o nosso Carlinhos não gosta de
                              esperar, hem? Já se sabe, é ele quem
                              governa... Mimos e mais mimos,
                              naturalmente...
                          Mas
                              o Teixeira, muito grave, desiludiu o
                              senhor administrador. Mimos e mais mimos,
                              dizia Sua Senhoria? Coitadinho dele, que
                              tinha sido educado com uma vara de ferro!
                              Se ele fosse a contar ao sr. Vilaça! Não
                              tinha a criança cinco anos já dormia num
                              quarto só, sem lamparina; e todas as
                              manhãs, zás, para dentro de uma tina de
                              água fria, às vezes a gear lá fora... E
                              outras barbaridades. Se não se soubesse a
                              grande paixão do avô pela criança, havia
                              de se dizer que a queria morta. Deus lhe
                              perdoe, ele, Teixeira, chegara a
                              pensá-lo... Mas não, parece que era
                              sistema inglês! Deixava-o correr, cair,
                              treoar às árvores, molhar-se, apanhar
                              soalheiras, como um filho de caseiro. E
                              depois o rigor com as comidas! Só a certas
                              horas e de certas coisas... E às vezes a
                              criancinha, com os olhos abertos, a aguar!
                              Muita, muita dureza!
                          E
                              o Teixeira acrescentou:
                          -
                              Enfim era a vontade de Deus, saiu forte.
                              Mas que nós aprovássemos a educação que
                              tem levado, isso nunca aprovámos, nem eu,
                              nem a Gertrudes.
                          [...]
                          -
                              Sabe Vossa Senhoria, apenas veio o mestre
                              inglês, o que lhe ensinou? A remar! A
                              remar, sr. Vilaça, como um barqueiro! Sem
                              contar o trapézio, e as habilidades de
                              palhaço; eu nisso nem gosto de falar...
                              Que eu sou o primeiro a dizê-lo: o Brown é
                              boa pessoa, calado, asseado, excelente
                              músico. Mas é o que eu tenho repetido à
                              Gertrudes: pode ser muito bom para inglês,
                              não é para ensinar um fidalgo português...
                              Não é.
                          [...]
                          -
                              Vilaça, Vilaça - advertiu o abade, de
                              garfo no ar e um sorriso de santa malícia
                              - não se deve falar em latim aqui ao nosso
                              nobre amigo... Não admite, acha que é
                              antigo... Ele, antigo é...
                          [...]
                          -
                              Deve-se começar pelo latinzinho, deve-se
                              começar por lá... É a base; é a basezinha!
                          -
                              Não! latim mais tarde! - esclamou o Brown,
                              com um gesto possante. - Prrimeiro forrça!
                              Músculo...
                          E
                              repetiu, duas vezes, agitando os
                              formidáveis punhos:
                          -
                              Prrimeiro músculo, músculo!...
                          Afonso
                              apoiava-o gravemente. O Brown estava na
                              verdade. O latim era um luxo de erudito...
                              Nada mais absurdo que começar a ensinar a
                              uma criança numa língua morta quem foi
                              Fábio, rei dos Sabinos, o caso dos Gracos,
                              e outros negócios de uma nação extinta,
                              deixando-o ao mesmo tempo sem saber o que
                              é a chuva que o molha, como se faz o pão
                              que come, e todas as outras coisas do
                              universo em que vive...
                          -
                              Mas enfim os clássicos - arriscou
                              timidamente o abade.
                          -
                              Qual clássicos! O primeiro dever do homem
                              é viver.
                          E
                              para isso é necessário ser são, e ser
                              forte. Toda a educação sensata consiste
                              nisto: criar a saúde, a força e os
                              hábitos, desenvolver exclusivamente o
                              animal, armá-lo de uma grande
                              superioridade física. Tal qual como se não
                              tivesse alma. A alma vem depois... A alma
                              é outro luxo. é um luxo de gente
                              grande...» (pp. 57/58, 62/63)
                          53
                              «O Carlos não gosta dele, e tivemos aí um
                              desgosto horroroso... Foi já há meses.
                              Havia uma procissão e o Eusebiozinho ia de
                              anjo... [...] Em primeiro lugar ia-o
                              matando porque embirra com anjos... Mas o
                              pior não foi isso. Imagine você o nosso
                              terror, quando nos aparece o Eusebiozinho
                              aos berros pela titi, todo desfrisado, sem
                              uma asa, com a outra a bater-lhe os
                              calcanhares dependurada de um barbante, a
                              coroa de rosas enterrada até ao pescoço, e
                              os galões de ouro, os tules, as
                              lentejoulas, toda a vestimenta celeste em
                              frangalhos!... Enfim, um anjo depenado e
                              sovado... Eu ia dando cabo do Carlos.» (p.
                              77)
                          54
                              «Nesse momento Carlos, cuja voz gritava no
                              corredor pelo vovô, precipitou-se no
                              quarto, esguedelhado,, escarlate como uma
                              romã. - O Brown tinha achado uma
                              corujazinha pequena! Queria que o vovô
                              viesse ver, andara buscá-lo por toda a
                              casa... Era de morrer a rir... Muito
                              pequena, muito feia, toda pelada, e com
                              dois olhos de gente grande! E sabiam onde
                              havia o ninho...
                          -
                              Vem depressa, ó vovô! Depressa, que é
                              necessário ir pô-la no ninho, por causa da
                              coruja velha que se pode afligir... O
                              Brown está-lhe a dar azeite. Ó Vilaça, vem
                              ver! Ó vovô, pelo amor de Deus! Tem uma
                              cara tão engraçada! Mas depressa, que a
                              coruja velha pode dar pela falta!...
                          E
                              impaciente com a lentidão risonha do vovô,
                              tanta indiferença pela inquietação da
                              coruja velha, abalou atirando com a porta.
                          -
                              Que bom coração! - exclamou o Vilaça
                              comovido. - A pensar nas saudades da
                              coruja... A mãe dele é que não tem
                              saudades! Sempre o disse, é uma fera!» (p.
                              82)
                          55
                              «Carlos ia formar-se em Medicina. [...]
                          A
                              «vocação» revelara-se bruscamente um dia
                              que ele descobriu no sótão, entre rumas de
                              velhos alfarrábios, um rolo manchado e
                              antiquado de estampas anatómicas; tinha
                              passado dias asa recortá-las, pregando
                              pelas paredes do quarto fígados, liaças de
                              intestinos, cabeças de perfil « com o
                              recheio à mostra».
                          [...]
                          Em
                              Coimbra, estudante do Liceu, Carlos
                              deixava os seus compêndios de lógica e
                              retórica, para se ocupar de anatomia...»
                              (pp. 87/88)
                          56
                              «E o que justamente seduzia Carlos na
                              medicina era essa vida «a sério», prática
                              e útil, as escadas de doentes galgadas à
                              pressa no fogo de uma vasta clínica, as
                              existências que se salvam com um golpe de
                              bisturi, as noites veladas à beira de um
                              leito, entre o terror de uma família,
                              dando grandes batalhas à morte. [...]
                          Matriculou-se
                              realmente com entusiasmo.» (p. 89)
                          57
                              «Matriculou-se realmente com entusiasmo.
                              Para esses longos anos de quieto estudo o
                              avô preparara-lhe uma linda casa em Celas,
                              isolada, com graças de cottage
                              inglês, ornada de persianas verdes, toda
                              fresca entre árvores. Um amigo de Carlos
                              (um certo João da Ega) pôs-lhe o nome de
                              «Paços de Celas», por causa dos luxos
                              então raros na Academia, um tapete na
                              sala, poltronas de marroquim, panóplias de
                              armas, e um escudeiro de libré.» (p. 89)
                          58
                              «Ao princípio este esplendor tornou Carlos
                              venerado dos fidalgotes, mas suspeito aos
                              democratas; quando se soube, porém, que o
                              dono destes confortos lia Proudhon,
                              Augusto Comte, Herbert Spencer, e
                              considerava também o país uma «choldra
                              ignóbil» - os mais rígidos revolucionários
                              começaram a vir aos Paços de Celas tão
                              familiarmente como ao quarto do Trovão, o
                              poeta boémio, o duro socialista, que tinha
                              apenas por mobília uma enxerga e uma
                              Bíblia.
                          [...]
                          Os
                              Paços de Celas, sob a sua aparência
                              preguiçosa e campestre, tornaram-se uma
                              fornalha de actividades» (pp. 89/90)
                          59
                              «Carlos passava as férias grandes em
                              Lisboa, às vezes em Paris ou Londres; mas
                              por Natais e Páscoas vinha sempre a Santa
                              Olávia, que o avô, mais só, se entretinha
                              a embelezar com amor.» (p. 91)
                          60
                              «Carlos escarnecia estes idílios futricas;
                              mas também ele terminou por se enredar num
                              episódio romântico com a mulher de um
                              empregado do Governo Civil, uma
                              lisboetazinha, que o seduziu pela graça de
                              um corpo de boneca e por uns lindos olhos
                              verdes. A ela o que a fanatizara fora o
                              luxo, o groom, a égua inglesa de
                              Carlos. Trocaram-se cartas; e ele viveu
                              semanas banhado na poesia áspera e
                              tumultuosa do primeiro amor adúltero.» (p.
                              93)
                          61
                              «Um dia, Carlos andava tomando o sol da
                              feira, quando o empregado do Governo Civil
                              passou junto dele com o filhinho pela mão.
                              Pela primeira vez via tão de perto o
                              marido de Hermengarda. Achou-o enxovalhado
                              e macilento. Mas o pequerrucho era
                              adorável, muito gordo, parecendo mais
                              roliço por aquele dia de Janeiro sob os
                              agasalhos de lã azul, tremelicando nas
                              pobres perninhas roxas de frio, e rindo na
                              clara luz - rindo todo ele, pelos olhos,
                              pelas covinhas do queixo, pelas duas rosas
                              das faces. O pai amparava-o; e o encanto,
                              o cuidado com que o rapaz ia assim guiando
                              os passos do seu filho, impressionou
                              Carlos. Era no momento em que lia Michelet
                              - e enchia-lhe a alma a veneração
                              literária da santidade doméstica.
                              Sentiu-se canalha em andar ali de cima do
                              seu dog.cart, a preparar friamente
                              a vergonha, e as lágrimas daquele pobre
                              pai tão inofensivo no seu paletó coçado!
                              Nunca mais respondeu às cartas em que
                              Hermengarda lhe chamava «seu ideal».» (p.
                              93)
                          62
                              «Em Agosto, no acto da formatura de
                              Carlos, houve uma alegre festa em Celas.
                              [...]
                          -
                              Aí temos o nosso Maia, Carolus Eduardus ab
                              Maia, começando a sua gloriosa carreira,
                              preparado para salvar a humanidade enferma
                              - ou acabar de a matar, segundo as
                              circunstâncias!
                          [...]
                          E
                              então Carlos Eduardo partira para a sua
                              longa viagem pela Europa.» (p. 95)
                          63
                              «Depois começaram a chegar, dirigidas ao
                              Ramalhete, caixas sucessivas de livros,
                              outras de instrumentos e aparelhos, toda
                              uma biblioteca e todo um laboratório [...]
                              (p. 96)
                          64
                              «Era decerto um formoso e magnífico moço,
                              alto, bem feito, de ombros largos, com uma
                              testa de mármore sob os anéis dos cabelos
                              pretos, e os olhos dos Maias, aqueles
                              irresistíveis olhos do pai, de um negro
                              líquido, ternos como os dele e mais
                              graves. Trazia a barba toda, muito fina,
                              castanho-escura, rente na face, aguçada no
                              queixo - o que lhe dava, com o bonito
                              bigode arqueado aos cantos da boca, uma
                              fisionomia de belo cavaleiro da
                              Renascença.» (p. 96)
                          65
                              « - E onde vais tu acomodar este museu?
                          Carlos
                              pensara em arranjar um vasto laboratório
                              ali perto no bairro, com fornos para
                              trabalhos químicos, uma sala disposta para
                              estudos anatómicos e fisiológicos, a sua
                              biblioteca, os seus aparelhos, uma
                              concentração metódica de todos os
                              instrumentos de estudo...
                          [...]
                          Carlos
                              trazia realmente resoluções sinceras de
                              trabalho [...] desejava ser útil. Mas as
                              suas flutuações flutuavam, intensas e
                              vagas [...]» (pp. 97/98)
                          66
                              «- E o consultório, meu senhor, não é
                              aqui, nem acolá; é no Rossio, ali em pleno
                              Rossio!
                          [...]
                          Carlos
                              mobilou-o com luxo. Numa antecâmara,
                              guarnecida de banquetas de marroquim,
                              devia estacionar, à francesa, um criado de
                              libré. A sala de espera dos doentes
                              alegrava com o seu papel verde de ramagens
                              prateadas, as plantas em vasos de Ruão,
                              quadros de muita cor, e ricas poltronas
                              cercando a jardineira coberta de colecções
                              de «Charivari», de vistas estereoscópicas,
                              de álbuns de actrizes seminuas, para tirar
                              inteiramente o ar triste de consultório,
                              até um piano mostrava o seu teclado
                              branco.
                          [...]
                          O
                              seu gabinete, no consultório, dormia numa
                              paz tépida entre espessos veludos escuros,
                              na penumbra que faziam os estores de seda
                              verde corridos. Na sala, porém, as três
                              janelas abertas bebiam à farta a luz; tudo
                              ali parecia festivo; as poltronas em torno
                              da jardineira estendiam os seus braços,
                              amáveis e convidativos; o teclado branco
                              do piano ria e esperava, tendo abertas por
                              cima as »Canções» de Gounot; mas não
                              aparecia jamais um doente. E carlos -
                              exactamente como o criado que, na
                              ociosidade da antecâmara, dormitava sob o
                              «Diário de Notícias», acaçapado na
                              banqueta - acendia um cogarro «Laferme»,
                              tomava uma revista, e estendia-se no divã.
                              A prosa, porém, dos artigos estava como
                              embebida do tédio moroso do gabinete: bem
                              depressa bocejava, deixava cair o volume.»
                              (pp. 98/99, 102/103)
                          67
                              «Ocupava-se então mais do laboratório, que
                              decidira instalar no armazém às
                              Necessidades. Todas as manhãs, antes de
                              almoço, ia visitar as obras. Entrava-se
                              por um grande pátio, onde uma bela sombra
                              cobria um poço, e uma trepadeira se
                              mirrava nos ganchos de ferro que a
                              prendiam ao muro. Carlos já decidira
                              transformar aquele espaço em fresco
                              jardinete inglês; e a aporta do casarão
                              encantava-o, ogival e nobre, resto de
                              fachada de ermida, fazendo um acesso
                              venerável para o seu santuário de ciência.
                          [...]
                          O
                              laboratório de Carlos estava pronto - e
                              muito convidativo, com o seu soalho novo,
                              fornos de tijolo fresco, uma vasta mesa de
                              mármore, um amplo divã de crina para o
                              repouso depois das grandes descobertas, e
                              em redor, por sobre as peanhas e
                              prateleiras, um rico brilho de metais e
                              cristais; mas as semanas passavam, e todo
                              esse belo material de experimentação, sob
                              a luz branca da clarabóia, jazia virgem e
                              ocioso. Só pela manhã um servente ia
                              ganhar o seu tostão diário, dando lá uma
                              volta preguiçosa com um espanador na mão.
                          Carlos
                              realmente não tinha tempo de se ocupar do
                              laboratório [...]» (pp.
                              99/100, 128)
                          68
                              «Caramba! - exclamava Ega [...] - Caramba!
                              Tu vens esplêndido desses Londres, dessas
                              civilizações superiores. Estás com um ar
                              Renascença, um ar Valois... Não há nada
                              como a barba toda!» (p. 104)
                          69
                              «Era a primeira doente grave de Carlos,
                              uma rapariga de origem alsaciana, casada
                              com o Marcelino, padeiro, muito conhecida
                              no bairro pelos seus belos cabelos, loiros
                              e penteados sempre em tranças soltas.
                              Tinha estado à morte com uma pneumonia; e
                              apesar de melhor, como a padaria ficava
                              defronte, Carlos ainda às vezes à noite
                              atravessava a rua para a ir ver,
                              tranquilizar o Marcelino, que, defronte do
                              leito e de gabão pelos ombros, sufocava
                              soluços de amante, escrevinhando no livro
                              de contas.» (p. 114)
                          70
                              «Começava a ser conhecido como médico.
                              Tinha visitas no consultório -
                              ordinariamente bacharéis, seus
                              contemporâneos, que sabendo-o rico o
                              consideravam gratuito, e lá entravam
                              murchos e com má cara, a contar a velha e
                              mal disfarçada história de ternuras
                              funestas. Salvara de um garrotilho a filha
                              de um brasileiro, ao Aterro - e ganhara aí
                              a sua primeira libra, a primeira que pelo
                              seu trabalho ganhava um homem da sua
                              família. [...] carlos já falava a sério da
                              sua carreira. Escrevera, com laboriosos
                              requintes de estilista, dois artigos para
                              a «Gazeta Médica», e pensava em fazer um
                              livro de ideias gerais que se devia chamar
                              «Medicina Antiga e Moderna». De resto
                              ocupava-se sempre dos seus cavalos, do seu
                              luxo, do seu bricabraque. [...] 
                              atraía-o singularmente a antiga ideia do
                              Ega, a criação de uma revista, que
                              dirigisse o gosto, pesasse na política,
                              regulasse a sociedade, fosse a força
                              pensante de Lisboa...» (p. 129)
                          71
                              «Carlos, no entanto, fumando
                              preguiçosamente, continuava a falar na
                              Gouvarinho e nessa brusca saciedade que o
                              invadira, mal trocara com ela três
                              palavras numa sala. E não era a primeira
                              vez que tinha desses falsos arranques de
                              desejo, vindo quase com as formas de amor,
                              ameaçando absorver, pelo menos por algum
                              tempo, todo o seu ser, e resolvendo-se em
                              tédio, em «seca».» 
                              (p. 151)
                          [...]
                          «Insensivelmente,
                              irresistivelmente, Carlos achou-se com os
                              lábios nos lábios dela. [...]
                          Daí
                              a um momento estavam ambos de pé: Carlos,
                              junto do busto, coçando a barba, com o ar
                              embaraçado, e já vagamente arrependido
                              [...] (p. 297)
                          [...] 
                          «Mas
                              Carlos vinha de lá enervado, amolecido,
                              sentindo já na alma os primeiros bocejos
                              da saciedade. [...] ele ia pensando como
                              se poderia desembaraçar da sua tenacidade,
                              do seu ardor, do seu peso... É que a
                              condessa ia-se tornando absurda com aquela
                              determinação ansiosa e audaz de invadir
                              toda a sua vida, tomar nela o lugar mais
                              largo e mais profundo - como se o primeiro
                              beijo trocado tivesse unido não só os
                              lábios de ambos um momento, mas os seus
                              destinos também e para sempre.» (p. 301/302)
                          [...]
                          «A
                              Gouvarinho, num tom amargo, queixava-se
                              [em carta] que, já por duas vezes, Carlos
                              faltara ao rendez-vous em casa da
                              titi, sem lhe ter sequer escrito uma
                              palavra; ela vira nisto uma ofensa, uma
                              brutalidade; e vinha agora intimá-lo, «em
                              nome de todos os sacrifícios que por ele
                              fizera», a que aparecesse na Rua de S.
                              Marçal, domingo ao meio-dia, para terem
                              uma explicação definitiva antes de ela
                              partir para Sintra.
                          -
                              Excelente ocasião de acabar! - exclamou
                              Ega [...]
                          -
                              É o que vou fazer - disse Carlos,
                              começando a calçar as luvas. - Jesus! Que
                              mulher maçadora!» (p. 421)
                          [...]
                          «É
                              um cocheiro de praça - murmurou Baptista.
                              - Diz que está ali uma senhora dentro de
                              uma carruagem que lhe quer falar.
                          -
                              Que senhora?
                          [...]
                          Que
                              alívio! Era a Gouvarinho! Então, na sua
                              indignação, Carlos foi brutal.
                          -
                              Que diabo de tolice é esta? Que quer?» (p.
                              441)
                          [...]
                          «Teve
                              então horror à Gouvarinho; brutalmente,
                              sem piedade, repeliu-a para o canto do coupé.
                          -
                              Basta! Tudo isto é absurdo... As nossas
                              relações estão acabadas, não temos mais
                              nada que nos dizer!
                          [...]
                          Pois
                              bem! Vai, deixa-me! Vai para a outra, para
                              a brasileira! [...]
                          Ele
                              voltou-se, com os punhos fechados, como
                              para a espancar; e na tipóia escura, onde
                              já havia um vago cheiro de verbena, os
                              olhos de ambos, sem se verem, dardejavam o
                              ódio que os enchia... Carlos bateu
                              raivosamente no vidro.
                          [...]
                          O
                              calhambeque parou. Carlos pulou para fora,
                              fechou de estalo a portinhola; e sem uma
                              palavra, sem erguer o chapéu, virou
                              costas, abalou a grandes passadas para o
                              Ramalhete, trémulo ainda, cheio de ideias
                              de rancor, sob a paz da noite estrelada.»
                              (p. 446)
                          72
                              «Ega, horrorizado, apertava as mãos na
                              cabeça - quando do outro lado Carlos
                              declarou que o mais intolerável no realismo eram os
                              seus grandes ares científicos, a sua
                              pretensiosa estética deduzida de uma
                              filosofia alheia, e a invocação de Claude
                              Bernard, do experimentalismo, do
                              positivismo, de Stuart Mill e de Darwin, a
                              propósito de uma lavadeira que dorme com
                              um carpinteiro!» (p. 164)
                          73
                              «Era realmente sincero. Desde que Carlos
                              habitava Lisboa, tivera ali, naquele moço
                              gordo e bochechudo, sem o saber, uma
                              adoração muda e profunda; o próprio verniz
                              dos seus sapatos, a cor das suas luvas
                              eram para o Dâmaso motivo de veneração, e
                              tão importantes como princípios.
                              Considerava Carlos um tipo supremo de
                              chique, do seu querido chique, um Brummel,
                              um D' Orsay, um Morny - uma «destas coisas
                              que só se vêem lá fora», como ele dizia
                              arregalando os olhos.» (p. 177)
                          74
                              «Carlos saía pouco de casa. Trabalhava no
                              seu livro. Aquela revoada de clientela que
                              lhe dera esperanças de uma carreira cheia,
                              activa, tinha passado miseravelmente, sem
                              se fixar; restavam-lhe três doentes no
                              bairro; e sentia agora que as suas
                              carruagens, os cavalos, o Ramalhete, os
                              hábitos de luxo, o condenavam
                              irremediavelmente ao diletantismo. Já o
                              fino dr. Teodósio lhe dissera um dia,
                              francamente: «Você é muito elegante para
                              médico! As suas doentes, fatalmente,
                              fazem-lhe olho! Quem é o burguês que lhe
                              vai confiar a esposa dentro de uma
                              alcova?... Você aterra o pater-famílias!»
                              O laboratório mesmo prejudicara-o. Os
                              colegas diziam que o Maia, rico,
                              inteligente, ávido de inovações, de
                              modernismos, fazia sobre os doentes
                              experiências fatais. Tinha-se troçado
                              muito a sua ideia, apresentada na «Gazeta
                              Médica», a prevenção das epidemias pela
                              inoculação dos vírus. Consideravam-no um
                              fantasista.» (p. 187)
                          75
                              «Então em volta de Carlos foi uma
                              desconsolação, um longo murmúrio de
                              lassidão. Todos perdiam; ele apanhava a poule,
                              ganhava as apostas, empolgava tudo. Que
                              sorte! Que chance! [...]
                          -
                              Ah, monsieur - exclamou a vasta ministra
                              da Baviera, furiosa - mefiez-vous... Vous
                              connaissez de proverbe: heureux au jeu...»
                              (p. 336)
                          76
                              «Ora na Europa o homem requintado já não
                              ri - sorri regeladamente, lividamente. Só
                              nós aqui, neste canto do mundo bárbaro,
                              conservamos ainda esse dom supremo, essa
                              coisa bendita e consoladora - a barrigada
                              de riso!...
                          -
                              Que diabo estás tu a olhar?
                          Era
                              o consultório, o antigo consultório de
                              Carlos - onde agora, pela tabuleta,
                              parecia existir um pequeno atelier
                              de modista. Então bruscamente os dois
                              amigos recaíram nas recordações do
                              passado. Que estúpidas horas Carlos ali
                              arrastara, com a «Revista dos Dois
                              Mundos», na espera vã dos doentes, cheio
                              ainda de fé nas alegrias do trabalho!...
                              [...]
                          -
                              Em que tudo ficou!
                          -
                              Em que tudo ficou! Mas rimos bastante!
                              Lembras-te daquela noite em que o pobre
                              marquês queria levar ao consultório a
                              Paca, para utilizar enfim o divã, móvel de
                              serralho?...» (p. 700)
                          77
                              «Ega ergueu-se, atirou um gesto desolado:
                          -
                              Falhámos a vida, menino!
                          [...]
                          -
                              E que somos nós? - exclamou Ega. - Que
                              temos nós sido desde o colégio, desde o
                              exame de latim? Românticos: isto é,
                              indivíduos inferiores que se governam na
                              vida pelo sentimento, e não pela razão...
                          Mas
                              Carlos queria realmente saber se, no
                              fundo, eram mais felizes esses que se
                              dirigiam só pela razão, não se desviando
                              nunca dela, torturando-se para se manter
                              na sua linha inflexível, secos, hirtos,
                              lógicos, sem emoção até ao fim...
                          -
                              Creio que não - disse o Ega.» (pp.
                              713/714)
                          78
                              «Riram ambos. Depois Carlos, outra vez
                              sério, deu a sua teoria da vida, a teoria
                              definitiva que ele deduzira da experiência
                              e que agora o governava. Era o fatalismo
                              muçulmano. Nada desejar e nada recear...
                              Não se abandonar a uma esperança - nem a
                              um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem
                              e o que foge, com a tranquilidade com que
                              se acolhem as naturais mudanças de dias
                              agrestes e de dias suaves. E, nesta
                              placidez, deixar esse pedaço de matéria
                              organizada que se chama o Eu ir-se
                              deteriorando e decompondo até reentrar e
                              se perder no infinito Universo...
                              Sobretudo não ter apetites. E, mais que
                              tudo, não ter contrariedades.»
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