-  
                              
Carlos
                                          vê a mulher do Hotel Central1 - consequentemente
                                        «interessa-se» por Dâmaso,
                                        interroga-o2;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos sonha com
                                          ela3;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos
                                          interessa-se por Castro Gomes4;
                                
                             
                            -  
                              
Nova «aparição»5;
                                
                             
                            -  
                              
Visão rápida no
                                          Aterro6;
                                
                             
                            -  
                              
Taveira fala dos
                                          Castro Gomes - Carlos
                                          interroga-o7;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos decide ir a
                                          Sintra - procura em vão8;
                                
                             
                            -  
                              
Por intermédio de
                                          Dâmaso, vai ver Rosa -
                                          primeiro contacto com o
                                          ambiente em que «ela» vive9;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos insiste com
                                          Dâmaso na obtenção de
                                          informações10;
                                
                             
                            -  
                              
Nova visão rápida
                                          no Aterro11;
                                
                             
                            -  
                              
Dâmaso fala dos
                                          Castro Gomes12;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos faz
                                          projectos sobre o possível
                                          encontro nas corridas13;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos e Maria
                                          Eduarda encontram-se
                                          fugazmente, perto do Aterro14;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos elabora o
                                          plano da visita aos Olivais15;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos descobre
                                          que «ela» se dirige a casa de
                                          Cruges16;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos espera em
                                          vão nas corridas - procura e
                                          encontra Dâmaso, descobre a
                                          morada «dela»17;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos passeia na
                                          Rua de S. Francisco18;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos recebe o
                                            bilhete de Maria Eduarda19;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos vai à Rua
                                          de S. Francisco20;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos encontra-se
                                          com Maria Eduarda - reflecte
                                          sobre o encontro21;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos percorre a
                                          Rua de S. Francisco22;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos inicia a
                                          série de visitas23;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos encontra-se
                                          com Dâmaso, em casa de Maria
                                          Eduarda - fornece explicações
                                          a Dâmaso24;
                                
                             
                            -  
                              
Ega interroga
                                          Carlos25;
                                
                             
                            -  
                              
A condessa de
                                          Gouvarinho refere-se "à
                                          brasileira"26;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos reflecte
                                          acerca da «tagarelice de
                                          Dâmaso» - dá explicações à
                                          condessa27;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos visita
                                            Maria Eduarda e fala-lhe do
                                            seu amor - correspondência
                                            de Maria Eduarda28;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos revela o
                                          plano da ida para os Olivais29;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos conta tudo
                                          a Ega30;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos prepara a
                                          ida aos Olivais31;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos passeia na
                                          Rua de S. Francisco32;
                                
                             
                            -  
                              
Visita aos
                                            Olivais - iniciam-se as
                                            relações amorosas entre
                                            Carlos e Maria Eduarda33;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos pensa em
                                          Maria Eduarda34;
                                
                             
                            -  
                              
A condessa de
                                          Gouvarinho refere-se «à
                                          brasileira»35;
                                
                             
                            -  
                              
Taveira refere a
                                          Carlos as ameaças de Dâmaso36;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos faz
                                          projectos em relação a Maria
                                          Eduarda - preocupa-se com o
                                          avô37;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos e Maria
                                          Eduarda encontram-se
                                          diariamente na Toca38;
                                
                             
                            -  
                              
Maria Eduarda
                                          visita o Ramalhete39;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos faz planos40;
                                
                             
                            -  
                              
Castro Gomes
                                          visita Carlos - reacções41;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos vai aos
                                          Olivais42;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos encontra-se
                                          com Maria Eduarda - nova
                                            fase na vida de ambos (a
                                            hipótese de casamento)43;
                                
                             
                            -  
                              
Maria Eduarda dá
                                          explicações sobre a vida
                                          passada44;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos fala a Ega45;
                                
                             
                            -  
                              
Ega encontra-se
                                          com Maria Eduarda46;
                                
                             
                            -  
                              
Cruges visita a
                                          «Toca»47;
                                
                             
                            -  
                              
O marquês é
                                          apresentado a Maria Eduarda48;
                                
                             
                            -  
                              
Inicia-se a série
                                          de reuniões de amigos na
                                          «Toca»49;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos dá lições a
                                          Rosa50;
                                
                             
                            -  
                              
Surge a questão do
                                          artigo na «Corneta do Diabo»51;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos, pela primeira
                                          vez, questiona o casamento com
                                          Maria52; (a)
                                
                             
                            -  
                              
Carlos e Maria
                                          Eduarda regressam a Lisboa53;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos, Maria
                                          Eduarda e Ega conversam sobre
                                          o sarau54;
                                
                             
                            -  
                              
Guimarães entrega
                                          a Ega o cofre de Maria
                                          Monforte55;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos conhece
                                            a verdade - revolta-se56;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos vai à Rua
                                          de S. Francisco57;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos tem
                                            relações com Maria Eduarda
                                          - o incesto58;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos tem medo -
                                          hipótese do suicídio59;
                                
                             
                            -  
                              
Morre  Afonso da
                                            Maia - Carlos reconhece
                                          e aceita «o castigo»60;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos
decide
                                          afastar-se61;
                                
                             
                            -  
                              
Maria Eduarda, por
                                          intermédio de Ega, 
                                          conhece a verdade62;
                                
                             
                            -  
                              
Maria
Eduarda
                                          parte63;
                                
                             
                            -  
                              
Carlos refere a
                                          Ega a notícia do casamento de
                                          Maria Eduarda64;
                                
                             
                            - 
                              
Carlos recorda «a
                                          semana terrível»65.
                                
                              
                                - 
                                  
Obs.:
As
                                          frases ou expressões a negrito
                                          correspondem, de acordo com os
                                          autores, aos momentos
                                          dinâmicos da narrativa.
                                  
                                 
                                - 
                                  
(a)
                                          Sequência encaixada pelo autor
                                          desta página por a considerar
                                          relevante.
                                  
                                 
                              
                             
                          
                          
                            Gandra, Maria António /
                                    Oliveira, Luís Amaro de, Caderno
                                      Para Uma Direcção de Leitura de OS
                                      MAIAS, Porto Editora, Ldª,
                                    Porto, 1987 
                          
                          topo 
                          
                            
                            Extractos
da
                                      obra
                                    
                          
                          1 «Entravam
                              então no peristilo do Hotel Central - e
                              nesse momento um coupé da
                              Companhia, chegando a largo trote do lado
                              da Rua do Arsenal, veio estacar à porta.
                          Um esplêndido preto, já grisalho,
                              de casaca e calção, correu logo à
                              portinhola; de dentro um rapaz muito
                              magro, de barba muito negra, passou-lhe
                              para os braços uma deliciosa cadelinha
                              escocesa, de pêlos esguedelhados, finos
                              como seda e cor de prata; depois
                              apeando-se, indolente e poseur,
                              ofereceu a mão a uma senhora alta, loira,
                              com um meio véu muito apertado e muito
                              escuro que realçava o esplendor da sua
                              carnação ebúrnea. Craft e Carlos
                              afastaram-se, ela passou diante deles, com
                              um passo soberano de deusa,
                              maravilhosamente bem feita, deixando atrás
                              de si como uma claridade, um reflexo de
                              cabelos de oiro, e um aroma no ar. Trazia
                              um casaco colante de veludo branco de
                              Génova, e um momento sobre as lajes do
                              peristilo brilhou o verniz das suas
                              botinas.» (pp. 156-157);
                          2 «O sr.
                              Dâmaso Salcede, que não despregava os
                              olhos de Carlos, acudiu logo:
                          -
                              Bem sei! Os Castro Gomes... Conheço-os
                              muito... Vim com eles de Bordéus... Uma
                              gente muito chique que vive em Paris.
                          Carlos
                              voltou-se, reparou mais nele,
                              perguntou-lhe, afável e interessando-se:
                          - O sr. Salcede chegou agora de
                              Bordéus?» (pp. 157-158);
                          3 «Baptista
                              trouxera o chá, o charuto do Alencar
                              acabara; e ele continuava na chaise-longue,
                              como amolecido nestas recordações, e
                              cedendo já, num meio adormecimento, à
                              fadiga do longo jantar... E então, pouco a
                              pouco, diante das suas pálpebras cerradas,
                              uma visão surgiu, tomou cor, encheu todo o
                              aposento. Sobre o rio, a tarde morria numa
                              paz elísia. O peristilo do Hotel Central
                              alargava-se, claro ainda. [...]
                          Eram três horas quando se deitou.
                              E apenas adormecera na escuridão dos
                              cortinados de seda, outra vez um belo dia
                              de Inverno morria sem uma aragem, banhado
                              de cor-de-rosa: o banal peristilo do hotel
                              alargava-se, claro ainda na tarde; o
                              escudeiro preto voltava, com a cadelinha
                              nos braços; uma mulher passava, com um
                              casaco de veludo branco de Génova, mais
                              alta que uma criatura humana, caminhando
                              sobre nuvens, com um grande ar de Juno que
                              remonta ao Olimpo [...]» (pp. 184-185);
                          4 «- Outro
                              debute? - perguntou Carlos.
                          -
                              Não, é a besta do Castro Gomes!
                          A
                              "Gazeta Ilustrada" anunciava que "o sr.
                              Castro Gomes, o cavalheiro brasileiro que
                              no Porto fora vítima da sua dedicação por
                              ocasião da desgraça ocorrida na Praça
                              Nova, e de que o nosso correspondente J.
                              T. nos deu uma descrição tão opulenta de
                              colorido realista, acha-se restabelecido e
                              é hoje esperado no Hotel Central. Os
                              nossos parabéns ao arrojado gentleman".
                          -
                              Ora está Sua Excelência restabelecida! -
                              exclamou Dâmaso, atirando para o lado o
                              jornal. - Pois deixa estar que, agora, é a
                              ocasião de lhe dizer na cara o que
                              penso... Aquele Pulha!
                          - Tu exageras - murmurou Carlos,
                              que se apoderara vivamente do jornal, e
                              relia a notícia.» (pp. 193-194);
                          5
                              «Mas Carlos não escutava, nem sorria já.
                              Do fim do Aterro [actual
                              Av. 24 de Julho]
                              aproximava-se, caminhando depressa, uma
                              senhora - que ele reconheceu logo, por
                              esse andar que lhe parecia de uma deusa
                              pisando a Terra [...]» (p. 202);
                          6
                              «Ao outro dia, voltou mais cedo; e, apenas
                              dera alguns passos entre a s árvores,
                              viu-a logo. Mas não vinha só; ao seu lado
                              o marido, esticado, [...] Ao passar, deu
                              um olhar surpreendido a Carlos - como
                              descobrindo enfim entre os bárbaros um ser
                              de linha civilizada, e disse-lhe algumas
                              palavras baixo, a ela.» (p. 204);
                          7 «Taveira
                              vira-o na véspera, num grande landau
                              da Companhia, com uma esplêndida mulher,
                              muito elegante e que parecia
                              estrangeira...
                          -
                              Ora essa! - gritou Carlos. - E com um
                              cadelinha escocesa?
                          -
                              Exactamente, uma cadelinha escocesa, uma griffon
                              cor de prata... Quem são?
                          -
                              E um rapaz magro, de barba muito preta,
                              com um ar inglesado?
                          - Justamente... Muito correcto,
                              um ar sport... Que gente é?» (p.
                              212);
                          8 «- Iam pelo
                              Chiado abaixo; anteontem, às duas horas...
                              Estou convencido que iam para Sintra.
                              [...]  (p. 214)
                          Carlos
                              ficou ainda um momento olhando o jogo, com
                              uma cigarette apagada nos dedos, o
                              mesmo ar distraído: de repente, pareceu
                              tomar uma decisão, atravessou o corredor,
                              entrou na sala de música. Steinbroken fora
                              ao escritório ver  Afonso da Maia, e a
                              partida de whist; e Cruges só,
                              entre duas velas do piano, com os olhos
                              errantes pelo tecto, improvisava para si,
                              melancolicamente.
                          -
                              Dize cá, Cruges - perguntou-lhe Carlos -
                              queres vir amanhã a Sintra? [...]  (p. 216)
                          Correu à Lawrence por um caminho
                              diferente, ávido de uma certeza: - e aí, o
                              criado que lhe apareceu disse-lhe que o
                              sr. Salcede e os senhores Castro Gomes
                              tinham partido na véspera para Mafra...»  (p. 243);
                          9 «- Ainda
                              bem que te encontro, caramba! Quero que
                              venhas daí, que venhas ver um doente... Eu
                              te explicarei... É aquela gente
                              brasileira. Mas, pelo amor de Deus, vem
                              depressa, menino!
                          Carlos
                              erguera-se, pálido:
                          -
                              É ela?
                          -
                              Não é a pequena, esteve a morrer... Mas
                              veste-te, Carlinhos, veste-te, que a
                              responsabilidade é minha!
                          -
                              É um bebé, não é?
                          -
                              Qual bebé!... É uma pequena crescida, de
                              seis anos... Anda daí! [...] (p. 257)
                          Carlos
                              ficou só, na intimidade daquele gabinete
                              de toilette, que nessa manhã ainda
                              não fora arrumado. [...]
                          Mas o olhar de Carlos prendia-se
                              sobretudo a um sofá onde ficara estendido,
                              com as duas mangas abertas, à maneira de
                              dois braços que se oferecem, o casaco
                              branco de veludo lavrado de Génova com que
                              ele a vira, a primeira vez, apear-se à
                              porta do hotel.» 
                              (pp. 260-261);
                          10 «- Agora
                              que te tenho aqui, velhaco, homem fatal,
                              quero o romance... Tu disseste que
                              tinhas um romance. Não te largo.
                              És meu. Venha o romance. Eu sei
                              que os tens sempre bons. Quero o romance!
                          Pouco
                              a pouco Dâmaso sorria, as bochechas
                              esbraseavam-se-lhe de satisfação.
                          -
                              Vai-se fazendo pela vida - disse a
                              estoirar de jactância.
                          -
                              Vocês estiveram em Sintra?...
                          -
                              Estivemos, mas isso não foi divertido... O
                              romance é outro!
                          Desprendeu-se
                              do braço de Carlos, fez um sinal ao
                              cocheiro para que os seguisse, e
                              regalou-se pelo Aterro fora de contar o
                              seu romance.
                          - A coisa é esta... O marido
                              daqui a dias vai para o Brasil, tem lá
                              negócios. E ela fica! Fica com as criadas
                              e com a pequena, à espera, dois ou três
                              meses.»  (pp.
                              265-266);
                          11 «Carlos
                              ao outro dia não saiu de casa, esperando
                              um recado, faiscando de impaciência.
                              Nenhum recado veio. E, duas tardes depois,
                              ao descer para o Aterro - o primeiro
                              encontro que teve, às Janelas Verdes, foi
                              o Castro Gomes, de caleche descoberta, com
                              a mulher ao lado, e a cadelinha no colo.
                          Ela passou, sem o ver. E logo ali
                              Carlos decidiu findar aquela tortura,
                              pedir muito simplesmente ao Dâmaso que o
                              apresentasse ao Castro Gomes, antes de ele
                              partir para o Brasil...»  (p. 291);
                          12 «Na
                              tarde em que ele se vestia para lá ir,
                              Dâmaso apareceu-lhe no quarto, a dar-lhe
                              uma novidade que o enchia de desgosto e de
                              ferro. O telhudo do Castro Gomes mudara de
                              ideia, já não ia ao Brasil! Ficava ali, no
                              Central, até meado do Verão! De sorte que
                              estava tudo estragado... [...]
                          Queixou-se
                              então do Castro Gomes. Em resumo, era um
                              telhudo. E a vida daquele homem era
                              misteriosa... Que diabo estava ele a fazer
                              em Lisboa? Ali havia dificuldades de
                              dinheiro... E eles não se davam bem. Na
                              véspera houvera decerto questão. Quando
                              ele entrara, ela estava com os olhos
                              vermelhos, e enfiada; e ele, nervoso, a
                              passear pela sala, a retorcer a barba...
                              Ambos contrafeitos, uma palavra cada
                              quarto de hora... [...]
                          Queixou-se também dela. [...]
                              Enfim, gente muito esquisita.»  (p. 292);
                          13
                              «No domingo, pois, daí a cinco dias, eram
                              as corridas... E "ela" estaria lá, ele ia
                              conhecê-la, enfim!» 
                              (p. 304);
                          14
                              «Adiante do Grémio, encostado ao passeio,
                              estava um coupé da Companhia, com
                              um trintanário de luvas brancas, esperando
                              junto ao portal. Carlos olhou,
                              casualmente; e viu, debruçado à
                              portinhola, um rosto de criança [...]
                              Reconheceu-a logo. Era Rosa, era Rosicler
                              [...] No fundo do coupé, forrado
                              de negro, destacava um perfil claro de
                              estátua, um tom ondeado de cabelo loiro.
                              Carlos tirou profundamente o chapéu, tão
                              perturbado, que os seus passos hesitaram.
                              "Ela" abaixou a cabeça, de leve; alguma
                              coisa de luminoso, um confuso rubor de
                              emoção, espalhou-se-lhe no rosto.»  (p. 305);
                          15
                              «Depois ia refazendo o plano da visita aos
                              Olivais, mais largo agora, mais brilhante.
                              Porque não iria ela também ver as
                              curiosidades de Craft? Que tarde
                              encantadora, que festa, que lindo idílio!»
                             (pp. 306-307);
                          16 «- Como
                              é que ela conhece o Cruges? - perguntou de
                              repente o marquês, com um tom desconfiado,
                              desembaraçando-se do cache-nez.
                          Carlos
                              olhou para ele, como mal acordado.
                          - Ela quem? Aquela senhora? Como
                              conhece o Cruges?... Homem, sim, tem você
                              razão!... Aquela era a casa do Cruges!...
                              a carruagem estava parada à porta do
                              Cruges!...»  (p.
                              307);
                          17 «A
                              condessa de Gouvarinho ainda não viera. E
                              não estava também aquela que os olhos de
                              Carlos procuravam, inquietamente e sem
                              esperança. [...]
                          Eram
                              quase três horas, e agora decerto "ela" já
                              não vinha: e a condessa de Gouvarinho não
                              aparecia também... [...] (pp. 317-319);
                          Carlos
                              descia da tribuna, sem ter descoberto o
                              Dâmaso - quando deu justamente de frente
                              com ele, dirigindo-se para a escada,
                              afogueado, flamante, na sua famosa
                              sobrecasaca branca.
                          -
                              Onde diabo tens tu estado, criatura? [...]
                          -
                              Lá partiu [Castro Gomes], e ela já está
                              instalada. Até já antes de ontem a fui
                              visitar, mas não estava em casa... Sabes
                              do que tenho medo? É que ela, nestes
                              primeiros tempos, por causa da vizinhança,
                              como está só, não queira que eu lá vá
                              muito... Que te parece?
                          -
                              Talvez... E onde mora ela?
                          Em quatro palavras, Dâmaso
                              explicou a instalação de madame.
                              Era muito engraçado, morava no prédio do
                              Cruges!» (pp. 337-338);
                          18
                              «Daí a pouco, a trote largo no faetonte,
                              Carlos descia o Chiado, dava a volta para
                              a Rua de S. Francisco. Ia numa perturbação
                              deliciosa e singular, com aquela certeza
                              de que ela estava só na casa do Cruges...»
                              (p. 341);
                          19 «No
                              peristilo, o velho guarda-portão esperava,
                              descoberto, com uma carta na mão para
                              Carlos. [...]
                          Era
                              uma letra inglesa de mulher, num envelope
                              largo, lacrado com um sinete de armas.
                              Carlos ali mesmo abriu-a, e, logo à
                              primeira linha, teve um movimento tão
                              vivo, de tão bela surpresa,
                              iluminando-se-lhe tanto o rosto, que Craft
                              do lado perguntou sorrindo:
                          -
                              Aventura? Herança?
                          Carlos
                              vermelho, meteu a carta no bolso, e
                              murmurou:
                          -
                              Um bilhete apenas, um doente...
                          Era apenas um doente, era apenas
                              um bilhete, mas começava assim: "Madame
                              Castro Gomes apresenta os sus respeitos ao
                              sr. Carlos da Maia, e roga-lhe o
                              obséquio..." Depois, em duas breves
                              palavras, pedia-lhe para ir ver na manhã
                              seguinte, o mais cedo possível, uma pessoa
                              de família, que se achava incomodada.» (p.
                              343);
                          20
                              «Na manhã seguinte, Carlos, que se erguera
                              cedo, veio a pé do Ramalhete até à Rua de
                              S. Francisco, a casa de Madame Gomes.»  (p. 345);
                          21
                              «Voltou-se, viu Maria Eduarda diante de
                              si.
                          Foi
                              como uma inesperada aparição - e vergou
                              profundamente os ombros, menos a saudá-la
                              que a esconder a tumultuosa onda de sangue
                              que sentia abrasar-lhe o rosto. [...]
                              Obedecendo ao seu gesto risonho, Carlos
                              pousou-se embaraçadamente à borda do sofá
                              de repes. E depois de um instante de
                              silêncio, que lhe pareceu profundo, quase
                              solene, a voz de Maria Eduarda ergueu-se,
                              uma voz rica e lenta, de um tom de ouro
                              que acariciava.
                          Através do seu enleio, Carlos
                              percebia vagamente que ela lhe agradecia
                              os cuidados que tivera com Rosa.»  (p. 348);
                          22 «Carlos,
                              só, dentro do coupé, voltando à
                              Baixa, sentia uma alegria triunfante com
                              aquela partida da condessa, e a inesperada
                              jornada do Dâmaso. Era como uma dispersão
                              providencial de todos os importunos: e
                              assim se fazia em torno da Rua de S.
                              Francisco uma solidão - com todos os seus
                              encantos, e todas as suas cumplicidades.
                          No Cais do Sodré deixou a
                              carruagem, subiu a pé pelo Ferregial, veio
                              passar diante das janelas na Rua de S.
                              Francisco. [...] Duas vezes percorreu a
                              Rua de S. Francisco; e recolheu para casa,
                              sob a noite estrelada, devagar, ruminando
                              a doçura daquele grande amor.» (pp. 364-365);
                          23
                              «Então todos os dias, durante semanas,
                              teve essa hora deliciosa, esplêndida,
                              perfeita, "a visita à inglesa".»  (p. 365);
                          24 «Uma
                              tarde, Carlos conversava com Maria
                              Eduarda, acariciando "Niniche", que se lhe
                              viera sentar nos joelhos, quando Romão
                              entreabriu discretamente o reposteiro, e
                              baixando a voz, com um ar embaraçado, um
                              ar de cumplicidade, murmurou:
                          -
                              É o sr. Dâmaso!...
                          Ela
                              olhou Romão, surpreendida daqueles modos,
                              e quase escandalizada.
                          -
                              Pois bem, mande entrar!
                          E
                              Dâmaso rompeu pela sala, carregado de luto
                              [...]  (p. 373);
                          Nessa
                              noite, depois de jantar, Carlos, só no seu
                              quarto, fumava, enterrado numa poltrona,
                              relendo uma carta do Ega recebida nessa
                              manhã - quando apareceu o Dâmaso. E, sem
                              pousar mesmo o chapéu, logo da porta,
                              exclamou, com o mesmo espanto da manhã:
                          -
                              Então dize-me cá! Como diabo te vou eu
                              encontrar hoje com a brasileira?... Como a
                              conheceste tu? Como foi isso?
                          Sem
                              mover a cabeça do espaldar da poltrona,
                              cruzando as mãos sobre os joelhos em cima
                              da carta do Ega, Carlos, agora cheio de
                              bom humor, disse, com uma doce repreensão
                              paternal:
                          -
                              Pois então tu vais expor a uma senhora as
                              tuas opiniões lúbricas sobre as
                              lavradeiras de Penafiel! [...]
                          Carlos, imperturbável, cerrando
                              os olhos como para se recordar, começou,
                              num tom lento e solene de recitativo.» (pp. 377-378);
                          25 «Na
                              segunda-feira seguinte chuviscava quando
                              Carlos e Ega, no coupé fechado,
                              partiram para o jantar dos Gouvarinhos.
                              [...]
                          De
                              repente o Ega, que fumava em silêncio,
                              abotoado no seu paletó de Verão, bateu no
                              joelho de Carlos, e entre risonho e sério:
                          -
                              Dize-me uma coisa, se não é segredo
                              sacrossanto... Quem é essa brasileira com
                              quem tu agora passas todas as tuas manhãs?
                          Carlos
                              ficou um instante aturdido, com os olhos
                              no Ega.
                          -
                              Quem te falou nisso?
                          - Foi o Dâmaso que mo disse. Isto
                              é, o Dâmaso que mo rugiu...» (pp. 386-387);
                          26 «-
                              Esperei meia hora; mas compreendi logo que
                              estaria entretido com a brasileira... (p.
                              389);
                          [...]
                          -
                              Veja a senhora condessa! Eu nem tive mesmo
                              ideia de ir à Rússia. Há assim uma
                              infinidade de coisas que se dizem e que
                              não são exactas... E se se faz uma alusão
                              irónica a elas, ninguém compreende a
                              alusão, nem a ironia...
                          A
                              condessa não respondeu logo, dando com o
                              olhar uma ordem muda ao escudeiro. Depois,
                              com um sorriso pálido:
                          - No fundo de tudo que se diz há
                              sempre um facto, ou um bocado de facto que
                              é verdadeiro. E isso basta... Pelo menos a
                              mim basta-me...» (p. 391);
                          27 «- Que
                              tolice foi essa da brasileira?...
                              Quem lhe disse isso?
                          Ela
                              confessou-lhe logo que fora o Dâmaso... O
                              Dâmaso viera contar-lhe o entusiasmo de
                              Carlos por essa senhora, e as manhãs
                              inteiras que lá passava, todos os dias, à
                              mesma hora... Enfim, o Dâmaso fizera-lhe
                              claramente entrever uma liaison.
                          Carlos encolheu os ombros. Como
                              podia ela acreditar no Dâmaso? Devia
                              conhecer-lhe bem a tagarelice, a
                              imbecilidade...» (p. 395);
                          28
                              «Calou-se; mas os seus belos olhos ficaram
                              um instante pousados nos de Carlos, como
                              esquecidos, e deixando fugir
                              irresistivelmente um pouco do segredo que
                              ela retinha no seu coração.
                          Ele
                              murmurou:
                          -
                              Por mais que eu fizesse, ficaria bem pago
                              de tudo se me olhasse outra vez assim.
                          Uma
                              onda de sangue cobriu toda a face de Maria
                              Eduarda.
                          -
                              Não diga isso...
                          -
                              E que necessidade há que eu lho diga? Pois
                              não sabe perfeitamente que a adoro, que a
                              adoro, que a adoro!
                          [...]
                          -
                              Escute! Sabe bem o que eu sinto por si,
                              mas escute... Antes que seja tarde, há uma
                              coisa que lhe quero dizer...
                          [...]
                              Só via que ela tremia, só via que ela o
                              amava... E, com a gravidade forte de um
                              acto de posse, tomou-lhe lentamente as
                              mãos, que ela lhe abandonou submissa de
                              repente, já sem força, e vencida. E
                              beijava-lhas ora uma, ora outra, e as
                              palmas, e os dedos, devagar, murmurando
                              apenas:
                          -
                              Meu amor! meu amor! meu amor!
                          Maria
                              Eduarda caíra pouco a pouco sobre a
                              cadeira; e, sem retirar as mãos, erguendo
                              para ele os olhos cheios de paixão,
                              enevoados de lágrimas, balbuciou ainda,
                              debilmente, numa derradeira suplicação:
                          - Há uma coisa que eu lhe queria
                              dizer!...» (pp. 408-409);
                          29 «- Você
                              quer-me vender tudo isto, Craft?
                          O
                              outro respondeu, sem pestanejar, e com as
                              mãos nas algibeiras:
                          -
                              A la disposicion de usted... [...]
                          Com
                              que alegria, ao deixar os Olivais, correu
                              à Rua de S. Francisco, a anunciar a Maria
                              Eduarda que lhe arranjara enfim
                              definitivamente uma linda casa de campo!
                              [...]
                          E assim se achava ela de repente
                              com uma vivenda pitoresca, mobilada num
                              belo estilo, deliciosamente saudável...»
                              (pp. 412-413);
                          30 «E
                              contou-lhe tudo miudamente, difusamente,
                              desde o primeiro encontro, à entrada do
                              Hotel Central, no dia do jantar ao Cohen.
                          Ega escutava-o, sem uma palavra,
                              enterrado no fundo do sofá. Supusera um
                              romancezinho, desses que nascem e morrem
                              entre um beijo e um bocejo: e agora, só
                              pelo modo como Carlos falava daquele
                              grande amor, ele sentia-o profundo,
                              absorvente, eterno, e para bem ou para mal
                              tornando-se daí por diante, para sempre, o
                              seu irreparável destino.» (p. 417);
                          31
                              «Mas eram quase onze horas, e ele tinha de
                              ir aos Olivais. No dia seguinte, sábado,
                              dia belo entre todos e solene para o seu
                              coração, Maria Eduarda devia enfim visitar
                              a quinta do Craft [...] Nessa manhã ele
                              mandara aos Olivais dois criados para
                              arejar as salas, espanejar, encher tudo de
                              flores. Agora ia lá, como um devoto, ver
                              se estava bem enfeitado o sacrário da sua
                              deusa...» (p. 422);
                          32
                              «Qual maçada! E até, para o escutarem
                              melhor, penetraram na Rua de S. Francisco,
                              mais silenciosa.» (p. 427);
                          33 «Ao
                              outro dia, por uma radiante manhã de
                              Julho, Carlos saltava do coupé,
                              com um molho de chaves, diante do portão
                              da quinta do Craft. Maria Eduarda devia
                              chegar às dez horas, só, na sua carruagem
                              da Companhia. [...]
                          Só
                              o meter a chave devagar e com uma inútil
                              cautela na fechadura daquela morada
                              discreta, foi para Carlos um prazer. (p.
                              429);
                          [...]
                          Um largo brilho de relâmpago
                              alumiou o rio. Maria teve medo, entraram
                              na alcova. [...] Fora um trovão rolou
                              lento e surdo. Mas Maria já não o ouvia,
                              caída nos braços de Carlos. Nunca o
                              desejara, nunca o adorara tanto! Os seus
                              beijos ansiosos pareciam tender mais longe
                              que a carne, traspassá-lo, querer
                              sorver-lhe a vontade e a alma - e toda a
                              noite, entre esses brocados radiantes, com
                              os cabelos soltos, divina na sua nudez,
                              ela lhe apareceu realmente como a deusa
                              que ele sempre imaginara, que o arrebatava
                              enfim, apertado ao seu seio imortal, e com
                              ele pairava numa celebração de amor, muito
                              alto, sobre nuvens de oiro...» (p. 459);
                          34
                              «E de repente, enquanto a condessa
                              balbuciava, como tonta, pendurada do seu
                              pescoço - ele viu surgir na alma, viva e
                              resplandecente, a imagem de Maria Eduarda,
                              tranquila àquela hora na sua sala de repes
                              vermelho, fazendo serão, confiando nele,
                              pensando nele, relembrando as felicidades
                              da véspera, quando a Toca, cheia dos seus
                              amores, dormia, branca entre as árvores...
                              Teve então horror à Gouvarinho;
                              brutalmente, sem piedade, repeliu-a para o
                              canto do coupé.» (pp. 445-446);
                          35
                              «- Pois bem! Vai, deixa-me! Vai para a
                              outra, para a brasileira! Eu conheço-a, é
                              uma aventureira que tem o marido
                              arruinado, e precisa quem lhe pague as
                              modistas!...» (p. 446);
                          36
                              «[Taveira] Arrastou Carlos: e pelo Chiado
                              abaixo falou-lhe logo no Dâmaso. [...]
                              Terrível, aquele Dâmaso! [...]
                          - Em todo o caso é uma rês
                              traiçoeira, e deves ter cautela com
                              ele...» (pp. 448-449);
                          37 «Todo o
                              caminho, até ao Ramalhete, Carlos foi
                              pensando em seu pai e nesse passado, assim
                              rememorado e estranhamente ressurgido pela
                              presença daquele patriarca, antigo
                              alquilador, que fizera com ele tantas
                              troças! E isto trazia conjuntamente outra
                              ideia, que nestes últimos dias já o
                              atravessara, pertinaz e torturante,
                              dando-lhe, no meio da sua radiante
                              felicidade, um sombrio arrepio de dor...
                              Carlos pensava no avô.
                          Estava agora decidido que Maria
                              Eduarda e ele partiriam para Itália, nos
                              fins de Outubro. Castro Gomes, na sua
                              última carta do Brasil, seca e
                              pretensiosa, falava "em aparecer por
                              Lisboa, com as elegâncias do frio, lá para
                              meado de Novembro"; - e era necessário
                              antes disso que estivessem já longe [...]
                              Somente havia nisto um espinho - o avô!»
                              (p. 451);
                          38
                              «Um largo brilho de relâmpago alumiou o
                              rio. Maria teve medo, entraram na alcova.
                              [...] Fora um trovão rolou lento e surdo.
                              Mas Maria já não o ouvia, caída nos braços
                              de Carlos. Nunca o desejara, nunca o
                              adorara tanto! Os seus beijos ansiosos
                              pareciam tender mais longe que a carne,
                              traspassá-lo, querer sorver-lhe a vontade
                              e a alma - e toda a noite, entre esses
                              brocados radiantes, com os cabelos soltos,
                              divina na sua nudez, ela lhe apareceu
                              realmente como a deusa que ele sempre
                              imaginara, que o arrebatava enfim,
                              apertado ao seu seio imortal, e com ele
                              pairava numa celebração de amor, muito
                              alto, sobre nuvens de oiro...» (p. 459);
                          39
                              «Foi no sábado. Carlos veio muito cedo
                              para o Ramalhete: e o seu coração batia
                              com a deliciosa perturbação de um primeiro
                              encontro, quando sentiu parar a carruagem
                              de Maria e os seus vestidos escuros
                              roçarem o veludo cor de cereja que forrava
                              a escada discreta dos seus quartos. O
                              beijo que trocaram, na antecâmara, teve a
                              profunda doçura de um primeiro beijo.» (p.
                              467);
                          40
                              «Era um truque simples. Consistia em
                              partir ele só para Madrid, no começo de
                              uma certa "viagem de estudo", para que já
                              preparara o avô em Santa Olávia. Maria
                              ficava na Toca, durante um mês. Depois
                              tomava o paquete para Bordéus: e era aí
                              que Carlos se reunia com ela, a começarem
                              essa existência de felicidade e romance
                              que as flores de Itália deviam perfumar...
                              Na Primavera ele voltava a Lisboa,
                              deixando Maria instalada no seu ninho: e
                              então, pouco a pouco, ia revelando ao avô
                              aquela ligação, a que o prendia a honra, e
                              que o forçaria agora a viver regularmente
                              longos meses numa outra terra que se
                              tornara pátria do seu coração.» (p. 476);
                          41 «Não era
                              o correio. Era apenas um bilhete que o
                              Baptista trazia numa salva: e vinha tão
                              perturbado que anunciou "um sujeito, ali
                              fora, na antecâmara, numa carruagem à
                              espera..."
                          Carlos
                              olhou o bilhete, empalideceu
                              terrivelmente. [...]
                          Era
                              Castro Gomes!  (p.
                              477);
                          [...]
                          -
                              Eu recebi no Rio de Janeiro, antes de
                              partir, este escrito anónimo... [...] E
                              desejo também afirmar-lhe que todo o
                              conteúdo dele me deixou perfeitamente
                              indiferente... Aqui o tem. [...]
                          Um
                                homem que teve a honra de apertar a mão
                                de Vossa Excelência - eu dispensava
                              a honra... - que teve a honra de
                                apertar a mão a Vossa Excelência e de
                                apreciar o seu cavalheirismo, julga
                                dever preveni-lo que sua mulher é, à
                                vista de toda a Lisboa, a amante de um
                                rapaz muito conhecido aqui, Carlos
                                Eduardo da Maia, que vive numa casa às
                                Janelas Verdes, chamada o Ramalhete.
                                [...]
                          -
                              O meu caso é este, sr. Carlos da Maia. Há
                              pessoas em Lisboa que me não conhecem
                              decerto, mas que sabem a esta hora que
                              existe algures, em Paris, no Brasil, ou no
                              Inferno, um certo Castro Gomes, que tem
                              uma mulher bonita, e que a mulher desse
                              Castro Gomes tem em Lisboa um amante. Isto
                              é desagradável, sobretudo por ser falso.
                              [...] É por isso que aqui venho, muito
                              francamente, de gentleman para gentleman,
                              dizer-lhe, como tenho tenção de dizer a
                              outros, que aquela senhora não é minha
                              mulher. [...] 
                          O
                              que importa agora é que eu lhe retiro
                              solenemente o nome que lhe emprestara; e
                              ala fica apenas com o seu, que é Madame
                              Mac Gren. [...]
                          A
                              pequerruchinha que ali anda não é minha
                              filha... Eu conheço a mãe somente há três
                              anos... Vinha dos braços de um qualquer,
                              passou para os meus... Posso pois dizer,
                              sem injúria, que era uma mulher que eu
                              pagava.
                          Completara
                              com esta palavra a humilhação do outro.
                              Estava deliciosamente desforrado. [...]
                          [Carlos]
                              Unira a sua alma arrebatadamente a outra
                              alma nobre e perfeita, longe nas alturas,
                              entre nuvens de oiro; de repente uma voz
                              passava, cheia de rr; as duas
                              almas rolavam, batiam num charco; e ele
                              achava-se tendo nos braços uma mulher que
                              não conhecia, e que se chamava Mac Gren.
                          Mac
                              Gren! Era a Mac Gren!
                          Ergueu-se, com os punhos
                              fechados; e veio-lhe uma revolta
                              furiosa...» (pp. 479-483);
                          42
                              «Daí a pouco rodava pela estrada dos
                              Olivais. Já se acendera o gás. E inquieto,
                              no estreito assento, acendendo
                              nervosamente cigarettes que não
                              fumava, sofria já a perturbação daquele
                              encontro difícil e doloroso...» (pp.
                              491-492);
                          43 «Carlos
                              entrou.
                          Lá
                              estava, ainda de capa, esperando de pé,
                              pálida, com toda a alma concentrada nos
                              olhos que refulgiam entre as lágrimas. E
                              correu para ele, arrebatou-lhe as mãos,
                              sem poder falar, soluçando, tremendo toda.
                          Na
                              sua terrível perturbação, Carlos achava só
                              esta palavra, melancolicamente estúpida:
                          -
                              Não sei porque chora, não sei, não há
                              razão para chorar...
                          Ela
                              pôde enfim balbuciar:
                          -
                              Escuta-me, pelo amor de Deus! não digas
                              nada, deixa-me contar-te... [...]
                          A
                              culpa não fora dela! não fora dela! Ele
                              devia ter perguntado àquele homem que
                              sabia toda a sua vida... Fora sua mãe...
                              era horroroso dizê-lo, mas fora por causa
                              dela que conhecera e que fugira com o
                              primeiro homem, o outro, um irlandês...
                              [...]
                          -
                              Mas porque não me disseste, porque não me
                              disseste? Para que foi essa longa mentira?
                              Eu tinha-te amado do mesmo modo! Para que
                              mentiste tu? [...]
                          -
                              Mas eu queria dizer-to - murmurou muito
                              baixo [...] Eu disse-te logo: "Há uma
                              coisa que te quero contar..." Tu nem me
                              deixaste acabar. [cf. p. 409 (excerto 28)]
                          Atirou-se
                              para o chão, como uma criatura vencida e
                              finda, escondendo a face no sofá. E
                              Carlos, indo lentamente ao fundo da sala,
                              voltando bruscamente até junto dela, tinha
                              só a mesma recriminação, "a mentira, a
                              mentira", pertinaz e de cada dia...
                          Só
                              os soluços dela lhe respondiam. [...]
                          -
                              Que queres tu? Tive medo que o teu amor
                              mudasse, que fosse de outro modo... [...]
                          -
                              Não, mentiste em tudo! Tudo era falso,
                              falso o teu casamento, falso o teu nome,
                              falsa a tua vida toda... Nunca mais te
                              poderia acreditar... [...]
                          -
                              E eu? - exclamou ela, caminhando para ele,
                              dominando-o, magnífica e com um esplendor
                              de verdade na face. - E eu? porque hei-de
                              eu acreditar nessa grande paixão que me
                              juravas? O que é que tu amavas então em
                              mim? Dize lá! Era a mulher de outro, o
                              nome, o requinte do adultério, as toilettes?...
                              [...]
                          - Maria, queres casar comigo?»  (pp. 496-502);
                          44 «Nascera
                              em Viena: mas pouco se recordava dos
                              tempos de criança, quase nada sabia do
                              papá, a não ser a sua grande nobreza e a
                              sua grande beleza. [...] Enfim a mamã
                              metera-a num convento ao pé de Tours [...]
                          A mamã ao princípio vinha vê-la
                              todos os meses [...]»  (pp. 506...);
                          45 «Daí a
                              dias Carlos e Ega vinham numa vitória,
                              pela estrada dos Olivais, em caminho da
                              Toca.
                          Toda essa manhã, no Ramalhete,
                              Carlos estivera enfim contando ao Ega o
                              impulso de paixão que o lançara de novo e
                              para sempre, como esposo, nos braços de
                              Maria; e, na confiança absoluta que o
                              prendia ao Ega, revelara-lhe mesmo
                              miudamente a história dela, dolorosa e
                              justificadora.» (p.
                              515);
                          46
                              «Agora, ao aproximar-se da Toca, Ega ia
                              receando o primeiro encontro com Maria
                              Eduarda. Incomodava-o esse enleio, esse
                              rubor que ela não poderia ocultar - certa
                              que, como confidente de Carlos, ele
                              conhecia a sua vida, as suas misérias, as
                              suas relações com Castro Gomes. Por isso
                              hesitara em vir à Toca. Mas também, não
                              aparecer mais a Maria Eduarda, seria
                              marcar, com um relevo quase ofensivo, o
                              desejo caridoso de não molestar o seu
                              pudor... Por isso decidira "dar o mergulho
                              de uma vez". Quem, senão ele, deveria ser
                              o mais apressado em estender a mão à noiva
                              de Carlos?...» (p. 515);
                          47 «Como
                              dizia o Ega, devia esperar, deixar-se
                              ir... E no entanto Maria e ele não
                              poderiam isolar-se ali todo um longo
                              Inverno, sem o calor sociável de alguns
                              amigos em redor. Por isso uma manhã,
                              encontrando o Cruges, que fora o vizinho
                              de Maria e outrora lhe dava notícias da "lady
                              inglesa", pediu-lhe para vir jantar à Toca
                              no domingo.
                          O maestro apareceu numa tipóia, à
                              tardinha, de laço branco e de casaca: e os
                              fatos claros de campo com que encontrou
                              Carlos e Ega, começaram logo a enchê-lo de
                              mal-estar. Toda a mulher, além das Lolas e
                              Conchas, o atarantava, o emudecia...» (p.
                              524);
                          48 «Nesse
                              mesmo momento sentiram um trote de cavalo
                              na estrada - e apareceu o marquês.
                          Foi uma surpresa para Carlos, que
                              o não vira durante esse Verão. O marquês
                              parou logo, tirando profundamente, ao ver
                              Maria, o seu largo chapéu desabado.» (p.
                              525);
                          49
                              «Estas reuniões alegres foram ao
                              princípio, como dizia o Ega, dominicais:
                              mas o Outono arrefecia, bem depressa se
                              despiriam as árvores da Toca, e Carlos
                              acumulou-as duas vezes por semana, nos
                              velhos dias feriados da Universidade,
                              domingos e quintas.» (p. 526);
                          50
                              «Às vezes Carlos dava lições a Rosa - ora
                              de história, contando-lha familiarmente
                              como um conto de fadas, ora de geografia,
                              interessando-a pelas terras onde vivem
                              gentes negras, e pelos velhos rios que
                              correm entre as ruínas dos santuários.
                              Isto era o prazer mais alto de Maria.
                              Séria, muda, cheia de religião, escutava
                              aquele ser bem-amado ensinando sua filha.»
                              (p. 529);
                          51
                              «Caminhando sob as acácias, Carlos abriu a
                              carta do Ega. Era da véspera, com a data:
                              "À noite, à pressa." E dizia: "Lê, nesse
                              trapo que te mando, esse superior pedaço
                              de prosa que lembra Tácito. Mas não te
                              assustes; eu suprimi, mediante pecúnia,
                              toda a tiragem, com excepção de dois
                              números mais que foram, um para a Toca,
                              outro (oh! lógica suprema dos hábitos
                              constitucionais!) para o Paço, para o
                              Chefe do Estado!... Mas esse mesmo não
                              chegará ao seu destino. Em todo o caso
                              desconfio de que esgoto saiu esse enxurro
                              e precisamos providenciar! Vem já!
                              Espero-te às duas. E, como Iago dizia a
                              Cássio, mete dinheiro na bolsa."
                          Inquieto, Carlos descintou o
                              jornal. Chamava-se a "Corneta do Diabo": e
                              na impressão, no papel, na abundância dos
                              itálicos, no tipo gasto, todo ele revelava
                              imundície e malandrice. Logo na primeira
                              página duas cruzes a lápis marcavam um
                              artigo que Carlos, num relance, viu
                              salpicado com o seu nome. E leu isto: "Ora
                              viva, sô Maia! Então já se não vai ao
                              consultório, nem se vêem os doentes do
                              bairro, sô janota? - Esta piada
                              era botada no Chiado, à porta da Havanesa,
                              ao Maia, ao Maia dos cavalos ingleses, um
                              tal Maia do Ramalhete, que abarrota por aí
                              de catita; e o pai Paulino que
                                tem olho e que passava nessa ocasião
                              ouviu a seguinte cornetada:
                              -  É que o sô Maia acha que é
                                mais quente viver nas fraldas de uma
                              brasileira casada, que nem é
                              brasileira nem é casada, e a quem o
                              papalvo pôs casa, aí para os lados dos
                              Olivais, para estar ao fresco!
                              Sempre os há neste mundo!... Pensa o homem
                              que botou conquista; e cá a rapaziada de
                              gosto ri-se, porque o que a gaja lhe quer
                              não são os lindos olhos, são as lindas louras...
                              O simplório, que aí pilecas bifes,
                              que nem que fosse o marquês, o
                              verdadeiro marquês, imaginava que se
                              estava abiscoitando com uma senhora do
                              chique, e do boulevard de Paris, e
                              casada, e titular!... E no fim (não, esta
                              é para a gente deixar estourar o bandulho
                              a rir!) no fim descobre-se que  a
                              tipa era uma cocotte safada, que
                              trouxe para aí um brasileiro já farto
                                dela para a passar cá aos belos
                              lusitanos... E caiu a espiga ao Maia!
                              Pobre palerma! Ainda assim o sô Maia só
                              apanhou os restos de outro, porque a tipa,
                              já antes de ele se enfeitar, tinha pandegado
                              à larga, aí para a Rua de S. Francisco,
                              com um rapaz da fina, que se safou também,
                              porque cá como nós só aprecia a bela
                                espanhola. Mas não obsta a que o sô
                              Maia seja traste! - Pois se assim é,
                              dissemos nós, cautelinha, porque o Diabo
                              cá tem a sua Corneta preparada
                              para cornetear por esse mundo as façanhas
                              do Maia das conquistas. Ora viva,
                              sô Maia!"»  (pp.
                              530-531);
                          52
                              «Ergueu-se, abalado. E então ali, sob
                              essas árvores desfolhadas, onde durante o
                              Verão, quando elas se enchiam de sombra e
                              de murmúrio, ele passeara com Maria,
                              esposa eleita da sua vida - Carlos
                              perguntou, pela primeira vez a si mesmo,
                              se a honra doméstica, a honra social, a
                              pureza dos homens de quem descendia, a
                              dignidade dos homens que dele
                              descendessem, lhe permitiam em verdade
                              casar com ela...» 
                              (p. 533);
                          53
                              «Ia bater uma hora quando a caleche do
                              "Torto" começou a rolar na estrada, ainda
                              encharcada da chuva da noite. Logo adiante
                              da vila, na descida, cruzaram com um coupé
                              que trepava num trote esfalfado. Maria
                              julgou avistar nele de relance o chapéu
                              branco e o monóculo de Ega... Pararam. E
                              era com efeito o Ega [...]»  (p. 535); «Carlos apareceu nessa
                              noite, já tarde, transido de frio, com um
                              monte de bagagens - porque abandonara
                              definitivamente os Olivais. Maria Eduarda
                              regressava também a Lisboa, para o
                              primeiro andar da Rua de S. Francisco
                              [...]»  (p. 564);
                          54
                              «E Ega voltou a falar dos inundados do
                              Ribatejo e do sarau literário e artístico
                              que, em benefício deles, se "ia cometer"
                              no salão da Trindade... Era uma vasta
                              solenidade oficial. Tenores do Parlamento,
                              rouxinóis da literatura, pianistas ornados
                              com o hábito de Sant' Iago, todo o pessoal
                              canoro e sentimental do constitucionalismo
                              "ia entrar em fogo". Os reis assistiam, já
                              se teciam grinaldas de camélias para
                              pendurar na sala. Ele, apesar de demagogo,
                              fora convidado para ler um episódio das
                              "Memórias de Um Átomo": recusara-se, por
                              modéstia, por não encontrar, nas
                              "Memórias", nada tão suficientemente
                              palerma que agradasse à capital. Mas
                              lembrara o Cruges; e o maestro ia ribombar
                              ou arrulhar uma das suas "meditações".
                              Além disso, havia uma poesia social pelo
                              Alencar. Enfim, tudo prenunciava uma
                              imensa orgia...» (pp.
                              536-537);
                          55
                              «Passavam à porta do Hotel Aliança quando
                              Ega sentiu alguém que se apressava, chamar
                              atrás: "Ó ser Ega! Vossa Excelência faz
                              favor, sr. Ega?..." - Parou, reconheceu o
                              chapéu recurvo, as barbas do sr.
                              Guimarães.
                          -
                              Vossa Excelência desculpe! - exclamou o
                              demagogo esbaforido. - Mas vi-o descer,
                              queria-lhe dar duas palavras, e como me
                              vou embora amanhã...
                          -
                              Perfeitamente... Ó Cruges, vai andando, já
                              te apanho! [...]
                          -
                              Aqui está o que é... Vossa Excelência
                              sabe, ou talvez não saiba, que eu fui em
                              Paris íntimo da mãe do sr. Carlos da
                              Maia... Vossa Excelência tem pressa, e não
                              vem agora a propósito essa história. Basta
                              dizer que aqui há anos ela entregou-me,
                              para eu guardar, um cofre que, segundo
                              dizia, continha papéis importantes....
                              Depois, naturalmente, ambos tivemos muitas
                              outras coisas em que pensar, os anos
                              correram, ela morreu. Numa palavra, porque
                              Vossa Excelência está com pressa: eu
                              conservo ainda em meu poder esse depósito,
                              e trouxe-o por acaso quando vim agora a
                              Portugal por negócios da herança de meu
                              irmão... Ora hoje justamente, ali no
                              teatro, comecei a reflectir que o melhor
                              era entregá-lo à família...
                          O
                              Cruges mexeu-se impacientemente:
                          -
                              Ainda te demoras?
                          Um
                              instante! - gritou Ega, já interessado por
                              aqueles papéis e pelo cofre. - Vai
                              andando.
                          Então
                              o sr. Guimarães, à pressa, resumiu o
                              pedido. Como sabia a intimidade do sr.
                              João da Ega e de Carlos da Maia,
                              lembrara-se de lhe entregar o cofrezinho
                              para que ele o restituísse à família...
                          -
                              Perfeitamente! - Acudiu Ega. Eu estou
                              mesmo em casa dos Maias, no Ramalhete.
                              [...]
                          -
                              Muito agradecido a Vossa Excelência! Eu
                              junto-lhe então um bilhete e Vossa
                              Excelência entrega-o da minha parte ao
                              Carlos da Maia, ou à irmã.
                          Ega
                              teve um momento de espanto:
                          -
                              À irmã?... A que irmã? [...]
                          -
                              A que irmã!? À irmã dele, à única que tem,
                              à Maria! [...]
                          -
                              Eu parece-me - dizia o Ega sorrindo, mas
                              nervoso - que nós estamos aqui a
                              enrodilhar-nos num equívoco... Eu conheço
                              o Maia desde pequeno, vivo até agora em
                              casa dele, posso afiançar-lhe que não tem
                              irmã nenhuma...
                          [...]
                              O sr. Guimarães imaginava que não era
                              segredo, que todas essas coisas da irmã
                              estavam esquecidas, desde que houvera
                              reconciliação...
                          -
                              Como vi, ainda não há muitos dias, o sr.
                              Carlos da Maia com a irmã e com Vossa
                              Excelência, na mesma carruagem, no Cais do
                              Sodré...
                          -
                              O que! Aquela senhora! A que ia na
                              carruagem?
                          -
                              Sim! - exclamou o sr. Guimarães irritado,
                              farto enfim dessa confusão em que se
                              debatiam.  - Aquela mesma, a Maria
                              Eduarda Monforte, ou a Maria Eduarda Maia,
                              como quiser, que eu conheci de pequena,
                              com quem andei muitas vezes ao colo, que
                              fugiu com o Mac Gren, que esteve depois
                              com a besta do Castro Gomes... Essa mesma!
                              [...] (pp.
                              614-616);
                          -
                              É uma caixita pequena que a Monforte me
                              deu, na véspera de partir para Londres com
                              a filha. Era no tempo da guerra... Já a
                              Maria vivia com o irlandês, tinha mesmo
                              uma pequena, a Rosa. Depois veio a Comuna
                              [...] De sorte que fui ficando com os
                              papéis. [...] E agora aí estão, às ordens
                              da família.
                          -
                              Se isso não fosse incómodo para Vossa
                              Excelência - acudiu o Ega - eu passava
                              agora pelo seu hotel e levava-os logo
                              comigo...
                          -
                              Incómodo nenhum! [...]
                          E
                              como estavam no Pelourinho, rogou ao Ega
                              que esperasse um momento, enquanto ele
                              corria a cima buscar os papéis da
                              Monforte. [...] E de tudo isto ressaltava
                              esta certeza monstruosa: - Carlos amante
                              da irmã! [...] (pp. 619-621);
                          Então
                              Ega, já impaciente, esvaziou toda a caixa
                              sobre a mesa, alastrou os papéis. E entre
                              cartas, outras contas, bilhetes de visita,
                              um grande sobrescrito destacou com esta
                              linha a tinta azul: "Pertence a minha
                              filha Maria Eduarda." [...]
                          Ega leu-o alto, devagar. Dizia:
                          Como a Maria teve a pequena e
                                anda muito fraca, e eu também me não
                                sinto nada boa com umas pontadas,
                                parece-me prudente, para o que possa vir
                                a suceder, fazer aqui uma declaração que
                                te pertence a ti, minha querida filha,,
                                e que só sabe o padre Talloux (Mr.
                                l'abbé Talloux, coadjuteur à
                                Saint-Roche) porque lho disse há dois
                                anos, quando tive a pneumonia. E é o
                                seguinte: Declaro que a minha filha
                                Maria Eduarda, que costuma assinar Maria
                                Calzaski, por supor ser esse o nome de
                                seu pai, é portuguesa e filha de meu
                                marido  Pedro da Maia, de
                                quem me separei voluntariamente,
                                trazendo-a comigo para Viena, depois
                                para Paris, e que agora vive em
                                companhia de Patrick Mac Gren, em
                                Fontainebleau, com quem vai casar. E o
                                pai de meu marido era meu sogro  Afonso da Maia,
                                viúvo, que vivia em Benfica e também em
                                Santa Olávia, ao pé do rio Douro. O que
                                tudo se pode verificar em Lisboa, pois
                                devem lá estar os papéis; e os meus
                                erros, de que vejo agora as
                                consequências, não devem impedir que tu,
                                minha querida filha, tenhas posição e
                                fortuna que te pertencem. E por isso
                                aqui declaro tudo isto que assino, no
                                caso que o não possa fazer diante de um
                                tabelião, o que tenciono logo que esteja
                                melhor. E de tudo, se eu vier a morrer,
                                o que Deus não permita, peço perdão a
                                minha filha. E assino com o meu nome de
                                casada - Maria Monforte da Maia.
                          Ega ficou a olhar para o Vilaça.»
                              (pp. 635-636);
                          56 «- Vá,
                              acaba lá! - exclamou Carlos, recaindo no
                              assento, mais pálido.
                          E
                              Ega, miudamente, contou a longa, terrível
                              conversa com o Guimarães, desde o momento
                              em que o homem, por acaso, já ao
                              despedir-se, já ao estender-lhe a mão,
                              falara da "irmã do Maia". Depois
                              entregara-lhe os papéis da Monforte à
                              porta do Hotel Paris, no Pelourinho...
                          -
                              E aqui está, não sei mais nada. Imagina tu
                              que noite eu passei! Mas não coragem de te
                              dizer. Fui ao Vilaça... Fui ao Vilaça com
                              a esperança sobretudo de ele saber algum
                              facto, ter algum documento que atirasse
                              por terra toda esta história do
                              Guimarães... Não tinha nada, não sabia
                              nada. Ficou tão aniquilado como eu!
                          No
                              curto silêncio que caiu, um chuveiro mais
                              largo, alagando o arvoredo do jardim,
                              cantou nas vidraças. Carlos ergueu-se
                              arrebatadamente, numa revolta de todo o
                              ser:
                          - E tu acreditas que isso seja
                              possível? Acreditas que suceda a um homem
                              como eu, como tu, numa rua de Lisboa?
                              Encontro uma mulher, olho para ela,
                              conheço-a durmo com ela e, entre todas as
                              mulheres do mundo, essa justamente há-de
                              ser minha irmã! É impossível... Não há
                              Guimarães, não há papéis, não há
                              documentos que me convençam!» (pp. 642-643);
                          57
                              «Então Carlos, que passeava pensativamente
                              fumando, olhou um momento o Ega
                              adormecido, e sumiu-se por trás do
                              reposteiro.
                          Ia
                              à Rua de S. Francisco. [...]
                          Fora
                              nessa tarde, só no seu quarto, que Carlos
                              decidira ir falar a Maria Eduarda - por um
                              motivo supremo de dignidade e de razão,
                              que ele descobrira e que repetia a si
                              mesmo, incessantemente, para se
                              justificar. Nem ela nem ele eram duas
                              crianças frouxas, necessitando que a crise
                              mais temerosa da sua vida lhes fosse
                              resolvida e arranjada pelo Ega ou pelo
                              Vilaça [...] Por isso ele, só ele, devia
                              ir à Rua de S. Francisco. [...]
                          E
                              pouco a pouco, aquela fachada muda donde
                              apenas saía, a um canto, uma claridade
                              lânguida de alcova adormecida, foi-o
                              estranhamente penetrando de inquietação e
                              desconfiança. [...] Não entrou [...]
                              Depois parou diante da larga barra de
                              claridade que saía do portão do Grémio; e
                              foi para lá [...]
                          Apenas acabou o conhaque, saiu.
                              Agora, caminhando rente das casas, não via
                              aquela fachada, que o perturbava, com a
                              sua claridade de alcova morrendo nos
                              vidros. O portão ficara cerrado, o gás
                              ardia no patamar. E subiu, sentindo mais,
                              pela escada de pedra, as pancadas do
                              coração que o pousar dos seus passos.
                              Melanie, que veio abrir, disse-lhe que a
                              senhora, um pouco cansada, se fora
                              encostar sobre a roupa [...] (pp.
                              652-655);
                          58 «Ele
                              tenteava, procurando na brancura da roupa:
                              encontrou um joelho, a que percebia a
                              forma e o calor suave, através da seda
                              leve: e ali esqueceu a mão, aberta e
                              frouxa, como morta, num entorpecimento
                              onde toda a vontade e toda a consciência
                              se lhe fundiam, deixando-lhe apenas a
                              sensação daquela pele quente e macia, onde
                              a sua palma pousava. Um suspiro, um
                              pequenino suspiro de criança, fugiu dos
                              lábios de Maria, morreu na sombra. Carlos
                              sentiu a quentura do desejo que vinha
                              dela, que o entontecia, terrível como o
                              bafo ardente de um abismo, escancarado na
                              terra a seus pés. Ainda balbuciou: "Não,
                              não..." Mas ela estendeu os braços,
                              envolveu-lhe o pescoço, puxando-o para si,
                              num murmúrio que era como a continuação do
                              suspiro, e em que o nome de "querido"
                              sussurrava e tremia. Sem resistência, como
                              um corpo morto que um sopro impele, ele
                              caiu-lhe sobre o seio. Os seus lábios
                              secos acharam-se colados, num beijo aberto
                              que os humedecia. E de repente, Carlos
                              enlaçou-a furiosamente, esmagando-a e
                              sugando-a, numa paixão e num desespero que
                              fez tremer todo o leito. [...]
                          Alta
                              noite, Ega acordou com uma grande
                              sede. Saltara da cama, esvaziara a
                              garrafa no toucador, quando julgou sentir
                              por baixo, no quarto de Carlos, uma porta
                              bater. Escutou. Depois, arrepiado,
                              remergulhou nos lençóis. mas espertara
                              inteiramente, com uma ideia estranha,
                              insensata, que o assaltara sem motivo, o
                              agitava, lhe fazia palpitar o coração no
                              grande silêncio da noite. Ouviu assim dar
                              três horas. A porta de novo batera, depois
                              uma janela: era decerto vento que se
                              erguera. Não podia porém readormecer, às
                              voltas, num terrível mal-estar, com aquela
                              ideia cravada na imaginação que o
                              torturava. Então, desesperado, pulou da
                              cama, enfiou um paletó, e em pontas de
                              chinelas, com a mão diante da luz, desceu
                              surdamente ao quarto de Carlos. Na
                              antessala parou, tremendo, com o ouvido
                              contra o reposteiro, na esperança de
                              perceber algum calmo rumor de respiração.
                              O silêncio era pesado e pleno. Ousou
                              entrar... A cama estava feita e vazia,
                              Carlos saíra.
                          [...] E agora não duvidava.
                              Carlos fora findar a noite à Rua de S.
                              Francisco!... Estava lá, dormia lá! E só
                              uma ideia surgia através do seu horror -
                              fugir, safar-se para Celorico, não ser
                              testemunha daquela incomparável
                              infâmia!...» (pp.
                              658-662);
                          59 «Nessa
                              madrugada, às quatro horas, em plena
                              escuridão, Carlos cerrara de manso o
                              portão da Rua de S. Francisco. E, mais
                              pungente, apoderava-se dele, na frialdade
                              da rua, o medo que já o roçara, ao
                              vestir-se na penumbra do quarto, ao lado
                              de Maria adormecida - o medo de voltar ao
                              Ramalhete! Era esse medo que já na véspera
                              o trouxera todo o dia por fora no dog-cart,
                              findando por jantar lugubremente com o
                              Cruges, escondido num gabinete do Augusto.
                              Era medo do avô, medo do Ega, medo do
                              Vilaça; medo daquela sineta do jantar que
                              os chamava, os juntava; medo do seu
                              quarto, onde a cada momento qualquer deles
                              podia erguer o reposteiro, entrar, cravar
                              os olhos na sua alma e no seu segredo...
                              Tinha agora a certeza que eles sabiam
                                tudo. E mesmo que nessa noite
                              fugisse para  Santa Olávia, pondo
                              entre si e Maria uma separação tão alta
                              como o muro de um claustro, nunca mais do
                              espírito daqueles homens, que eram os seus
                              amigos melhores, sairia a memória e a dor
                              da infâmia em que ele se despenhara. A sua
                              vida moral estava estragada... Então, para
                              que partiria - abandonando a paixão, sem
                              que por isso encontrasse a paz? Não seria
                              mais lógico calcar desesperadamente todas
                              as leis humanas e divinas, arrebatar para
                              longe Maria na sua inocência, e para todo
                              o sempre abismar-se nesse crime que se
                              tornara a sua sombria partilha na Terra?
                          Já
                              assim pensara na véspera. Já assim
                              pensara... Mas antevira então outro
                              horror, um supremo castigo, a esperá-lo na
                              solidão onde se sepultasse. Já lhe
                              percebera mesmo a aproximação; já noutra
                              noite recebera dele um arrepio; já nessa
                              noite, deitado junto de Maria, que
                              adormecera cansada, o pressentira,
                              apoderando-se dele, com um primeiro frio
                              de agonia.
                          Era,
                              surgindo do fundo do seu ser, ainda ténue
                              mas já perceptível, uma saciedade, uma
                              repugnância por ela, desde que a sabia do
                              seu sangue!... Uma repugnância material,
                              carnal, à flor da pele, que passava como
                              um arrepio. Fora primeiramente aquele
                              aroma que a envolvia, flutuava entre os
                              cortinados, lhe ficava a ele na pele e no
                              fato, o excitava tanto outrora, o
                              impacientava tanto agora - que ainda na
                              véspera se encharcara em água-de-colónia,
                              para o dissipar. Fora depois aquele corpo
                              dela, adorado sempre como um mármore
                              ideal, que de repente lhe aparecera, como
                              era na sua realidade, forte de mais,
                              musculoso, de grossos membros de amazona
                              bárbara, com todas as belezas copiosas do
                              animal de prazer. Nos seus cabelos de um
                              lustre tão macio, sentia agora
                              inesperadamente uma rudeza de juba. Os
                              seus movimentos na cama, ainda nessa noite
                              o tinham assustado como se fossem os de
                              uma fera, lenta e ciosa, que se estirava
                              para o devorar... Quando os seus braços o
                              enlaçavam, o esmagavam contra os seus
                              rijos peitos túmidos de seiva, ainda
                              decerto lhe punham nas veias uma chama que
                              era toda bestial. Mas, apenas o último
                              suspiro lhe morria nos lábios, aí começava
                              insensivelmente a recuar para a borda do
                              colchão, com um susto estranho: e imóvel,
                              encolhido na roupa, perdido no fundo de
                              uma infinita tristeza, esquecia-se
                              pensando numa outra vida que podia ter,
                              longe dali, numa casa simples, toda aberta
                              ao sol, com sua mulher, legitimamente sua,
                              flor de graça doméstica, pequenina,
                              tímida, pudica, que não soltasse aqueles
                              gritos lascivos e não usasse aquele aroma
                              tão quente! E desgraçadamente agora já não
                              duvidava... Se partisse com ela, seria
                              para bem cedo se debater no indizível
                              horror de um nojo físico. E que lhe
                              restaria então, morta a paixão que fora a
                              desculpa do crime, ligado para sempre a
                              uma mulher que o enojava - e que era... Só
                              lhe restava matar-se! [...]
                          Defronte do Ramalhete os
                                candeeiros ainda ardiam. Abriu de leve  porta. Pé ante
                                pé, subiu as escadas ensurdecidas pelo
                                veludo cor de cereja. No patamar
                                tacteava, procurava a vela, quando,
                                através do reposteiro entreaberto,
                                avistou uma claridade que se movia no
                                fundo do quarto. Nervoso, recuou, parou
                                no recanto. O clarão chegava, crescendo;
                                passos lentos, pesados, pisavam
                                surdamente o tapete; a luz surgiu - e com ela o avô em
                                mangas e camisa, lívido, mudo, grande,
                                espectral. Carlos não se moveu,
                                sufocado; e os dois olhos do velho,
                                vermelhos, esgazeados, cheios de horror,
                                caíram sobre ele, ficaram sobre ele,
                                varando-o até às profundidades da alma,
                                lendo lá o seu segredo. Depois, sem uma
                                palavra, com a cabeça branca a tremer,  Afonso
                                atravessou o patamar, onde a luz sobre o
                                veludo espalhava um tom de sangue - e os seus passos
                                perderam-se no interior da casa, lentos,
                                abafados, cada vez mais sumidos, como se
                                fossem os derradeiros que devesse dar na
                                vida!  
                          Carlos entrou no quarto às
                                escuras, tropeçou num sofá. E ali se
                                deixou cair, com a cabeça enterrada nos
                                braços, sem pensar, sem sentir, vendo o
                                velho lívido passar, repassar diante
                                dele como um longo fantasma, com a luz
                                avermelhada na mão. Pouco a pouco foi-o
                                tomando um cansaço, uma inércia, uma
                                infinita lassidão da vontade, onde um
                                desejo apenas transparecia, se alongava
                                - o
                                  desejo de interminavelmente repousar
                                  algures numa mudez e numa grande e
                                  numa grande treva... Assim escorregou
                                  ao pensamento da morte. Ela seria a
                                  perfeita cura, o asilo seguro. Porque
                                  não iria ao seu encontro? Alguns graus
                                  de láudano nessa noite e penetrava na
                                  absoluta paz... 
                          Ficou muito tempo embebendo-se
                                nesta ideia, que lhe dava alívio e
                                consolo, como se, escorraçado por uma
                                tormenta ruidosa, visse diante dos
                                passos abrir-se uma porta, donde saísse
                                calor e silêncio. Um rumor, o chilrear
                                de um pássaro na janela, fez-lhe sentir
                                o sol e o dia. Ergueu-se, despiu-se
                                muito devagar, numa imensa moleza. E
                                mergulhou na cama, enterrou a cabeça no
                                travesseiro para recair na doçura
                                daquela inércia, que era um antegosto da
                                morte, e não sentir mais nas horas que
                                lhe restavam nenhuma luz, nenhuma coisa
                                da Terra» (pp.
                              665-668);
                          60 «O Sol
                              ia alto, um barulho passou, o Baptista
                              rompeu pelo quarto:
                          -
                              Ó sr. D. Carlos, ó meu menino! O avô
                              achou-se mal no jardim, não dá acordo!...
                          Carlos
                              pulou do leito [...]
                          Arrebatadamente,
                              Carlos levantara-lhe a face, já rígida,
                              cor de cera, com os olhos cerrados, um fio
                              de sangue aos cantos da longa barba de
                              neve. Depois caiu de joelhos no chão
                              húmido, sacudia-lhe as mãos, murmurando:
                              "Ó avô! ó avô!" Correu ao tanque,
                              borrifou-o de água:
                          -
                              Chamem alguém! Chamem alguém!
                          Outra
                              vez lhe palpava o coração... Mas estava
                              morto. Estava morto, já frio, aquele corpo
                              que, mais velho que o século, resistira
                              tão formidavelmente, como um grande roble,
                              aos anos e aos vendavais. Ali morrera
                              solitariamente, já o Sol ia alto, naquela
                              tosca mesa de pedra onde deixara pender a
                              cabeça cansada. [...]
                          Carlos
                              murmurou, devagar, como para si mesmo, com
                              os olhos postos no chão:
                          - Não! É estranho, não me faço
                              mais desgraçado! Aceito isto como um
                              castigo...  Quero que seja um
                              castigo... E sinto-me só muito pequeno,
                              muito humilde diante de quem assim me
                              castiga. Esta manhã pensava em matar-me. E
                              agora não! é o meu castigo viver, esmagado
                              para sempre... O que me custa é que ele
                              não me tivesse dito adeus!» (pp. 668-672);
                          61 «Carlos
                              não sabia. Contava que Ega, terminada essa
                              missão à Rua de S. Francisco, fosse
                              aborrecer-se uns dias com ele a Santa
                              Olávia. Mais tarde era necessário
                              trasladar para lá o corpo do avô...
                          - E passado isso, vou viajar...
                              Vou à América, vou ao Japão, vou fazer
                              esta coisa estúpida e sempre eficaz que se
                              chama "distrair"...» (p. 678);
                          62 «Então
                              Ega teve só um desejo, o desesperado
                              desejo de findar.
                          -
                              Vossa Excelência conhece a letra de sua
                              mãe, não é verdade?... Pois bem! Eu trago
                              aqui uma declaração dela a seu respeito...
                              Esse Guimarães é quem tinha este
                              documento, com outros papéis que ela lhe
                              entregou em 71, nas vésperas da guerra...
                              Ele conservou-os até agora, e queria
                              restituir-lhos, mas não sabia onde Vossa
                              Excelência vivia. Viu-a há dias numa
                              carruagem, comigo e com Carlos... Foi ao
                              pé do Aterro, Vossa Excelência deve
                              lembrar-se, defronte do alfaiate, quando
                              vínhamos da Toca... Pois bem! O Guimarães
                              veio imediatamente ao procurador dos
                              Maias, deu-lhe esses papéis, para que os
                              entregasse a Vossa Excelência... E nas
                              primeiras palavras que disse, imagine o
                              assombro de todos, quando se entreviu que
                              Vossa Excelência era parenta de Carlos, e
                              parenta muito chegada.
                          Atabalhoara
                              esta história de pé, quase de um fôlego,
                              com bruscos gestos de nervoso. Ela mal
                              compreendia, lívida, num indefinido
                              terror. Só pôde murmurar muito debilmente:
                              "Mas..." E de novo emudeceu, assombrada,
                              devorando os movimentos do Ega, que,
                              debruçado sobre o sofá, desembrulhava a
                              tremer a caixa de charutos da Monforte.
                              Por fim voltou para ela com um papel na
                              mão, atropelando as palavras numa
                              debandada:
                          -
                              A mãe de Vossa Excelência nunca lho
                              disse... Havia um motivo muito grave...
                              Ela tinha fugido de Lisboa, fugido ao
                              marido... Digo isto assim brutalmente,
                              perdoe-me Vossa Excelência, mas não é o
                              momento de atenuar as coisas... Aqui está!
                              Vossa Excelência conhece a letra de sua
                              mãe. É dela esta letra, não é verdade?
                          -
                              É! - Exclamou Maria, indo arrebatar o
                              papel.
                          -
                              Perdão! - gritou Ega, retirando-lho
                              violentamente. - Eu sou um estranho! E
                              Vossa Excelência não se pode inteirar de
                              tudo isto enquanto eu não sair daqui.
                          Fora
                              uma inspiração providencial [...]
                          Foi só na Rua do Ouro que começou
                              a serenar, tirando o chapéu, respirando
                              largamente. E ia então repetindo a si
                              mesmo todas as consolações que se poderiam
                              dar a Maria Eduarda: era nova e formosa; o
                              seu pecado fora inconsciente; o tempo
                              acalma a dor [...] (pp. 683-684);
                          63 «E
                              fumavam junto do lume, na sala Luís XV,
                              quando o escudeiro veio dizer que uma
                              senhora, em baixo, numa carruagem,
                              procurava o sr. Ega. Foi um terror.
                              Imaginaram logo Maria, alguma resolução
                              desesperada. Vilaça ainda teve a esperança
                              de ela trazer alguma nova revelação, que
                              tudo mudasse, salvasse da "bolada"... Ega
                              desceu a tremer. Era Melanie numa tipóia
                              de praça, abafada numa grande ulster,
                              com uma carta de madame.
                          À
                              luz da lanterna, Ega abriu o envelope, que
                              trazia apenas um cartão branco, com estas
                              palavras a lápis: "Decidi partir amanhã
                              para Paris." [...]
                          No
                              dia seguinte, na estação de Santa
                              Apolónia, Ega, que viera cedo com o
                              Vilaça, acabava de despachar a sua bagagem
                              para o Douro, quando avistou Maria, que
                              entrava trazendo Rosa pela mão. Vinha toda
                              envolta numa grande peliça escura, com um
                              véu dobrado, espesso como uma máscara: e a
                              mesma gaze de luto escondia o rostozinho
                              da pequena, fazendo-lhe um laço sobre a
                              touca. [...] Ega correu para Maria
                              Eduarda, conduziu-a pelo braço, em
                              silêncio, ao vagão-salão, que tinha todas
                              as cortinas cerradas. Junto do estribo ela
                              tirou devagar a luva. E muda, estendeu-lhe
                              a mão.
                          -
                              Ainda nos vemos no Entroncamento -
                              murmurou Ega. - Eu sigo também para o
                              Norte.
                          Alguns
                              sujeitos pararam, com curiosidade, ao ver
                              sumir-se naquela carruagem de luxo,
                              fechada, misteriosa, uma senhora que
                              parecia tão bela, de ar tão triste,
                              coberta de negro. E apenas Ega fechou a
                              portinhola, o Neves, o d' "A Tarde" e do
                              Tribunal de Contas, rompeu de entre um
                              rancho, arrebatou-lhe o braço com
                              sofreguidão:
                          -
                              Quem é?
                          Ega
                              arrastou-o pela Plataforma, para lhe
                              deixar cair no ouvido, já muito adiante,
                              tragicamente:
                          -
                              Cleópatra!
                          O
                              político, furioso, ficou rosnando: "Que
                              asno!..." Ega abalara. Junto do seu
                              compartimento, Vilaça esperava, ainda
                              deslumbrado com aquela figura de Maria
                              Eduarda, tão melancólica e nobre. Nunca a
                              vira antes. E parecia-lhe uma rainha de
                              romance. [...]
                          No
                              Entroncamento, Ega veio bater nos vidros
                              do salão, que se conservava fechado e
                              mudo. Foi Maria que abriu. Rosa dormia.
                              Miss Sara lia a um canto, com a cabeça
                              numa almofada. E "Niniche" assustada
                              ladrou.
                          -
                              Quer tomar alguma coisa, minha senhora?
                          -
                              Não, obrigada...
                          Ficaram
                              calados, enquanto Ega, com o pé no
                              estribo, tirava lentamente a charuteira.
                              Na estação mal alumiada passavam saloios,
                              devagar, abafados em mantas. Um guarda
                              rolava uma carreta de fardos. Adiante a
                              máquina resfolegava na sombra. E dois
                              sujeitos rondavam em frente do salão, com
                              olhares curiosos e já lânguidos para
                              aquela magnífica mulher, tão grave e
                              sombria, envolta na sua peliça negra.
                          -
                              Vaia para o Porto? - murmurou ela.
                          -
                              Para Santa Olávia...
                          -
                              Ah!
                          Então
                              Ega balbuciou com os beiços a tremer:
                          -
                              Adeus!
                          Ela
                              apertou-lhe a mão com muita força, em
                              silêncio, sufocada.
                          Ega atravessou, devagar, por
                              entre soldados de capote enrolado a
                              tiracolo, que corriam a beber à cantina. à
                              porta do bufete voltou-se ainda, ergueu o
                              chapéu. Ela, de pé, moveu de leve o braço
                              num lento adeus. E foi assim que ele, pela
                              derradeira vez na vida, viu Maria Eduarda,
                              grande, muda, toda negra na claridade, à
                              portinhola daquele vagão que para sempre a
                              levava.»  (pp.
                              685-687);
                          64 «Então,
                              naquela mudez de soledade e de abandono,
                              Ega, com os olhos para o longe, murmurou
                              devagar:
                          -
                              Mas tu desse casamento não tinhas a menor
                              indicação, a menor suspeita?
                          -
                              Nenhuma... Soube-o de repente pela carta
                              dela em Sevilha.
                          E
                              era esta a formidável nova anunciada por
                              Carlos, a nova que ele logo contara de
                              madrugada ao Ega, depois dos primeiros
                              abraços, em Santa Apolónia. Maria Eduarda
                              ia casar.
                          Assim
                              o anunciara ela a Carlos numa carta muito
                              simples, que ele recebera na quinta dos
                              Vila Medina. Ia casar. E não parecia ser
                              uma resolução tomada arrebatadamente, sob
                              um impulso do coração; mas antes um
                              propósito lento, longamente amadurecido.
                              Ela aludia nessa carta a ter "pensado
                              muito, reflectido muito..." De resto o
                              noivo devia ir perto dos cinquenta anos. E
                              Carlos, portanto, via ali a união de dois
                              seres desiludidos da vida, maltratados por
                              ela, cansados ou assustados do seu
                              isolamento, que, sentindo um no outro
                              qualidades sérias de coração e de
                              espírito, punham em comum o seu resto de
                              calor, de alegria e de coragem, para
                              afrontar juntos a velhice...
                          -
                              Que idade tem ela?
                          Carlos
                              pensava que ela devia ter quarenta e um ou
                              quarenta e dois anos. Ela dizia na carta
                              "sou apenas mais nova que o meu noivo seis
                              anos e três meses". Ele chamava-se Mr. de
                              Trelain. E era evidentemente um homem de
                              espírito largo, desembaraçado de
                              prejuízos, de uma benevolência quase
                              misericordiosa, porque quisera Maria,
                              conhecendo os seus erros.
                          -
                              Sabe tudo? - exclamou Ega, que saltara do
                              parapeito.
                          - Tudo, não. Ela diz que Mr. de
                              Trelain conhecia do seu passado "todos
                              aqueles erros em que ela caíra
                              inconscientemente". Isto dá a entender que
                              não sabe tudo... [...]»  (pp. 710-711);
                          65 «Carlos,
                              no entanto, fora examinar, junto da
                              janela, um quadro que pousava no chão,
                              para ali esquecido e voltado para a
                              parede. Era o retrato do pai, de  Pedro da Maia, com
                              as suas luvas de camurça na mão, os
                              grandes olhos árabes na face triste e
                              pálida que o tempo amarelara mais.
                              Colocou-o em cima de uma cómoda. E
                              atirando-lhe uma leve sacudidela com o
                              lenço:
                          -
                              Não há nada que me faça mais pena, do que
                              não ter um retrato do avô!... Em todo o
                              caso este sempre o vou levar para Paris.
                              [...]
                          Ega
                              ergueu-se, atirou um gesto desolado:
                          -
                              Falhámos a vida, menino!
                          -
                              Creio que sim... [...]
                          O
                              quarto escurecia no crepúsculo frio e
                              melancólico de Inverno. Carlos pôs também
                              o chapéu: e desceram pelas escadas
                              forradas de veludo cor de cereja, onde
                              ainda pendia, com um ar baço de ferrugem,
                              a panóplia de velhas armas. Depois na rua
                              Carlos parou, deu um longo olhar ao
                              sombrio casarão, que naquela primeira
                              penumbra tomava um aspecto mais carregado
                              de residência eclesiástica, com as suas
                              paredes severas, a sua fila de janelinhas
                              fechadas, as grades dos postigos térreos
                              cheias de treva, mudo, para sempre
                              desabitado, cobrindo-se já de tons de
                              ruína.
                          Uma
                              comoção passou-lhe na alma, murmurou,
                              travando o braço a Ega:
                          -
                              É curioso! Só vivi dois anos nesta casa, e
                              é nela que me parece estar metida a minha
                              vida inteira!
                          Ega
                              não se admirava. Só ali, no Ramalhete, ele
                              vivera realmente daquilo que dá sabor e
                              relevo à vida - a paixão.
                          Muitas
                              outras coisas dão valor à vida... Isso é
                              uma velha ideia de romântico, meu Ega!
                          -
                              E que somos nós? - Exclamou Ega. - Que
                              temos nós sido desde o colégio, desde o
                              exame de latim? Românticos: isto é,
                              indivíduos inferiores que se governam na
                              vida pelo sentimento, e não pela razão...
                          Mas
                              Carlos queria realmente saber se, no
                              fundo, eram mais felizes esses que se
                              dirigiam só pela razão, não se desviando
                              nunca dela, torturando-se para se manter
                              na sua linha inflexível, secos, hirtos,
                              lógicos, sem emoção até ao fim...
                          -
                              Creio que não - disse o Ega. - Por fora, à
                              vista, são desconsoladores. E por dentro,
                              para eles mesmos, são talvez
                              desconsolados. O que prova que neste lindo
                              mundo ou tem de se ser insensato ou sem
                              sabor...
                          -
                              Resumo: não vale a pena viver...
                          -
                              Depende inteiramente do estômago! -
                              atalhou Ega.
                          Riram
                              ambos. Depois Carlos, outra vez sério, deu
                              a sua teoria da vida [...]»  (pp. 713-715).
                          topo