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Os Maias - Sequências narrativas da intriga principal




Síntese da história amorosa de Carlos e Maria Eduarda

  • Carlos vê a mulher do Hotel Central1 - consequentemente «interessa-se» por Dâmaso, interroga-o2;

  • Carlos sonha com ela3;

  • Carlos interessa-se por Castro Gomes4;

  • Nova «aparição»5;

  • Visão rápida no Aterro6;

  • Taveira fala dos Castro Gomes - Carlos interroga-o7;

  • Carlos decide ir a Sintra - procura em vão8;

  • Por intermédio de Dâmaso, vai ver Rosa - primeiro contacto com o ambiente em que «ela» vive9;

  • Carlos insiste com Dâmaso na obtenção de informações10;

  • Nova visão rápida no Aterro11;

  • Dâmaso fala dos Castro Gomes12;

  • Carlos faz projectos sobre o possível encontro nas corridas13;

  • Carlos e Maria Eduarda encontram-se fugazmente, perto do Aterro14;

  • Carlos elabora o plano da visita aos Olivais15;

  • Carlos descobre que «ela» se dirige a casa de Cruges16;

  • Carlos espera em vão nas corridas - procura e encontra Dâmaso, descobre a morada «dela»17;

  • Carlos passeia na Rua de S. Francisco18;

  • Carlos recebe o bilhete de Maria Eduarda19;

  • Carlos vai à Rua de S. Francisco20;

  • Carlos encontra-se com Maria Eduarda - reflecte sobre o encontro21;

  • Carlos percorre a Rua de S. Francisco22;

  • Carlos inicia a série de visitas23;

  • Carlos encontra-se com Dâmaso, em casa de Maria Eduarda - fornece explicações a Dâmaso24;

  • Ega interroga Carlos25;

  • A condessa de Gouvarinho refere-se "à brasileira"26;

  • Carlos reflecte acerca da «tagarelice de Dâmaso» - dá explicações à condessa27;

  • Carlos visita Maria Eduarda e fala-lhe do seu amor - correspondência de Maria Eduarda28;

  • Carlos revela o plano da ida para os Olivais29;

  • Carlos conta tudo a Ega30;

  • Carlos prepara a ida aos Olivais31;

  • Carlos passeia na Rua de S. Francisco32;

  • Visita aos Olivais - iniciam-se as relações amorosas entre Carlos e Maria Eduarda33;

  • Carlos pensa em Maria Eduarda34;

  • A condessa de Gouvarinho refere-se «à brasileira»35;

  • Taveira refere a Carlos as ameaças de Dâmaso36;

  • Carlos faz projectos em relação a Maria Eduarda - preocupa-se com o avô37;

  • Carlos e Maria Eduarda encontram-se diariamente na Toca38;

  • Maria Eduarda visita o Ramalhete39;

  • Carlos faz planos40;

  • Castro Gomes visita Carlos - reacções41;

  • Carlos vai aos Olivais42;

  • Carlos encontra-se com Maria Eduarda - nova fase na vida de ambos (a hipótese de casamento)43;

  • Maria Eduarda dá explicações sobre a vida passada44;

  • Carlos fala a Ega45;

  • Ega encontra-se com Maria Eduarda46;

  • Cruges visita a «Toca»47;

  • O marquês é apresentado a Maria Eduarda48;

  • Inicia-se a série de reuniões de amigos na «Toca»49;

  • Carlos dá lições a Rosa50;

  • Surge a questão do artigo na «Corneta do Diabo»51;

  • Carlos, pela primeira vez, questiona o casamento com Maria52; (a)

  • Carlos e Maria Eduarda regressam a Lisboa53;

  • Carlos, Maria Eduarda e Ega conversam sobre o sarau54;

  • Guimarães entrega a Ega o cofre de Maria Monforte55;

  • Carlos conhece a verdade - revolta-se56;

  • Carlos vai à Rua de S. Francisco57;

  • Carlos tem relações com Maria Eduarda - o incesto58;

  • Carlos tem medo - hipótese do suicídio59;

  • Morre Afonso da Maia - Carlos reconhece e aceita «o castigo»60;

  • Carlos decide afastar-se61;

  • Maria Eduarda, por intermédio de Ega,  conhece a verdade62;

  • Maria Eduarda parte63;

  • Carlos refere a Ega a notícia do casamento de Maria Eduarda64;

  • Carlos recorda «a semana terrível»65.

    • Obs.: As frases ou expressões a negrito correspondem, de acordo com os autores, aos momentos dinâmicos da narrativa.

    • (a) Sequência encaixada pelo autor desta página por a considerar relevante.

Gandra, Maria António / Oliveira, Luís Amaro de, Caderno Para Uma Direcção de Leitura de OS MAIAS, Porto Editora, Ldª, Porto, 1987

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Extractos da obra

1 «Entravam então no peristilo do Hotel Central - e nesse momento um coupé da Companhia, chegando a largo trote do lado da Rua do Arsenal, veio estacar à porta.

Um esplêndido preto, já grisalho, de casaca e calção, correu logo à portinhola; de dentro um rapaz muito magro, de barba muito negra, passou-lhe para os braços uma deliciosa cadelinha escocesa, de pêlos esguedelhados, finos como seda e cor de prata; depois apeando-se, indolente e poseur, ofereceu a mão a uma senhora alta, loira, com um meio véu muito apertado e muito escuro que realçava o esplendor da sua carnação ebúrnea. Craft e Carlos afastaram-se, ela passou diante deles, com um passo soberano de deusa, maravilhosamente bem feita, deixando atrás de si como uma claridade, um reflexo de cabelos de oiro, e um aroma no ar. Trazia um casaco colante de veludo branco de Génova, e um momento sobre as lajes do peristilo brilhou o verniz das suas botinas.» (pp. 156-157);

2 «O sr. Dâmaso Salcede, que não despregava os olhos de Carlos, acudiu logo:

- Bem sei! Os Castro Gomes... Conheço-os muito... Vim com eles de Bordéus... Uma gente muito chique que vive em Paris.

Carlos voltou-se, reparou mais nele, perguntou-lhe, afável e interessando-se:

- O sr. Salcede chegou agora de Bordéus?» (pp. 157-158);

3 «Baptista trouxera o chá, o charuto do Alencar acabara; e ele continuava na chaise-longue, como amolecido nestas recordações, e cedendo já, num meio adormecimento, à fadiga do longo jantar... E então, pouco a pouco, diante das suas pálpebras cerradas, uma visão surgiu, tomou cor, encheu todo o aposento. Sobre o rio, a tarde morria numa paz elísia. O peristilo do Hotel Central alargava-se, claro ainda. [...]

Eram três horas quando se deitou. E apenas adormecera na escuridão dos cortinados de seda, outra vez um belo dia de Inverno morria sem uma aragem, banhado de cor-de-rosa: o banal peristilo do hotel alargava-se, claro ainda na tarde; o escudeiro preto voltava, com a cadelinha nos braços; uma mulher passava, com um casaco de veludo branco de Génova, mais alta que uma criatura humana, caminhando sobre nuvens, com um grande ar de Juno que remonta ao Olimpo [...]» (pp. 184-185);

4 «- Outro debute? - perguntou Carlos.

- Não, é a besta do Castro Gomes!

A "Gazeta Ilustrada" anunciava que "o sr. Castro Gomes, o cavalheiro brasileiro que no Porto fora vítima da sua dedicação por ocasião da desgraça ocorrida na Praça Nova, e de que o nosso correspondente J. T. nos deu uma descrição tão opulenta de colorido realista, acha-se restabelecido e é hoje esperado no Hotel Central. Os nossos parabéns ao arrojado gentleman".

- Ora está Sua Excelência restabelecida! - exclamou Dâmaso, atirando para o lado o jornal. - Pois deixa estar que, agora, é a ocasião de lhe dizer na cara o que penso... Aquele Pulha!

- Tu exageras - murmurou Carlos, que se apoderara vivamente do jornal, e relia a notícia.» (pp. 193-194);

5 «Mas Carlos não escutava, nem sorria já. Do fim do Aterro [actual Av. 24 de Julho] aproximava-se, caminhando depressa, uma senhora - que ele reconheceu logo, por esse andar que lhe parecia de uma deusa pisando a Terra [...]» (p. 202);

6 «Ao outro dia, voltou mais cedo; e, apenas dera alguns passos entre a s árvores, viu-a logo. Mas não vinha só; ao seu lado o marido, esticado, [...] Ao passar, deu um olhar surpreendido a Carlos - como descobrindo enfim entre os bárbaros um ser de linha civilizada, e disse-lhe algumas palavras baixo, a ela.» (p. 204);

7 «Taveira vira-o na véspera, num grande landau da Companhia, com uma esplêndida mulher, muito elegante e que parecia estrangeira...

- Ora essa! - gritou Carlos. - E com um cadelinha escocesa?

- Exactamente, uma cadelinha escocesa, uma griffon cor de prata... Quem são?

- E um rapaz magro, de barba muito preta, com um ar inglesado?

- Justamente... Muito correcto, um ar sport... Que gente é?» (p. 212);

8 «- Iam pelo Chiado abaixo; anteontem, às duas horas... Estou convencido que iam para Sintra. [...] (p. 214)

Carlos ficou ainda um momento olhando o jogo, com uma cigarette apagada nos dedos, o mesmo ar distraído: de repente, pareceu tomar uma decisão, atravessou o corredor, entrou na sala de música. Steinbroken fora ao escritório ver Afonso da Maia, e a partida de whist; e Cruges só, entre duas velas do piano, com os olhos errantes pelo tecto, improvisava para si, melancolicamente.

- Dize cá, Cruges - perguntou-lhe Carlos - queres vir amanhã a Sintra? [...] (p. 216)

Correu à Lawrence por um caminho diferente, ávido de uma certeza: - e aí, o criado que lhe apareceu disse-lhe que o sr. Salcede e os senhores Castro Gomes tinham partido na véspera para Mafra...» (p. 243);

9 «- Ainda bem que te encontro, caramba! Quero que venhas daí, que venhas ver um doente... Eu te explicarei... É aquela gente brasileira. Mas, pelo amor de Deus, vem depressa, menino!

Carlos erguera-se, pálido:

- É ela?

- Não é a pequena, esteve a morrer... Mas veste-te, Carlinhos, veste-te, que a responsabilidade é minha!

- É um bebé, não é?

- Qual bebé!... É uma pequena crescida, de seis anos... Anda daí! [...] (p. 257)

Carlos ficou só, na intimidade daquele gabinete de toilette, que nessa manhã ainda não fora arrumado. [...]

Mas o olhar de Carlos prendia-se sobretudo a um sofá onde ficara estendido, com as duas mangas abertas, à maneira de dois braços que se oferecem, o casaco branco de veludo lavrado de Génova com que ele a vira, a primeira vez, apear-se à porta do hotel.» (pp. 260-261);

10 «- Agora que te tenho aqui, velhaco, homem fatal, quero o romance... Tu disseste que tinhas um romance. Não te largo. És meu. Venha o romance. Eu sei que os tens sempre bons. Quero o romance!

Pouco a pouco Dâmaso sorria, as bochechas esbraseavam-se-lhe de satisfação.

- Vai-se fazendo pela vida - disse a estoirar de jactância.

- Vocês estiveram em Sintra?...

- Estivemos, mas isso não foi divertido... O romance é outro!

Desprendeu-se do braço de Carlos, fez um sinal ao cocheiro para que os seguisse, e regalou-se pelo Aterro fora de contar o seu romance.

- A coisa é esta... O marido daqui a dias vai para o Brasil, tem lá negócios. E ela fica! Fica com as criadas e com a pequena, à espera, dois ou três meses.» (pp. 265-266);

11 «Carlos ao outro dia não saiu de casa, esperando um recado, faiscando de impaciência. Nenhum recado veio. E, duas tardes depois, ao descer para o Aterro - o primeiro encontro que teve, às Janelas Verdes, foi o Castro Gomes, de caleche descoberta, com a mulher ao lado, e a cadelinha no colo.

Ela passou, sem o ver. E logo ali Carlos decidiu findar aquela tortura, pedir muito simplesmente ao Dâmaso que o apresentasse ao Castro Gomes, antes de ele partir para o Brasil...» (p. 291);

12 «Na tarde em que ele se vestia para lá ir, Dâmaso apareceu-lhe no quarto, a dar-lhe uma novidade que o enchia de desgosto e de ferro. O telhudo do Castro Gomes mudara de ideia, já não ia ao Brasil! Ficava ali, no Central, até meado do Verão! De sorte que estava tudo estragado... [...]

Queixou-se então do Castro Gomes. Em resumo, era um telhudo. E a vida daquele homem era misteriosa... Que diabo estava ele a fazer em Lisboa? Ali havia dificuldades de dinheiro... E eles não se davam bem. Na véspera houvera decerto questão. Quando ele entrara, ela estava com os olhos vermelhos, e enfiada; e ele, nervoso, a passear pela sala, a retorcer a barba... Ambos contrafeitos, uma palavra cada quarto de hora... [...]

Queixou-se também dela. [...] Enfim, gente muito esquisita.» (p. 292);

13 «No domingo, pois, daí a cinco dias, eram as corridas... E "ela" estaria lá, ele ia conhecê-la, enfim!» (p. 304);

14 «Adiante do Grémio, encostado ao passeio, estava um coupé da Companhia, com um trintanário de luvas brancas, esperando junto ao portal. Carlos olhou, casualmente; e viu, debruçado à portinhola, um rosto de criança [...] Reconheceu-a logo. Era Rosa, era Rosicler [...] No fundo do coupé, forrado de negro, destacava um perfil claro de estátua, um tom ondeado de cabelo loiro. Carlos tirou profundamente o chapéu, tão perturbado, que os seus passos hesitaram. "Ela" abaixou a cabeça, de leve; alguma coisa de luminoso, um confuso rubor de emoção, espalhou-se-lhe no rosto.» (p. 305);

15 «Depois ia refazendo o plano da visita aos Olivais, mais largo agora, mais brilhante. Porque não iria ela também ver as curiosidades de Craft? Que tarde encantadora, que festa, que lindo idílio!» (pp. 306-307);

16 «- Como é que ela conhece o Cruges? - perguntou de repente o marquês, com um tom desconfiado, desembaraçando-se do cache-nez.

Carlos olhou para ele, como mal acordado.

- Ela quem? Aquela senhora? Como conhece o Cruges?... Homem, sim, tem você razão!... Aquela era a casa do Cruges!... a carruagem estava parada à porta do Cruges!...» (p. 307);

17 «A condessa de Gouvarinho ainda não viera. E não estava também aquela que os olhos de Carlos procuravam, inquietamente e sem esperança. [...]

Eram quase três horas, e agora decerto "ela" já não vinha: e a condessa de Gouvarinho não aparecia também... [...] (pp. 317-319);

Carlos descia da tribuna, sem ter descoberto o Dâmaso - quando deu justamente de frente com ele, dirigindo-se para a escada, afogueado, flamante, na sua famosa sobrecasaca branca.

- Onde diabo tens tu estado, criatura? [...]

- Lá partiu [Castro Gomes], e ela já está instalada. Até já antes de ontem a fui visitar, mas não estava em casa... Sabes do que tenho medo? É que ela, nestes primeiros tempos, por causa da vizinhança, como está só, não queira que eu lá vá muito... Que te parece?

- Talvez... E onde mora ela?

Em quatro palavras, Dâmaso explicou a instalação de madame. Era muito engraçado, morava no prédio do Cruges!» (pp. 337-338);

18 «Daí a pouco, a trote largo no faetonte, Carlos descia o Chiado, dava a volta para a Rua de S. Francisco. Ia numa perturbação deliciosa e singular, com aquela certeza de que ela estava só na casa do Cruges...» (p. 341);

19 «No peristilo, o velho guarda-portão esperava, descoberto, com uma carta na mão para Carlos. [...]

Era uma letra inglesa de mulher, num envelope largo, lacrado com um sinete de armas. Carlos ali mesmo abriu-a, e, logo à primeira linha, teve um movimento tão vivo, de tão bela surpresa, iluminando-se-lhe tanto o rosto, que Craft do lado perguntou sorrindo:

- Aventura? Herança?

Carlos vermelho, meteu a carta no bolso, e murmurou:

- Um bilhete apenas, um doente...

Era apenas um doente, era apenas um bilhete, mas começava assim: "Madame Castro Gomes apresenta os sus respeitos ao sr. Carlos da Maia, e roga-lhe o obséquio..." Depois, em duas breves palavras, pedia-lhe para ir ver na manhã seguinte, o mais cedo possível, uma pessoa de família, que se achava incomodada.» (p. 343);

20 «Na manhã seguinte, Carlos, que se erguera cedo, veio a pé do Ramalhete até à Rua de S. Francisco, a casa de Madame Gomes.» (p. 345);

21 «Voltou-se, viu Maria Eduarda diante de si.

Foi como uma inesperada aparição - e vergou profundamente os ombros, menos a saudá-la que a esconder a tumultuosa onda de sangue que sentia abrasar-lhe o rosto. [...] Obedecendo ao seu gesto risonho, Carlos pousou-se embaraçadamente à borda do sofá de repes. E depois de um instante de silêncio, que lhe pareceu profundo, quase solene, a voz de Maria Eduarda ergueu-se, uma voz rica e lenta, de um tom de ouro que acariciava.

Através do seu enleio, Carlos percebia vagamente que ela lhe agradecia os cuidados que tivera com Rosa.» (p. 348);

22 «Carlos, só, dentro do coupé, voltando à Baixa, sentia uma alegria triunfante com aquela partida da condessa, e a inesperada jornada do Dâmaso. Era como uma dispersão providencial de todos os importunos: e assim se fazia em torno da Rua de S. Francisco uma solidão - com todos os seus encantos, e todas as suas cumplicidades.

No Cais do Sodré deixou a carruagem, subiu a pé pelo Ferregial, veio passar diante das janelas na Rua de S. Francisco. [...] Duas vezes percorreu a Rua de S. Francisco; e recolheu para casa, sob a noite estrelada, devagar, ruminando a doçura daquele grande amor.» (pp. 364-365);

23 «Então todos os dias, durante semanas, teve essa hora deliciosa, esplêndida, perfeita, "a visita à inglesa".» (p. 365);

24 «Uma tarde, Carlos conversava com Maria Eduarda, acariciando "Niniche", que se lhe viera sentar nos joelhos, quando Romão entreabriu discretamente o reposteiro, e baixando a voz, com um ar embaraçado, um ar de cumplicidade, murmurou:

- É o sr. Dâmaso!...

Ela olhou Romão, surpreendida daqueles modos, e quase escandalizada.

- Pois bem, mande entrar!

E Dâmaso rompeu pela sala, carregado de luto [...] (p. 373);

Nessa noite, depois de jantar, Carlos, só no seu quarto, fumava, enterrado numa poltrona, relendo uma carta do Ega recebida nessa manhã - quando apareceu o Dâmaso. E, sem pousar mesmo o chapéu, logo da porta, exclamou, com o mesmo espanto da manhã:

- Então dize-me cá! Como diabo te vou eu encontrar hoje com a brasileira?... Como a conheceste tu? Como foi isso?

Sem mover a cabeça do espaldar da poltrona, cruzando as mãos sobre os joelhos em cima da carta do Ega, Carlos, agora cheio de bom humor, disse, com uma doce repreensão paternal:

- Pois então tu vais expor a uma senhora as tuas opiniões lúbricas sobre as lavradeiras de Penafiel! [...]

Carlos, imperturbável, cerrando os olhos como para se recordar, começou, num tom lento e solene de recitativo.» (pp. 377-378);

25 «Na segunda-feira seguinte chuviscava quando Carlos e Ega, no coupé fechado, partiram para o jantar dos Gouvarinhos. [...]

De repente o Ega, que fumava em silêncio, abotoado no seu paletó de Verão, bateu no joelho de Carlos, e entre risonho e sério:

- Dize-me uma coisa, se não é segredo sacrossanto... Quem é essa brasileira com quem tu agora passas todas as tuas manhãs?

Carlos ficou um instante aturdido, com os olhos no Ega.

- Quem te falou nisso?

- Foi o Dâmaso que mo disse. Isto é, o Dâmaso que mo rugiu...» (pp. 386-387);

26 «- Esperei meia hora; mas compreendi logo que estaria entretido com a brasileira... (p. 389);

[...]

- Veja a senhora condessa! Eu nem tive mesmo ideia de ir à Rússia. Há assim uma infinidade de coisas que se dizem e que não são exactas... E se se faz uma alusão irónica a elas, ninguém compreende a alusão, nem a ironia...

A condessa não respondeu logo, dando com o olhar uma ordem muda ao escudeiro. Depois, com um sorriso pálido:

- No fundo de tudo que se diz há sempre um facto, ou um bocado de facto que é verdadeiro. E isso basta... Pelo menos a mim basta-me...» (p. 391);

27 «- Que tolice foi essa da brasileira?... Quem lhe disse isso?

Ela confessou-lhe logo que fora o Dâmaso... O Dâmaso viera contar-lhe o entusiasmo de Carlos por essa senhora, e as manhãs inteiras que lá passava, todos os dias, à mesma hora... Enfim, o Dâmaso fizera-lhe claramente entrever uma liaison.

Carlos encolheu os ombros. Como podia ela acreditar no Dâmaso? Devia conhecer-lhe bem a tagarelice, a imbecilidade...» (p. 395);

28 «Calou-se; mas os seus belos olhos ficaram um instante pousados nos de Carlos, como esquecidos, e deixando fugir irresistivelmente um pouco do segredo que ela retinha no seu coração.

Ele murmurou:

- Por mais que eu fizesse, ficaria bem pago de tudo se me olhasse outra vez assim.

Uma onda de sangue cobriu toda a face de Maria Eduarda.

- Não diga isso...

- E que necessidade há que eu lho diga? Pois não sabe perfeitamente que a adoro, que a adoro, que a adoro!

[...]

- Escute! Sabe bem o que eu sinto por si, mas escute... Antes que seja tarde, há uma coisa que lhe quero dizer...

[...] Só via que ela tremia, só via que ela o amava... E, com a gravidade forte de um acto de posse, tomou-lhe lentamente as mãos, que ela lhe abandonou submissa de repente, já sem força, e vencida. E beijava-lhas ora uma, ora outra, e as palmas, e os dedos, devagar, murmurando apenas:

- Meu amor! meu amor! meu amor!

Maria Eduarda caíra pouco a pouco sobre a cadeira; e, sem retirar as mãos, erguendo para ele os olhos cheios de paixão, enevoados de lágrimas, balbuciou ainda, debilmente, numa derradeira suplicação:

- Há uma coisa que eu lhe queria dizer!...» (pp. 408-409);

29 «- Você quer-me vender tudo isto, Craft?

O outro respondeu, sem pestanejar, e com as mãos nas algibeiras:

- A la disposicion de usted... [...]

Com que alegria, ao deixar os Olivais, correu à Rua de S. Francisco, a anunciar a Maria Eduarda que lhe arranjara enfim definitivamente uma linda casa de campo! [...]

E assim se achava ela de repente com uma vivenda pitoresca, mobilada num belo estilo, deliciosamente saudável...» (pp. 412-413);

30 «E contou-lhe tudo miudamente, difusamente, desde o primeiro encontro, à entrada do Hotel Central, no dia do jantar ao Cohen.

Ega escutava-o, sem uma palavra, enterrado no fundo do sofá. Supusera um romancezinho, desses que nascem e morrem entre um beijo e um bocejo: e agora, só pelo modo como Carlos falava daquele grande amor, ele sentia-o profundo, absorvente, eterno, e para bem ou para mal tornando-se daí por diante, para sempre, o seu irreparável destino.» (p. 417);

31 «Mas eram quase onze horas, e ele tinha de ir aos Olivais. No dia seguinte, sábado, dia belo entre todos e solene para o seu coração, Maria Eduarda devia enfim visitar a quinta do Craft [...] Nessa manhã ele mandara aos Olivais dois criados para arejar as salas, espanejar, encher tudo de flores. Agora ia lá, como um devoto, ver se estava bem enfeitado o sacrário da sua deusa...» (p. 422);

32 «Qual maçada! E até, para o escutarem melhor, penetraram na Rua de S. Francisco, mais silenciosa.» (p. 427);

33 «Ao outro dia, por uma radiante manhã de Julho, Carlos saltava do coupé, com um molho de chaves, diante do portão da quinta do Craft. Maria Eduarda devia chegar às dez horas, só, na sua carruagem da Companhia. [...]

Só o meter a chave devagar e com uma inútil cautela na fechadura daquela morada discreta, foi para Carlos um prazer. (p. 429);

[...]

Um largo brilho de relâmpago alumiou o rio. Maria teve medo, entraram na alcova. [...] Fora um trovão rolou lento e surdo. Mas Maria já não o ouvia, caída nos braços de Carlos. Nunca o desejara, nunca o adorara tanto! Os seus beijos ansiosos pareciam tender mais longe que a carne, traspassá-lo, querer sorver-lhe a vontade e a alma - e toda a noite, entre esses brocados radiantes, com os cabelos soltos, divina na sua nudez, ela lhe apareceu realmente como a deusa que ele sempre imaginara, que o arrebatava enfim, apertado ao seu seio imortal, e com ele pairava numa celebração de amor, muito alto, sobre nuvens de oiro...» (p. 459);

34 «E de repente, enquanto a condessa balbuciava, como tonta, pendurada do seu pescoço - ele viu surgir na alma, viva e resplandecente, a imagem de Maria Eduarda, tranquila àquela hora na sua sala de repes vermelho, fazendo serão, confiando nele, pensando nele, relembrando as felicidades da véspera, quando a Toca, cheia dos seus amores, dormia, branca entre as árvores... Teve então horror à Gouvarinho; brutalmente, sem piedade, repeliu-a para o canto do coupé.» (pp. 445-446);

35 «- Pois bem! Vai, deixa-me! Vai para a outra, para a brasileira! Eu conheço-a, é uma aventureira que tem o marido arruinado, e precisa quem lhe pague as modistas!...» (p. 446);

36 «[Taveira] Arrastou Carlos: e pelo Chiado abaixo falou-lhe logo no Dâmaso. [...] Terrível, aquele Dâmaso! [...]

- Em todo o caso é uma rês traiçoeira, e deves ter cautela com ele...» (pp. 448-449);

37 «Todo o caminho, até ao Ramalhete, Carlos foi pensando em seu pai e nesse passado, assim rememorado e estranhamente ressurgido pela presença daquele patriarca, antigo alquilador, que fizera com ele tantas troças! E isto trazia conjuntamente outra ideia, que nestes últimos dias já o atravessara, pertinaz e torturante, dando-lhe, no meio da sua radiante felicidade, um sombrio arrepio de dor... Carlos pensava no avô.

Estava agora decidido que Maria Eduarda e ele partiriam para Itália, nos fins de Outubro. Castro Gomes, na sua última carta do Brasil, seca e pretensiosa, falava "em aparecer por Lisboa, com as elegâncias do frio, lá para meado de Novembro"; - e era necessário antes disso que estivessem já longe [...] Somente havia nisto um espinho - o avô!» (p. 451);

38 «Um largo brilho de relâmpago alumiou o rio. Maria teve medo, entraram na alcova. [...] Fora um trovão rolou lento e surdo. Mas Maria já não o ouvia, caída nos braços de Carlos. Nunca o desejara, nunca o adorara tanto! Os seus beijos ansiosos pareciam tender mais longe que a carne, traspassá-lo, querer sorver-lhe a vontade e a alma - e toda a noite, entre esses brocados radiantes, com os cabelos soltos, divina na sua nudez, ela lhe apareceu realmente como a deusa que ele sempre imaginara, que o arrebatava enfim, apertado ao seu seio imortal, e com ele pairava numa celebração de amor, muito alto, sobre nuvens de oiro...» (p. 459);

39 «Foi no sábado. Carlos veio muito cedo para o Ramalhete: e o seu coração batia com a deliciosa perturbação de um primeiro encontro, quando sentiu parar a carruagem de Maria e os seus vestidos escuros roçarem o veludo cor de cereja que forrava a escada discreta dos seus quartos. O beijo que trocaram, na antecâmara, teve a profunda doçura de um primeiro beijo.» (p. 467);

40 «Era um truque simples. Consistia em partir ele só para Madrid, no começo de uma certa "viagem de estudo", para que já preparara o avô em Santa Olávia. Maria ficava na Toca, durante um mês. Depois tomava o paquete para Bordéus: e era aí que Carlos se reunia com ela, a começarem essa existência de felicidade e romance que as flores de Itália deviam perfumar... Na Primavera ele voltava a Lisboa, deixando Maria instalada no seu ninho: e então, pouco a pouco, ia revelando ao avô aquela ligação, a que o prendia a honra, e que o forçaria agora a viver regularmente longos meses numa outra terra que se tornara pátria do seu coração.» (p. 476);

41 «Não era o correio. Era apenas um bilhete que o Baptista trazia numa salva: e vinha tão perturbado que anunciou "um sujeito, ali fora, na antecâmara, numa carruagem à espera..."

Carlos olhou o bilhete, empalideceu terrivelmente. [...]

Era Castro Gomes! (p. 477);

[...]

- Eu recebi no Rio de Janeiro, antes de partir, este escrito anónimo... [...] E desejo também afirmar-lhe que todo o conteúdo dele me deixou perfeitamente indiferente... Aqui o tem. [...]

Um homem que teve a honra de apertar a mão de Vossa Excelência - eu dispensava a honra... - que teve a honra de apertar a mão a Vossa Excelência e de apreciar o seu cavalheirismo, julga dever preveni-lo que sua mulher é, à vista de toda a Lisboa, a amante de um rapaz muito conhecido aqui, Carlos Eduardo da Maia, que vive numa casa às Janelas Verdes, chamada o Ramalhete. [...]

- O meu caso é este, sr. Carlos da Maia. Há pessoas em Lisboa que me não conhecem decerto, mas que sabem a esta hora que existe algures, em Paris, no Brasil, ou no Inferno, um certo Castro Gomes, que tem uma mulher bonita, e que a mulher desse Castro Gomes tem em Lisboa um amante. Isto é desagradável, sobretudo por ser falso. [...] É por isso que aqui venho, muito francamente, de gentleman para gentleman, dizer-lhe, como tenho tenção de dizer a outros, que aquela senhora não é minha mulher. [...] 

O que importa agora é que eu lhe retiro solenemente o nome que lhe emprestara; e ala fica apenas com o seu, que é Madame Mac Gren. [...]

A pequerruchinha que ali anda não é minha filha... Eu conheço a mãe somente há três anos... Vinha dos braços de um qualquer, passou para os meus... Posso pois dizer, sem injúria, que era uma mulher que eu pagava.

Completara com esta palavra a humilhação do outro. Estava deliciosamente desforrado. [...]

[Carlos] Unira a sua alma arrebatadamente a outra alma nobre e perfeita, longe nas alturas, entre nuvens de oiro; de repente uma voz passava, cheia de rr; as duas almas rolavam, batiam num charco; e ele achava-se tendo nos braços uma mulher que não conhecia, e que se chamava Mac Gren.

Mac Gren! Era a Mac Gren!

Ergueu-se, com os punhos fechados; e veio-lhe uma revolta furiosa...» (pp. 479-483);

42 «Daí a pouco rodava pela estrada dos Olivais. Já se acendera o gás. E inquieto, no estreito assento, acendendo nervosamente cigarettes que não fumava, sofria já a perturbação daquele encontro difícil e doloroso...» (pp. 491-492);

43 «Carlos entrou.

Lá estava, ainda de capa, esperando de pé, pálida, com toda a alma concentrada nos olhos que refulgiam entre as lágrimas. E correu para ele, arrebatou-lhe as mãos, sem poder falar, soluçando, tremendo toda.

Na sua terrível perturbação, Carlos achava só esta palavra, melancolicamente estúpida:

- Não sei porque chora, não sei, não há razão para chorar...

Ela pôde enfim balbuciar:

- Escuta-me, pelo amor de Deus! não digas nada, deixa-me contar-te... [...]

A culpa não fora dela! não fora dela! Ele devia ter perguntado àquele homem que sabia toda a sua vida... Fora sua mãe... era horroroso dizê-lo, mas fora por causa dela que conhecera e que fugira com o primeiro homem, o outro, um irlandês... [...]

- Mas porque não me disseste, porque não me disseste? Para que foi essa longa mentira? Eu tinha-te amado do mesmo modo! Para que mentiste tu? [...]

- Mas eu queria dizer-to - murmurou muito baixo [...] Eu disse-te logo: "Há uma coisa que te quero contar..." Tu nem me deixaste acabar. [cf. p. 409 (excerto 28)]

Atirou-se para o chão, como uma criatura vencida e finda, escondendo a face no sofá. E Carlos, indo lentamente ao fundo da sala, voltando bruscamente até junto dela, tinha só a mesma recriminação, "a mentira, a mentira", pertinaz e de cada dia...

Só os soluços dela lhe respondiam. [...]

- Que queres tu? Tive medo que o teu amor mudasse, que fosse de outro modo... [...]

- Não, mentiste em tudo! Tudo era falso, falso o teu casamento, falso o teu nome, falsa a tua vida toda... Nunca mais te poderia acreditar... [...]

- E eu? - exclamou ela, caminhando para ele, dominando-o, magnífica e com um esplendor de verdade na face. - E eu? porque hei-de eu acreditar nessa grande paixão que me juravas? O que é que tu amavas então em mim? Dize lá! Era a mulher de outro, o nome, o requinte do adultério, as toilettes?... [...]

- Maria, queres casar comigo?» (pp. 496-502);

44 «Nascera em Viena: mas pouco se recordava dos tempos de criança, quase nada sabia do papá, a não ser a sua grande nobreza e a sua grande beleza. [...] Enfim a mamã metera-a num convento ao pé de Tours [...]

A mamã ao princípio vinha vê-la todos os meses [...]» (pp. 506...);

45 «Daí a dias Carlos e Ega vinham numa vitória, pela estrada dos Olivais, em caminho da Toca.

Toda essa manhã, no Ramalhete, Carlos estivera enfim contando ao Ega o impulso de paixão que o lançara de novo e para sempre, como esposo, nos braços de Maria; e, na confiança absoluta que o prendia ao Ega, revelara-lhe mesmo miudamente a história dela, dolorosa e justificadora.» (p. 515);

46 «Agora, ao aproximar-se da Toca, Ega ia receando o primeiro encontro com Maria Eduarda. Incomodava-o esse enleio, esse rubor que ela não poderia ocultar - certa que, como confidente de Carlos, ele conhecia a sua vida, as suas misérias, as suas relações com Castro Gomes. Por isso hesitara em vir à Toca. Mas também, não aparecer mais a Maria Eduarda, seria marcar, com um relevo quase ofensivo, o desejo caridoso de não molestar o seu pudor... Por isso decidira "dar o mergulho de uma vez". Quem, senão ele, deveria ser o mais apressado em estender a mão à noiva de Carlos?...» (p. 515);

47 «Como dizia o Ega, devia esperar, deixar-se ir... E no entanto Maria e ele não poderiam isolar-se ali todo um longo Inverno, sem o calor sociável de alguns amigos em redor. Por isso uma manhã, encontrando o Cruges, que fora o vizinho de Maria e outrora lhe dava notícias da "lady inglesa", pediu-lhe para vir jantar à Toca no domingo.

O maestro apareceu numa tipóia, à tardinha, de laço branco e de casaca: e os fatos claros de campo com que encontrou Carlos e Ega, começaram logo a enchê-lo de mal-estar. Toda a mulher, além das Lolas e Conchas, o atarantava, o emudecia...» (p. 524);

48 «Nesse mesmo momento sentiram um trote de cavalo na estrada - e apareceu o marquês.

Foi uma surpresa para Carlos, que o não vira durante esse Verão. O marquês parou logo, tirando profundamente, ao ver Maria, o seu largo chapéu desabado.» (p. 525);

49 «Estas reuniões alegres foram ao princípio, como dizia o Ega, dominicais: mas o Outono arrefecia, bem depressa se despiriam as árvores da Toca, e Carlos acumulou-as duas vezes por semana, nos velhos dias feriados da Universidade, domingos e quintas.» (p. 526);

50 «Às vezes Carlos dava lições a Rosa - ora de história, contando-lha familiarmente como um conto de fadas, ora de geografia, interessando-a pelas terras onde vivem gentes negras, e pelos velhos rios que correm entre as ruínas dos santuários. Isto era o prazer mais alto de Maria. Séria, muda, cheia de religião, escutava aquele ser bem-amado ensinando sua filha.» (p. 529);

51 «Caminhando sob as acácias, Carlos abriu a carta do Ega. Era da véspera, com a data: "À noite, à pressa." E dizia: "Lê, nesse trapo que te mando, esse superior pedaço de prosa que lembra Tácito. Mas não te assustes; eu suprimi, mediante pecúnia, toda a tiragem, com excepção de dois números mais que foram, um para a Toca, outro (oh! lógica suprema dos hábitos constitucionais!) para o Paço, para o Chefe do Estado!... Mas esse mesmo não chegará ao seu destino. Em todo o caso desconfio de que esgoto saiu esse enxurro e precisamos providenciar! Vem já! Espero-te às duas. E, como Iago dizia a Cássio, mete dinheiro na bolsa."

Inquieto, Carlos descintou o jornal. Chamava-se a "Corneta do Diabo": e na impressão, no papel, na abundância dos itálicos, no tipo gasto, todo ele revelava imundície e malandrice. Logo na primeira página duas cruzes a lápis marcavam um artigo que Carlos, num relance, viu salpicado com o seu nome. E leu isto: "Ora viva, sô Maia! Então já se não vai ao consultório, nem se vêem os doentes do bairro, sô janota? - Esta piada era botada no Chiado, à porta da Havanesa, ao Maia, ao Maia dos cavalos ingleses, um tal Maia do Ramalhete, que abarrota por aí de catita; e o pai Paulino que tem olho e que passava nessa ocasião ouviu a seguinte cornetada: -  É que o sô Maia acha que é mais quente viver nas fraldas de uma brasileira casada, que nem é brasileira nem é casada, e a quem o papalvo pôs casa, aí para os lados dos Olivais, para estar ao fresco! Sempre os há neste mundo!... Pensa o homem que botou conquista; e cá a rapaziada de gosto ri-se, porque o que a gaja lhe quer não são os lindos olhos, são as lindas louras... O simplório, que aí pilecas bifes, que nem que fosse o marquês, o verdadeiro marquês, imaginava que se estava abiscoitando com uma senhora do chique, e do boulevard de Paris, e casada, e titular!... E no fim (não, esta é para a gente deixar estourar o bandulho a rir!) no fim descobre-se que  a tipa era uma cocotte safada, que trouxe para aí um brasileiro já farto dela para a passar cá aos belos lusitanos... E caiu a espiga ao Maia! Pobre palerma! Ainda assim o sô Maia só apanhou os restos de outro, porque a tipa, já antes de ele se enfeitar, tinha pandegado à larga, aí para a Rua de S. Francisco, com um rapaz da fina, que se safou também, porque cá como nós só aprecia a bela espanhola. Mas não obsta a que o sô Maia seja traste! - Pois se assim é, dissemos nós, cautelinha, porque o Diabo cá tem a sua Corneta preparada para cornetear por esse mundo as façanhas do Maia das conquistas. Ora viva, sô Maia!"» (pp. 530-531);

52 «Ergueu-se, abalado. E então ali, sob essas árvores desfolhadas, onde durante o Verão, quando elas se enchiam de sombra e de murmúrio, ele passeara com Maria, esposa eleita da sua vida - Carlos perguntou, pela primeira vez a si mesmo, se a honra doméstica, a honra social, a pureza dos homens de quem descendia, a dignidade dos homens que dele descendessem, lhe permitiam em verdade casar com ela...» (p. 533);

53 «Ia bater uma hora quando a caleche do "Torto" começou a rolar na estrada, ainda encharcada da chuva da noite. Logo adiante da vila, na descida, cruzaram com um coupé que trepava num trote esfalfado. Maria julgou avistar nele de relance o chapéu branco e o monóculo de Ega... Pararam. E era com efeito o Ega [...]» (p. 535); «Carlos apareceu nessa noite, já tarde, transido de frio, com um monte de bagagens - porque abandonara definitivamente os Olivais. Maria Eduarda regressava também a Lisboa, para o primeiro andar da Rua de S. Francisco [...]» (p. 564);

54 «E Ega voltou a falar dos inundados do Ribatejo e do sarau literário e artístico que, em benefício deles, se "ia cometer" no salão da Trindade... Era uma vasta solenidade oficial. Tenores do Parlamento, rouxinóis da literatura, pianistas ornados com o hábito de Sant' Iago, todo o pessoal canoro e sentimental do constitucionalismo "ia entrar em fogo". Os reis assistiam, já se teciam grinaldas de camélias para pendurar na sala. Ele, apesar de demagogo, fora convidado para ler um episódio das "Memórias de Um Átomo": recusara-se, por modéstia, por não encontrar, nas "Memórias", nada tão suficientemente palerma que agradasse à capital. Mas lembrara o Cruges; e o maestro ia ribombar ou arrulhar uma das suas "meditações". Além disso, havia uma poesia social pelo Alencar. Enfim, tudo prenunciava uma imensa orgia...» (pp. 536-537);

55 «Passavam à porta do Hotel Aliança quando Ega sentiu alguém que se apressava, chamar atrás: "Ó ser Ega! Vossa Excelência faz favor, sr. Ega?..." - Parou, reconheceu o chapéu recurvo, as barbas do sr. Guimarães.

- Vossa Excelência desculpe! - exclamou o demagogo esbaforido. - Mas vi-o descer, queria-lhe dar duas palavras, e como me vou embora amanhã...

- Perfeitamente... Ó Cruges, vai andando, já te apanho! [...]

- Aqui está o que é... Vossa Excelência sabe, ou talvez não saiba, que eu fui em Paris íntimo da mãe do sr. Carlos da Maia... Vossa Excelência tem pressa, e não vem agora a propósito essa história. Basta dizer que aqui há anos ela entregou-me, para eu guardar, um cofre que, segundo dizia, continha papéis importantes.... Depois, naturalmente, ambos tivemos muitas outras coisas em que pensar, os anos correram, ela morreu. Numa palavra, porque Vossa Excelência está com pressa: eu conservo ainda em meu poder esse depósito, e trouxe-o por acaso quando vim agora a Portugal por negócios da herança de meu irmão... Ora hoje justamente, ali no teatro, comecei a reflectir que o melhor era entregá-lo à família...

O Cruges mexeu-se impacientemente:

- Ainda te demoras?

Um instante! - gritou Ega, já interessado por aqueles papéis e pelo cofre. - Vai andando.

Então o sr. Guimarães, à pressa, resumiu o pedido. Como sabia a intimidade do sr. João da Ega e de Carlos da Maia, lembrara-se de lhe entregar o cofrezinho para que ele o restituísse à família...

- Perfeitamente! - Acudiu Ega. Eu estou mesmo em casa dos Maias, no Ramalhete. [...]

- Muito agradecido a Vossa Excelência! Eu junto-lhe então um bilhete e Vossa Excelência entrega-o da minha parte ao Carlos da Maia, ou à irmã.

Ega teve um momento de espanto:

- À irmã?... A que irmã? [...]

- A que irmã!? À irmã dele, à única que tem, à Maria! [...]

- Eu parece-me - dizia o Ega sorrindo, mas nervoso - que nós estamos aqui a enrodilhar-nos num equívoco... Eu conheço o Maia desde pequeno, vivo até agora em casa dele, posso afiançar-lhe que não tem irmã nenhuma...

[...] O sr. Guimarães imaginava que não era segredo, que todas essas coisas da irmã estavam esquecidas, desde que houvera reconciliação...

- Como vi, ainda não há muitos dias, o sr. Carlos da Maia com a irmã e com Vossa Excelência, na mesma carruagem, no Cais do Sodré...

- O que! Aquela senhora! A que ia na carruagem?

- Sim! - exclamou o sr. Guimarães irritado, farto enfim dessa confusão em que se debatiam.  - Aquela mesma, a Maria Eduarda Monforte, ou a Maria Eduarda Maia, como quiser, que eu conheci de pequena, com quem andei muitas vezes ao colo, que fugiu com o Mac Gren, que esteve depois com a besta do Castro Gomes... Essa mesma! [...] (pp. 614-616);

- É uma caixita pequena que a Monforte me deu, na véspera de partir para Londres com a filha. Era no tempo da guerra... Já a Maria vivia com o irlandês, tinha mesmo uma pequena, a Rosa. Depois veio a Comuna [...] De sorte que fui ficando com os papéis. [...] E agora aí estão, às ordens da família.

- Se isso não fosse incómodo para Vossa Excelência - acudiu o Ega - eu passava agora pelo seu hotel e levava-os logo comigo...

- Incómodo nenhum! [...]

E como estavam no Pelourinho, rogou ao Ega que esperasse um momento, enquanto ele corria a cima buscar os papéis da Monforte. [...] E de tudo isto ressaltava esta certeza monstruosa: - Carlos amante da irmã! [...] (pp. 619-621);

Então Ega, já impaciente, esvaziou toda a caixa sobre a mesa, alastrou os papéis. E entre cartas, outras contas, bilhetes de visita, um grande sobrescrito destacou com esta linha a tinta azul: "Pertence a minha filha Maria Eduarda." [...]

Ega leu-o alto, devagar. Dizia:

Como a Maria teve a pequena e anda muito fraca, e eu também me não sinto nada boa com umas pontadas, parece-me prudente, para o que possa vir a suceder, fazer aqui uma declaração que te pertence a ti, minha querida filha,, e que só sabe o padre Talloux (Mr. l'abbé Talloux, coadjuteur à Saint-Roche) porque lho disse há dois anos, quando tive a pneumonia. E é o seguinte: Declaro que a minha filha Maria Eduarda, que costuma assinar Maria Calzaski, por supor ser esse o nome de seu pai, é portuguesa e filha de meu marido Pedro da Maia, de quem me separei voluntariamente, trazendo-a comigo para Viena, depois para Paris, e que agora vive em companhia de Patrick Mac Gren, em Fontainebleau, com quem vai casar. E o pai de meu marido era meu sogro Afonso da Maia, viúvo, que vivia em Benfica e também em Santa Olávia, ao pé do rio Douro. O que tudo se pode verificar em Lisboa, pois devem lá estar os papéis; e os meus erros, de que vejo agora as consequências, não devem impedir que tu, minha querida filha, tenhas posição e fortuna que te pertencem. E por isso aqui declaro tudo isto que assino, no caso que o não possa fazer diante de um tabelião, o que tenciono logo que esteja melhor. E de tudo, se eu vier a morrer, o que Deus não permita, peço perdão a minha filha. E assino com o meu nome de casada - Maria Monforte da Maia.

Ega ficou a olhar para o Vilaça.» (pp. 635-636);

56 «- Vá, acaba lá! - exclamou Carlos, recaindo no assento, mais pálido.

E Ega, miudamente, contou a longa, terrível conversa com o Guimarães, desde o momento em que o homem, por acaso, já ao despedir-se, já ao estender-lhe a mão, falara da "irmã do Maia". Depois entregara-lhe os papéis da Monforte à porta do Hotel Paris, no Pelourinho...

- E aqui está, não sei mais nada. Imagina tu que noite eu passei! Mas não coragem de te dizer. Fui ao Vilaça... Fui ao Vilaça com a esperança sobretudo de ele saber algum facto, ter algum documento que atirasse por terra toda esta história do Guimarães... Não tinha nada, não sabia nada. Ficou tão aniquilado como eu!

No curto silêncio que caiu, um chuveiro mais largo, alagando o arvoredo do jardim, cantou nas vidraças. Carlos ergueu-se arrebatadamente, numa revolta de todo o ser:

- E tu acreditas que isso seja possível? Acreditas que suceda a um homem como eu, como tu, numa rua de Lisboa? Encontro uma mulher, olho para ela, conheço-a durmo com ela e, entre todas as mulheres do mundo, essa justamente há-de ser minha irmã! É impossível... Não há Guimarães, não há papéis, não há documentos que me convençam!» (pp. 642-643);

57 «Então Carlos, que passeava pensativamente fumando, olhou um momento o Ega adormecido, e sumiu-se por trás do reposteiro.

Ia à Rua de S. Francisco. [...]

Fora nessa tarde, só no seu quarto, que Carlos decidira ir falar a Maria Eduarda - por um motivo supremo de dignidade e de razão, que ele descobrira e que repetia a si mesmo, incessantemente, para se justificar. Nem ela nem ele eram duas crianças frouxas, necessitando que a crise mais temerosa da sua vida lhes fosse resolvida e arranjada pelo Ega ou pelo Vilaça [...] Por isso ele, só ele, devia ir à Rua de S. Francisco. [...]

E pouco a pouco, aquela fachada muda donde apenas saía, a um canto, uma claridade lânguida de alcova adormecida, foi-o estranhamente penetrando de inquietação e desconfiança. [...] Não entrou [...] Depois parou diante da larga barra de claridade que saía do portão do Grémio; e foi para lá [...]

Apenas acabou o conhaque, saiu. Agora, caminhando rente das casas, não via aquela fachada, que o perturbava, com a sua claridade de alcova morrendo nos vidros. O portão ficara cerrado, o gás ardia no patamar. E subiu, sentindo mais, pela escada de pedra, as pancadas do coração que o pousar dos seus passos. Melanie, que veio abrir, disse-lhe que a senhora, um pouco cansada, se fora encostar sobre a roupa [...] (pp. 652-655);

58 «Ele tenteava, procurando na brancura da roupa: encontrou um joelho, a que percebia a forma e o calor suave, através da seda leve: e ali esqueceu a mão, aberta e frouxa, como morta, num entorpecimento onde toda a vontade e toda a consciência se lhe fundiam, deixando-lhe apenas a sensação daquela pele quente e macia, onde a sua palma pousava. Um suspiro, um pequenino suspiro de criança, fugiu dos lábios de Maria, morreu na sombra. Carlos sentiu a quentura do desejo que vinha dela, que o entontecia, terrível como o bafo ardente de um abismo, escancarado na terra a seus pés. Ainda balbuciou: "Não, não..." Mas ela estendeu os braços, envolveu-lhe o pescoço, puxando-o para si, num murmúrio que era como a continuação do suspiro, e em que o nome de "querido" sussurrava e tremia. Sem resistência, como um corpo morto que um sopro impele, ele caiu-lhe sobre o seio. Os seus lábios secos acharam-se colados, num beijo aberto que os humedecia. E de repente, Carlos enlaçou-a furiosamente, esmagando-a e sugando-a, numa paixão e num desespero que fez tremer todo o leito. [...]

Alta noite, Ega acordou com uma grande sede. Saltara da cama, esvaziara a garrafa no toucador, quando julgou sentir por baixo, no quarto de Carlos, uma porta bater. Escutou. Depois, arrepiado, remergulhou nos lençóis. mas espertara inteiramente, com uma ideia estranha, insensata, que o assaltara sem motivo, o agitava, lhe fazia palpitar o coração no grande silêncio da noite. Ouviu assim dar três horas. A porta de novo batera, depois uma janela: era decerto vento que se erguera. Não podia porém readormecer, às voltas, num terrível mal-estar, com aquela ideia cravada na imaginação que o torturava. Então, desesperado, pulou da cama, enfiou um paletó, e em pontas de chinelas, com a mão diante da luz, desceu surdamente ao quarto de Carlos. Na antessala parou, tremendo, com o ouvido contra o reposteiro, na esperança de perceber algum calmo rumor de respiração. O silêncio era pesado e pleno. Ousou entrar... A cama estava feita e vazia, Carlos saíra.

[...] E agora não duvidava. Carlos fora findar a noite à Rua de S. Francisco!... Estava lá, dormia lá! E só uma ideia surgia através do seu horror - fugir, safar-se para Celorico, não ser testemunha daquela incomparável infâmia!...» (pp. 658-662);

59 «Nessa madrugada, às quatro horas, em plena escuridão, Carlos cerrara de manso o portão da Rua de S. Francisco. E, mais pungente, apoderava-se dele, na frialdade da rua, o medo que já o roçara, ao vestir-se na penumbra do quarto, ao lado de Maria adormecida - o medo de voltar ao Ramalhete! Era esse medo que já na véspera o trouxera todo o dia por fora no dog-cart, findando por jantar lugubremente com o Cruges, escondido num gabinete do Augusto. Era medo do avô, medo do Ega, medo do Vilaça; medo daquela sineta do jantar que os chamava, os juntava; medo do seu quarto, onde a cada momento qualquer deles podia erguer o reposteiro, entrar, cravar os olhos na sua alma e no seu segredo... Tinha agora a certeza que eles sabiam tudo. E mesmo que nessa noite fugisse para  Santa Olávia, pondo entre si e Maria uma separação tão alta como o muro de um claustro, nunca mais do espírito daqueles homens, que eram os seus amigos melhores, sairia a memória e a dor da infâmia em que ele se despenhara. A sua vida moral estava estragada... Então, para que partiria - abandonando a paixão, sem que por isso encontrasse a paz? Não seria mais lógico calcar desesperadamente todas as leis humanas e divinas, arrebatar para longe Maria na sua inocência, e para todo o sempre abismar-se nesse crime que se tornara a sua sombria partilha na Terra?

Já assim pensara na véspera. Já assim pensara... Mas antevira então outro horror, um supremo castigo, a esperá-lo na solidão onde se sepultasse. Já lhe percebera mesmo a aproximação; já noutra noite recebera dele um arrepio; já nessa noite, deitado junto de Maria, que adormecera cansada, o pressentira, apoderando-se dele, com um primeiro frio de agonia.

Era, surgindo do fundo do seu ser, ainda ténue mas já perceptível, uma saciedade, uma repugnância por ela, desde que a sabia do seu sangue!... Uma repugnância material, carnal, à flor da pele, que passava como um arrepio. Fora primeiramente aquele aroma que a envolvia, flutuava entre os cortinados, lhe ficava a ele na pele e no fato, o excitava tanto outrora, o impacientava tanto agora - que ainda na véspera se encharcara em água-de-colónia, para o dissipar. Fora depois aquele corpo dela, adorado sempre como um mármore ideal, que de repente lhe aparecera, como era na sua realidade, forte de mais, musculoso, de grossos membros de amazona bárbara, com todas as belezas copiosas do animal de prazer. Nos seus cabelos de um lustre tão macio, sentia agora inesperadamente uma rudeza de juba. Os seus movimentos na cama, ainda nessa noite o tinham assustado como se fossem os de uma fera, lenta e ciosa, que se estirava para o devorar... Quando os seus braços o enlaçavam, o esmagavam contra os seus rijos peitos túmidos de seiva, ainda decerto lhe punham nas veias uma chama que era toda bestial. Mas, apenas o último suspiro lhe morria nos lábios, aí começava insensivelmente a recuar para a borda do colchão, com um susto estranho: e imóvel, encolhido na roupa, perdido no fundo de uma infinita tristeza, esquecia-se pensando numa outra vida que podia ter, longe dali, numa casa simples, toda aberta ao sol, com sua mulher, legitimamente sua, flor de graça doméstica, pequenina, tímida, pudica, que não soltasse aqueles gritos lascivos e não usasse aquele aroma tão quente! E desgraçadamente agora já não duvidava... Se partisse com ela, seria para bem cedo se debater no indizível horror de um nojo físico. E que lhe restaria então, morta a paixão que fora a desculpa do crime, ligado para sempre a uma mulher que o enojava - e que era... Só lhe restava matar-se! [...]

Defronte do Ramalhete os candeeiros ainda ardiam. Abriu de leve  porta. Pé ante pé, subiu as escadas ensurdecidas pelo veludo cor de cereja. No patamar tacteava, procurava a vela, quando, através do reposteiro entreaberto, avistou uma claridade que se movia no fundo do quarto. Nervoso, recuou, parou no recanto. O clarão chegava, crescendo; passos lentos, pesados, pisavam surdamente o tapete; a luz surgiu - e com ela o avô em mangas e camisa, lívido, mudo, grande, espectral. Carlos não se moveu, sufocado; e os dois olhos do velho, vermelhos, esgazeados, cheios de horror, caíram sobre ele, ficaram sobre ele, varando-o até às profundidades da alma, lendo lá o seu segredo. Depois, sem uma palavra, com a cabeça branca a tremer, Afonso atravessou o patamar, onde a luz sobre o veludo espalhava um tom de sangue - e os seus passos perderam-se no interior da casa, lentos, abafados, cada vez mais sumidos, como se fossem os derradeiros que devesse dar na vida!

Carlos entrou no quarto às escuras, tropeçou num sofá. E ali se deixou cair, com a cabeça enterrada nos braços, sem pensar, sem sentir, vendo o velho lívido passar, repassar diante dele como um longo fantasma, com a luz avermelhada na mão. Pouco a pouco foi-o tomando um cansaço, uma inércia, uma infinita lassidão da vontade, onde um desejo apenas transparecia, se alongava - o desejo de interminavelmente repousar algures numa mudez e numa grande e numa grande treva... Assim escorregou ao pensamento da morte. Ela seria a perfeita cura, o asilo seguro. Porque não iria ao seu encontro? Alguns graus de láudano nessa noite e penetrava na absoluta paz...

Ficou muito tempo embebendo-se nesta ideia, que lhe dava alívio e consolo, como se, escorraçado por uma tormenta ruidosa, visse diante dos passos abrir-se uma porta, donde saísse calor e silêncio. Um rumor, o chilrear de um pássaro na janela, fez-lhe sentir o sol e o dia. Ergueu-se, despiu-se muito devagar, numa imensa moleza. E mergulhou na cama, enterrou a cabeça no travesseiro para recair na doçura daquela inércia, que era um antegosto da morte, e não sentir mais nas horas que lhe restavam nenhuma luz, nenhuma coisa da Terra» (pp. 665-668);

60 «O Sol ia alto, um barulho passou, o Baptista rompeu pelo quarto:

- Ó sr. D. Carlos, ó meu menino! O avô achou-se mal no jardim, não dá acordo!...

Carlos pulou do leito [...]

Arrebatadamente, Carlos levantara-lhe a face, já rígida, cor de cera, com os olhos cerrados, um fio de sangue aos cantos da longa barba de neve. Depois caiu de joelhos no chão húmido, sacudia-lhe as mãos, murmurando: "Ó avô! ó avô!" Correu ao tanque, borrifou-o de água:

- Chamem alguém! Chamem alguém!

Outra vez lhe palpava o coração... Mas estava morto. Estava morto, já frio, aquele corpo que, mais velho que o século, resistira tão formidavelmente, como um grande roble, aos anos e aos vendavais. Ali morrera solitariamente, já o Sol ia alto, naquela tosca mesa de pedra onde deixara pender a cabeça cansada. [...]

Carlos murmurou, devagar, como para si mesmo, com os olhos postos no chão:

- Não! É estranho, não me faço mais desgraçado! Aceito isto como um castigo...  Quero que seja um castigo... E sinto-me só muito pequeno, muito humilde diante de quem assim me castiga. Esta manhã pensava em matar-me. E agora não! é o meu castigo viver, esmagado para sempre... O que me custa é que ele não me tivesse dito adeus!» (pp. 668-672);

61 «Carlos não sabia. Contava que Ega, terminada essa missão à Rua de S. Francisco, fosse aborrecer-se uns dias com ele a Santa Olávia. Mais tarde era necessário trasladar para lá o corpo do avô...

- E passado isso, vou viajar... Vou à América, vou ao Japão, vou fazer esta coisa estúpida e sempre eficaz que se chama "distrair"...» (p. 678);

62 «Então Ega teve só um desejo, o desesperado desejo de findar.

- Vossa Excelência conhece a letra de sua mãe, não é verdade?... Pois bem! Eu trago aqui uma declaração dela a seu respeito... Esse Guimarães é quem tinha este documento, com outros papéis que ela lhe entregou em 71, nas vésperas da guerra... Ele conservou-os até agora, e queria restituir-lhos, mas não sabia onde Vossa Excelência vivia. Viu-a há dias numa carruagem, comigo e com Carlos... Foi ao pé do Aterro, Vossa Excelência deve lembrar-se, defronte do alfaiate, quando vínhamos da Toca... Pois bem! O Guimarães veio imediatamente ao procurador dos Maias, deu-lhe esses papéis, para que os entregasse a Vossa Excelência... E nas primeiras palavras que disse, imagine o assombro de todos, quando se entreviu que Vossa Excelência era parenta de Carlos, e parenta muito chegada.

Atabalhoara esta história de pé, quase de um fôlego, com bruscos gestos de nervoso. Ela mal compreendia, lívida, num indefinido terror. Só pôde murmurar muito debilmente: "Mas..." E de novo emudeceu, assombrada, devorando os movimentos do Ega, que, debruçado sobre o sofá, desembrulhava a tremer a caixa de charutos da Monforte. Por fim voltou para ela com um papel na mão, atropelando as palavras numa debandada:

- A mãe de Vossa Excelência nunca lho disse... Havia um motivo muito grave... Ela tinha fugido de Lisboa, fugido ao marido... Digo isto assim brutalmente, perdoe-me Vossa Excelência, mas não é o momento de atenuar as coisas... Aqui está! Vossa Excelência conhece a letra de sua mãe. É dela esta letra, não é verdade?

- É! - Exclamou Maria, indo arrebatar o papel.

- Perdão! - gritou Ega, retirando-lho violentamente. - Eu sou um estranho! E Vossa Excelência não se pode inteirar de tudo isto enquanto eu não sair daqui.

Fora uma inspiração providencial [...]

Foi só na Rua do Ouro que começou a serenar, tirando o chapéu, respirando largamente. E ia então repetindo a si mesmo todas as consolações que se poderiam dar a Maria Eduarda: era nova e formosa; o seu pecado fora inconsciente; o tempo acalma a dor [...] (pp. 683-684);

63 «E fumavam junto do lume, na sala Luís XV, quando o escudeiro veio dizer que uma senhora, em baixo, numa carruagem, procurava o sr. Ega. Foi um terror. Imaginaram logo Maria, alguma resolução desesperada. Vilaça ainda teve a esperança de ela trazer alguma nova revelação, que tudo mudasse, salvasse da "bolada"... Ega desceu a tremer. Era Melanie numa tipóia de praça, abafada numa grande ulster, com uma carta de madame.

À luz da lanterna, Ega abriu o envelope, que trazia apenas um cartão branco, com estas palavras a lápis: "Decidi partir amanhã para Paris." [...]

No dia seguinte, na estação de Santa Apolónia, Ega, que viera cedo com o Vilaça, acabava de despachar a sua bagagem para o Douro, quando avistou Maria, que entrava trazendo Rosa pela mão. Vinha toda envolta numa grande peliça escura, com um véu dobrado, espesso como uma máscara: e a mesma gaze de luto escondia o rostozinho da pequena, fazendo-lhe um laço sobre a touca. [...] Ega correu para Maria Eduarda, conduziu-a pelo braço, em silêncio, ao vagão-salão, que tinha todas as cortinas cerradas. Junto do estribo ela tirou devagar a luva. E muda, estendeu-lhe a mão.

- Ainda nos vemos no Entroncamento - murmurou Ega. - Eu sigo também para o Norte.

Alguns sujeitos pararam, com curiosidade, ao ver sumir-se naquela carruagem de luxo, fechada, misteriosa, uma senhora que parecia tão bela, de ar tão triste, coberta de negro. E apenas Ega fechou a portinhola, o Neves, o d' "A Tarde" e do Tribunal de Contas, rompeu de entre um rancho, arrebatou-lhe o braço com sofreguidão:

- Quem é?

Ega arrastou-o pela Plataforma, para lhe deixar cair no ouvido, já muito adiante, tragicamente:

- Cleópatra!

O político, furioso, ficou rosnando: "Que asno!..." Ega abalara. Junto do seu compartimento, Vilaça esperava, ainda deslumbrado com aquela figura de Maria Eduarda, tão melancólica e nobre. Nunca a vira antes. E parecia-lhe uma rainha de romance. [...]

No Entroncamento, Ega veio bater nos vidros do salão, que se conservava fechado e mudo. Foi Maria que abriu. Rosa dormia. Miss Sara lia a um canto, com a cabeça numa almofada. E "Niniche" assustada ladrou.

- Quer tomar alguma coisa, minha senhora?

- Não, obrigada...

Ficaram calados, enquanto Ega, com o pé no estribo, tirava lentamente a charuteira. Na estação mal alumiada passavam saloios, devagar, abafados em mantas. Um guarda rolava uma carreta de fardos. Adiante a máquina resfolegava na sombra. E dois sujeitos rondavam em frente do salão, com olhares curiosos e já lânguidos para aquela magnífica mulher, tão grave e sombria, envolta na sua peliça negra.

- Vaia para o Porto? - murmurou ela.

- Para Santa Olávia...

- Ah!

Então Ega balbuciou com os beiços a tremer:

- Adeus!

Ela apertou-lhe a mão com muita força, em silêncio, sufocada.

Ega atravessou, devagar, por entre soldados de capote enrolado a tiracolo, que corriam a beber à cantina. à porta do bufete voltou-se ainda, ergueu o chapéu. Ela, de pé, moveu de leve o braço num lento adeus. E foi assim que ele, pela derradeira vez na vida, viu Maria Eduarda, grande, muda, toda negra na claridade, à portinhola daquele vagão que para sempre a levava.» (pp. 685-687);

64 «Então, naquela mudez de soledade e de abandono, Ega, com os olhos para o longe, murmurou devagar:

- Mas tu desse casamento não tinhas a menor indicação, a menor suspeita?

- Nenhuma... Soube-o de repente pela carta dela em Sevilha.

E era esta a formidável nova anunciada por Carlos, a nova que ele logo contara de madrugada ao Ega, depois dos primeiros abraços, em Santa Apolónia. Maria Eduarda ia casar.

Assim o anunciara ela a Carlos numa carta muito simples, que ele recebera na quinta dos Vila Medina. Ia casar. E não parecia ser uma resolução tomada arrebatadamente, sob um impulso do coração; mas antes um propósito lento, longamente amadurecido. Ela aludia nessa carta a ter "pensado muito, reflectido muito..." De resto o noivo devia ir perto dos cinquenta anos. E Carlos, portanto, via ali a união de dois seres desiludidos da vida, maltratados por ela, cansados ou assustados do seu isolamento, que, sentindo um no outro qualidades sérias de coração e de espírito, punham em comum o seu resto de calor, de alegria e de coragem, para afrontar juntos a velhice...

- Que idade tem ela?

Carlos pensava que ela devia ter quarenta e um ou quarenta e dois anos. Ela dizia na carta "sou apenas mais nova que o meu noivo seis anos e três meses". Ele chamava-se Mr. de Trelain. E era evidentemente um homem de espírito largo, desembaraçado de prejuízos, de uma benevolência quase misericordiosa, porque quisera Maria, conhecendo os seus erros.

- Sabe tudo? - exclamou Ega, que saltara do parapeito.

- Tudo, não. Ela diz que Mr. de Trelain conhecia do seu passado "todos aqueles erros em que ela caíra inconscientemente". Isto dá a entender que não sabe tudo... [...]» (pp. 710-711);

65 «Carlos, no entanto, fora examinar, junto da janela, um quadro que pousava no chão, para ali esquecido e voltado para a parede. Era o retrato do pai, de Pedro da Maia, com as suas luvas de camurça na mão, os grandes olhos árabes na face triste e pálida que o tempo amarelara mais. Colocou-o em cima de uma cómoda. E atirando-lhe uma leve sacudidela com o lenço:

- Não há nada que me faça mais pena, do que não ter um retrato do avô!... Em todo o caso este sempre o vou levar para Paris. [...]

Ega ergueu-se, atirou um gesto desolado:

- Falhámos a vida, menino!

- Creio que sim... [...]

O quarto escurecia no crepúsculo frio e melancólico de Inverno. Carlos pôs também o chapéu: e desceram pelas escadas forradas de veludo cor de cereja, onde ainda pendia, com um ar baço de ferrugem, a panóplia de velhas armas. Depois na rua Carlos parou, deu um longo olhar ao sombrio casarão, que naquela primeira penumbra tomava um aspecto mais carregado de residência eclesiástica, com as suas paredes severas, a sua fila de janelinhas fechadas, as grades dos postigos térreos cheias de treva, mudo, para sempre desabitado, cobrindo-se já de tons de ruína.

Uma comoção passou-lhe na alma, murmurou, travando o braço a Ega:

- É curioso! Só vivi dois anos nesta casa, e é nela que me parece estar metida a minha vida inteira!

Ega não se admirava. Só ali, no Ramalhete, ele vivera realmente daquilo que dá sabor e relevo à vida - a paixão.

Muitas outras coisas dão valor à vida... Isso é uma velha ideia de romântico, meu Ega!

- E que somos nós? - Exclamou Ega. - Que temos nós sido desde o colégio, desde o exame de latim? Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento, e não pela razão...

Mas Carlos queria realmente saber se, no fundo, eram mais felizes esses que se dirigiam só pela razão, não se desviando nunca dela, torturando-se para se manter na sua linha inflexível, secos, hirtos, lógicos, sem emoção até ao fim...

- Creio que não - disse o Ega. - Por fora, à vista, são desconsoladores. E por dentro, para eles mesmos, são talvez desconsolados. O que prova que neste lindo mundo ou tem de se ser insensato ou sem sabor...

- Resumo: não vale a pena viver...

- Depende inteiramente do estômago! - atalhou Ega.

Riram ambos. Depois Carlos, outra vez sério, deu a sua teoria da vida [...]» (pp. 713-715).

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