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                          Conferências
                                  do Casino 
                                 | 
                         
                        
                           
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                              Série
                                    de conferências realizadas em
                                    Lisboa, na primavera de 1871, pelo
                                    grupo do Cenáculo, formado por
                                    jovens escritores e intelectuais de
                                    vanguarda. 
                              O grande
                                    impulsionador foi Antero de
                                      Quental, que chegara a Lisboa
                                    em 1868, e logo principiara a
                                    influir nos gostos e interesses do
                                    grupo, iniciando-o na leitura de
                                    Proudhon, que tanto havia de
                                    transparecer nos trabalhos
                                    realizados. A ideia das Conferências
                                    (a que Antero entusiasticamente se
                                    refere em carta a Teófilo Braga,
                                    surgiu na Casa da Rua dos Prazeres,
                                    onde o Cenáculo reunia então. Antero e
                                    Batalha Reis alugaram a sala do
                                    Casino Lisbonense, no largo da
                                    Abegoaria, hoje de Rafael Bordalo
                                    Pinheiro; a Revolução
                                      de Setembro, onde então
                                    trabalhava Alberto de Queirós, irmão
                                    do romancista, encarregou-se da
                                    propaganda. A 18 de maio apareceu
                                    naquele jornal um manifesto (que já
                                    fora distribuído em prospeto),
                                    assinado por doze nomes: Adolfo
                                    Coelho, Antero
                                      de Quental, Augusto Soromenho,
                                    Augusto Fuschini, Eça de Queirós,
                                    Germano Vieira de Meireles,
                                    Guilherme de Azevedo, Jaime Batalha
                                    Reis, Oliveira Martins, Manuel
                                    Arriaga, Salomão Sáraga, Teófilo
                                    Braga. Ali se apontavam as intenções
                                    dos organizadores das chamadas
                                    «Conferências Democráticas»: perante
                                    a transformação política e social
                                    que o mundo sofria, os signatários
                                    sentiam-se no dever de «estudar
                                    serenamente a significação dos
                                    interesses em jogo»; de investigar
                                    como a sociedade é e como ela deve
                                    de ser»; de «estudar todas as ideias
                                    e todas as correntes do século». A
                                    atitude de indiferença e alheamento
                                    relativamente às prementes
                                    ansiedades do momento – atitude em
                                    que Portugal se mantinha –
                                    parecia-lhes criminosa e
                                    esterilizadora das energias vitais
                                    da nação. E os organizadores
                                    enunciavam mais claramente o seu
                                    programa: «Abrir uma tribuna onde
                                    tenham voz as ideias e os trabalhos
                                    que caracterizam este movimento do
                                    século, preocupando-nos sobretudo
                                    com a transformação social, moral e
                                    política dos povos; ligar Portugal
                                    com o movimento moderno, fazendo-o
                                    assim nutrir-se dos elementos vitais
                                    de que vive a humanidade civilizada;
                                    procurar adquirir a consciência dos
                                    factos que nos rodeiam na Europa;
                                    agitar na opinião pública as grandes
                                    questões da Filosofia e da Ciência
                                    modernas; estudar as condições da
                                    transformação política, económica e
                                    religiosa da sociedade portuguesa». 
                              A
                                    22 de maio, Antero
                                      de Quental fez a primeira
                                    conferência, a que chamou O Espírito das
                                      Conferências, e de que hoje
                                    nos restam apenas os relatos dos
                                    jornais contemporâneos. Era o
                                    desenvolvimento do programa contido
                                    no manifesto. Insistia-se na
                                    ignorância, indiferença e
                                    consequente repulsa dos portugueses
                                    pelas ideias novas, na missão que
                                    aos grandes espíritos incumbia de
                                    preparar as inteligências e as
                                    consciências para o progresso das
                                    sociedades e os resultados da
                                    ciência. Aduzia-se de novo o exemplo
                                    da restante Europa, e de novo se
                                    estigmatizava a vergonhosa exceção
                                    que Portugal constituía. O fulcro da
                                    discussão nas futuras conferências,
                                    anunciava o orador, seria a
                                    Revolução no que este conceito
                                    continha de mais nobre e elevado. E
                                    Antero
                                    terminava com um apelo a todas as
                                    almas de boa vontade, para que
                                    meditassem nos problemas que iam ser
                                    propostos, e nas possíveis soluções,
                                    embora contrárias aos princípios
                                    defendidos pelos conferencistas. 
                              A
                                    segunda preleção, realizada dias
                                    depois, foi ainda de Antero: Causas da Decadência dos
                                      Povos Peninsulares, publicada
                                    meses depois em opúsculo. As causas
                                    mencionadas eram três: o catolicismo
                                    posterior ao Concílio de Trento –
                                    que desvirtuara a essência do
                                    Cristianismo e atrofiara a
                                    consciência individual; a monarquia
                                    absoluta – que coartara as
                                    liberdades nacionais e embotara na
                                    cega submissão o caráter da raça
                                    ibérica; as conquistas ultramarinas
                                    – que tinham exaurido as energias do
                                    país e criado hábitos funestos de
                                    ociosidade e grandeza. Para estes
                                    males, cujas consequências ainda
                                    então continuavam a fazer-se sentir,
                                    as soluções propostas eram: opor ao
                                    catolicismo a consciência livre, a
                                    ciência, a filosofia, a crença na
                                    renovação da Humanidade; à monarquia
                                    centralizada a federação
                                    republicana, com larga
                                    democratização da vida municipal; à
                                    inércia industrial, a iniciativa do
                                    trabalho livre, sem interferência do
                                    Estado, e «organizado de forma a
                                    estabelecer a transição para o novo
                                    mundo industrial do socialismo, a
                                    que pertence o futuro». Antero
                                    terminava expondo o seu conceito de
                                    Revolução – ação pacífica –, e
                                    fechava com a síntese escandalosa:
                                    «0 Cristianismo foi a Revolução do
                                    mundo antigo: a Revolução não é mais
                                    do que o Cristianismo do mundo
                                    moderno». 
                              Augusto
                                    Soromenho falou em seguida sobre Literatura Portuguesa.
                                    Fez a negação sistemática dos
                                    valores e literários nacionais – com
                                    exceção de Gil Vicente, Camões e
                                    poucos mais; fundado num etnicismo
                                    romântico, negava até a existência
                                    duma literatura portuguesa, uma vez
                                    que a nossa atividade nesse ramo
                                    nunca fora expressão autêntica da
                                    vida nacional; os contemporâneos
                                    eram os mais vigorosamente atacados
                                    – poetas, romancistas, dramaturgos,
                                    homens da Imprensa. Mas, para modelo
                                    e guia duma renovação salvadora,
                                    Soromenho limitava-se a propor
                                    Chateaubriand; falava do Belo
                                    absoluto como ideal da Literatura e
                                    negava que esta fosse o retrato das
                                    sociedades; era-o sim da Humanidade
                                    em geral. A voz de Soromenho,
                                    professor do Curso Superior de
                                    Letras, homem de formação clássica,
                                    soou um pouco discordante, apesar do
                                    furor de crítica que o animava. 
                              A
                                    quarta conferência – a de Eça de
                                    Queirós, sobre A
                                        Literatura Nova – o Realismo
                                        como nova expressão de Arte
                                    – contradizia em vários pontos a sua
                                    exposição e era na verdade um grito
                                    de revolta contra as tradições
                                    literárias. Bem integrada no
                                    espírito revolucionário, a sua
                                    preleção, que diretamente se
                                    inspirava em Proudhon, chamava logo
                                    de início a atenção para a
                                    necessidade de operar na literatura
                                    a mesma revolução que se estava
                                    dando na política, na ciência, na
                                    vida social. Expunha depois a
                                    doutrina da arte como produto das
                                    sociedades, intimamente ligada ao
                                    progresso e decadência destas, e
                                    subordinada não já a puros fatores
                                    individuais, mas a causas
                                    extrínsecas – causas permanentes (o
                                    solo, a raça, o clima) e causas
                                    acidentais (as circunstâncias
                                    históricas). Entre as causas
                                    acidentais, a mais importante era
                                    sem dúvida a que Eça chamou
                                    «ideia-mãe» - o ideal duma
                                    sociedade; eis o que não faltava ao
                                    século XIX, mas que só havia pouco
                                    principiara a ser aproveitado em
                                    Literatura, pois muitos tinham-no
                                    ignorado ou atraiçoado. Era a
                                    Revolução, que inspirara tantos
                                    escritores (Eça insistia nos
                                    exemplos franceses), de Rabelais a
                                    Beaumarchais, até ser renegada e
                                    esquecida pela arte
                                    contrarrevolucionária; seguia-se
                                    depois a crítica cerrada ao
                                    Romantismo, a Chateaubriand, ao
                                    dessoramento aristocrático e à
                                    apoplexia plebeia dos românticos;
                                    verberava-se o terrível divórcio
                                    entre o artista e a sociedade;
                                    depois, Eça anunciava o princípio da
                                    reação salutar que se estava dando
                                    contra a impostura oficializada: era
                                    o Realismo.
                                    Seguia-se a definição apologética da
                                    nova escola, que estava longe de ser
                                    um mero processo formal, como alguns
                                    supunham: era a negação da arte pela
                                    arte, da retórica balofa, do
                                    passadismo; era a análise com vista
                                    à verdade absoluta, era a anatomia
                                    do caráter; e, dando um retrato do
                                    homem e da sociedade, o Realismo
                                    tocava os limites da moral; visava à
                                    justiça e à verdade, servia o ideal
                                    do seu tempo. Bela, justa,
                                    verdadeira, a obra de arte realista
                                    não podia nunca ser considerada
                                    imoral, como tantos criam. E Eça
                                    documentava-se com a Bovary,
                                    com os quadros de Courbet (como
                                    Proudhon já fizera), e acabava com
                                    um apelo para que a arte se salvasse
                                    pelo Realismo,
                                    condenação do vício, revalorização
                                    do trabalho e da virtude. 
                              A
                                    quinta e última conferência fê-la
                                    Adolfo Coelho a 19 de junho;
                                    chamou-Ihe A Questão do
                                      Ensino, quando, passado tempo,
                                    a publicou em opúsculo. Menos
                                    avançada que as de Antero e
                                    Eça, estava apenas, como a de
                                    Soromenho, numa pura posição de
                                    ataque às coisas portuguesas, e as
                                    soluções que apontava
                                    circunscreviam-se ainda a uma zona
                                    restrita da vida nacional. Depois de
                                    traçar o quadro desolador do ensino
                                    em Portugal através da História,
                                    Adolfo Coelho apontava como solução
                                    a separação completa de Igreja e
                                    Estado, e a mais ampla liberdade de
                                    consciência. E como, segundo o
                                    conferencista, a Igreja não fazia
                                    mais que deprimir o povo, e do
                                    Estado também nada havia a esperar,
                                    o único remédio era apelar para a
                                    iniciativa privada, esperando que ao
                                    menos esta se esforçasse por
                                    difundir o verdadeiro espirito
                                    cientifico – único verdadeiramente
                                    profícuo no ensino. 
                              Anunciou-se
                                    ainda uma sexta conferência, Os historiadores críticos
                                      de Jesus, de Salomão Sáraga.
                                    Mas, no dia marcado para a sua
                                    realização, apareceu colado na porta
                                    do Casino Lisbonense o aviso de proibição das
                                      conferências, «preleções em
                                    que se expõem e procuram sustentar
                                    doutrinas e proposições que atacam a
                                    religião e as instituições políticas
                                    do Estado». À volta desta proibição
                                    levantou-se violenta celeuma;
                                    lavrou-se imediatamente um protesto,
                                    e logo choveram as cartas aos
                                    jornais e os opúsculos de polémica
                                    entre os quais a terrível carta de Antero «ao
                                    Marquês de Ávila e de Bolama». Os
                                    protestos foram vãos; a proibição
                                    manteve-se, e nunca chegaram a
                                    realizar-se as outras conferências
                                    previstas: O Socialismo,
                                    por Batalha Reis; A
                                      República, por Antero; A Instrução Primária,
                                    por Adolfo Coelho; e A
                                      Dedução Positiva da Ideia
                                      Democrática, por Augusto
                                    Fuschini. 
                              Encaradas
                                    no seu conjunto, as «Conferências do
                                    Casino» representam entre nós a
                                    afirmação dum movimento de ideias
                                    que contagiara os intelectuais
                                    portugueses, através dos livros
                                    vindos de fora. Era o historicismo,
                                    o interesse pelas ciências políticas
                                    e sociais, a critica positivista à
                                    maneira de Taine, o evolucionismo de
                                    Darwin, um alvorecer de interesse
                                    pelas teorias de Marx e Engels, os
                                    ecos da Internacional, o realismo em
                                    Arte como expressão dum novo ideal
                                    de vida, a crença no progresso das
                                    sociedades, conseguido através do
                                    avanço das ciências – das positivas,
                                    cujo prestígio crescia a cada
                                    instante. E, embora as preleções de
                                    Soromenho e A. Coelho se tenham
                                    mantido alheias a este espírito
                                    revolucionário, e apenas tenham
                                    marcado uma posição de ácido
                                    negativismo quanto às coisas
                                    portuguesas – a verdade é que o
                                    espírito das Conferências do Casino
                                    foi este. Como Eça afirmava nas Farpas, «era a
                                    primeira vez que a Revolução sob a
                                    sua forma científica tinha em
                                    Portugal a sua tribuna». 
                              Lemos, Ester de,
                                    DICIONÁRIO DE LITERATURA, 3ª edição,
                                    1º volume, Porto, Figueirinhas, 1979 
                                
                                
                             
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                           | 
                          A
                                  abertura das Conferências do Casino 
                                 | 
                         
                        
                           
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                                     maio 1871 
                                   
                                 
                               
                              O Sr.  Antero de
                                      Quental abriu no dia 19 as
                                    conferências democráticas no Casino. 
                              É a primeira
                                    vez que a revolução, sob a sua forma
                                    científica, tem em Portugal a
                                    palavra. 
                              O mundo
                                    revolucionário, ou antes, na sua
                                    feição partidária e política, o
                                    mundo republicano, tinha-se até hoje
                                    manifestado indistintamente - por
                                    alguma voz isolada que sem eco se
                                    extinguia no silêncio da opinião, ou
                                    pelas agitações, mais suspeitadas
                                    que verificadas, de especuladores e
                                    de intrigantes. Às vezes meia folha
                                    de papel era distribuída grátis, com
                                    alguns insultos aos ministros, ao
                                    Rei, e a um ou outro regedor. Outras
                                    vezes aparecia um jornal, que, em
                                    tom lírico, cantava a fraternidade e
                                    os seus encantos, dirigia apóstrofes
                                    ao rochedo de Guernesey, citava o
                                    Gólgota em questões de fazenda, e
                                    voltando-se para o Rei, dizia-lhe: -
                                    Tu! Por vezes ainda um jornal
                                    de capa vermelha, e de calúnia de
                                    outras cores, a propósito de
                                    liberdade insultava senhoras, e, sob
                                    o pretexto de ser um jornal, de
                                    combate, era um jornal de difamação.
                                    Havia outros republicanos: todos os
                                    jornais na oposição se dão vagamente
                                    esse ar, falam então no suor do
                                    povo... (Imaginarão que a
                                    aristocracia não sua? Como se
                                    iludem!) O Jornal do Comércio,
                                    representante da burguesia liberal,
                                    foi algum tempo republicano, e dizia
                                    aos tiranos coisas desagradáveis que
                                    deviam magoar Napoleão III, o
                                    defunto Calígula, e outros
                                    ex-opressores. O partido do Sr.
                                    Marquês de Angeja parece que também
                                    tendia para republicano; pelo menos
                                    assim o pensavam os criados do
                                    Martinho. Alguns reformistas têm
                                    dito que o sr. bispo de Viseu, bem
                                    no seu fundo - é republicano. Corre
                                    que outros chefes de partido o são
                                    também. E isto vai numa tal
                                    contaminação democrática, que o
                                    único conservador constante que nos
                                    fica - é Danton! 
                              Tal era o
                                    partido republicano, que causava
                                    hilaridade! Por isso o espanto é
                                    grande, vendo aparecer homens que
                                    apresentam a revolução serenamente -
                                    como uma ciência a estudar. Não o
                                    fariam mais tranquilamente se se
                                    tratasse de anatomia. 
                              As
                                    conferências hão-de encontrar
                                    resistências. Em primeiro lugar o
                                    nosso público inteligente e
                                    literário, ama sobretudo o bel-esprit,
                                    a oratória, a frase. Moda
                                    peninsular. Ora as conferências pela
                                    sua natureza científica e
                                    experimental - exigem justamente o
                                    contrário dos aparatos retóricos.
                                    São a demonstração, não são a
                                    apóstrofe; são a ciência, não são a
                                    eloquência. As declamações têm
                                    tirado à democracia o seu caráter
                                    privativo de realidade e de ciência.
                                    Temos ouvido cantar a democracia,
                                    berrá-la, soluçá-la: é tempo de a
                                    vermos demonstrar. Deixemos no
                                    bengaleiro a nossa perpétua
                                    inclinação nacional de escutar odes
                                    - e entremos só com a tendência
                                    humana de resolver problemas. 
                              A revolução
                                    aparece ao mundo conservador, como o
                                    cristianismo ao mundo sofista. Os
                                    sofistas tinham tomado o partido de
                                    rir daqueles nazarenos. É o
                                    que faz agora o periódico a Nação,
                                    quando se trata de revolução. Não és
                                    original, ó Nação! 
                              Tenhamos bom
                                    senso! Escutemos a revolução; e
                                    reservemo-nos a liberdade de a
                                    esmagar - depois de a ouvir. 
                              Uma coisa que
                                    a compromete é ela falar em nome do
                                    proletário. O proletário pretende
                                    explicar-se; quer por um lado contar
                                    a sua miséria, por outro provar o
                                    seu direito. O simples bom senso
                                    indica que se deixe falar o
                                    proletário. Silêncio ao pobre!
                                    gritava Lamennais em 48. Esta
                                    palavra horrorosa, que é um dobre a
                                    finados pela dignidade humana,
                                    inspira ainda as instituições. -
                                    Santo Deus! Parece que lhes dói a
                                    consciência, às instituições!
                                    Deixemos falar o proletário. Que
                                    receiam? Não temos os nossos
                                    exércitos, os nossos parlamentos, a
                                    nossa polícia? Deixemo-lo falar. 
                              Desdigamo-lo
                                    depois quando ele mentir,
                                    refutemo-lo quando errar. É muito
                                    mais cómodo encontrarmo-nos com quem
                                    represente o proletário,
                                    sossegadamente, na sala do Casino,
                                    do que encontrarmos o próprio
                                    proletário mudo, taciturno, pálido
                                    de ambição ou de fome, armado de um
                                    chuço à embocadura de uma rua. Fazer
                                    conferências - se bem atentamos
                                    neste ato - reconhece-se que é uma
                                    coisa diferente de fazer barricadas.
                                    É por lhe não permitirem fazer
                                    conferências que o proletário
                                    parisiense faz fogo. O proletário
                                    inglês não espingardeia os seus
                                    governos, pela razão de que fala nos
                                    meetings. E, quando aqueles
                                    que falam no poder os representam
                                    mal, os operários ingleses
                                    pedem-lhes contas nos seus comícios,
                                    cobrem-nos de impropérios, e
                                    atiram-lhes com cebolas à cara. Se a
                                    vítima tenta fugir ou fazer
                                    resistência à cebola ou ao insulto,
                                    um policeman segura-o
                                    gravemente pela gola da casaca, e
                                    convida em nome da moralidade, o
                                    procurador do povo, a esperar pelos
                                    restos da injúria e da hortaliça. 
                              Temos ainda
                                    que, atualmente, o grande caráter
                                    das conferências é, segundo nos
                                    parece, a oportunidade. Há muito
                                    tempo que a opinião pública as
                                    pedia. O quê! há aí alguém que o
                                    negue? 
                              Não o nega
                                    decerto o parlamento onde todos os
                                    dias ministros, maiorias e
                                    oposições, dizem que o País está
                                    desorganizado. 
                              Não o nega
                                    decerto a imprensa, que todos os
                                    dias declara que o sistema
                                    constitucional está desautorizado! (Diário
                                      Popular, Jornal do Comércio,
                                      Gazeta, etc., passim). 
                              Não o nega a
                                    opinião, que todos os dias exclama,
                                    com uma certa convicção desleixada,
                                    nos cafés, nas ruas, nos passeios,
                                    nos estancos: - Ora! isto está
                                    podre! 
                              Quando a
                                    opinião, tão geral, diz que um país
                                    está perdido dentro de um sistema,
                                    coloca-se por essa mesma confissão
                                    fora do sistema, e deseja, por uma
                                    propaganda nova, uma reforma social. 
                              Sejamos
                                    lógicos. As Farpas não são o
                                    legitimismo, nem a república, nem o
                                    constitucionalismo, nem o
                                    sebastianismo. Desejam simplesmente
                                    ser a lógica e o bom senso. 
                              Vejamos: não
                                    tem a imprensa confessado todos os
                                    dias a podridão do País e a
                                    desorganização das suas forças
                                    vivas? (Jornais políticos, passim). 
                              Ou são
                                    sinceros, ou não. Se não são, então
                                    faltam duplamente à dignidade,
                                    porque desconsideram os outros
                                    enganando-os, e desconsideram-se a
                                    si mentindo. São perturbadores de
                                    profissão: querem lançar, de caso
                                    pensado, o ceticismo no espírito
                                    público, para o interesse da sua
                                    intriga. Pertencem portanto ao
                                    ministério público. - Se são
                                    sinceros então devem estar radiantes
                                    de alegria, porque têm essa
                                    propaganda nova que implicitamente
                                    pediam. 
                              Não vemos nós
                                    os ministérios dissolvendo câmaras,
                                    depois de lhes experimentarem um
                                    momento de inteligência - Outra,
                                      que esta não presta!? 
                              Não vemos os
                                    partidos, em quem deve residir a
                                    consciência do Estado, derrubarem
                                    todos os dias ministérios, como um
                                    homem que num chapeleiro experimenta
                                    chapéus - Outro, que este não
                                      serve? 
                              E vós, jornais
                                    políticos, não confessais vós todos
                                    os dias a impotência dos vossos
                                    políticos? Não vos tendes dito uns
                                    aos outros os extremos insultos? Não
                                    vos tendes destruído uns pelos
                                    outros? Apelamos para ti, leitor de
                                    bom senso. Não é verdade que o Diário
                                      Popular tem dito, dentro do
                                    sistema, que o Sr. Fontes é incapaz
                                    de organizar o País? É. - Não é
                                    verdade que a Revolução tem
                                    provado à saciedade, dentro do
                                    sistema, que o sr. bispo de Viseu é
                                    incapaz de organizar o País? É. -
                                    Não é verdade que a Gazeta do
                                      Povo tem provado que ambos
                                    eles são incapazes? E não é verdade
                                    que a Revolução e o Diário
                                      Popular têm afirmado
                                    uniformemente que o incapaz é o Sr.
                                    Braamcamp? É. Por consequência
                                    parece que estais inutilizados uns
                                    pelos outros. Se um fala verdade,
                                    todos a falam. Se um a falseia,
                                    todos a falseiam. Portanto ou tendes
                                    de aceitar a vossa condenação, ou
                                    tendes de confessar a vossa
                                    falsidade. 
                              Qual é a
                                    conclusão? A necessidade de uma
                                    propaganda nova. É o que a imprensa
                                    está pedindo há longo tempo; é o que
                                    o Casino enfim lhe fornece! Muito
                                    feliz ainda que lhe não apareça com
                                    chuços, tocando a rebate pelas ruas,
                                    e que lhe apareça apenas com ideias,
                                    e tocando a rebate através das
                                    consciências. Todos os partidos
                                    estão pois interessados nesta
                                    propaganda. Quem fala depois do Sr.
                                     Antero de
                                      Quental? Deve ser o sr. bispo
                                    de Viseu! 
                              
                                Queiroz, Eça
                                      de, Uma Campanha Alegre
                                      (de «As Farpas»), volume I, Lello
                                      & Irmão - Editores, Porto,
                                      1979 
                               
                              
                                
                             
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                           | 
                          A
                                  supressão das Conferências do Casino 
                               | 
                         
                        
                           
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                                   maio 1871 
                                 
                               
                             
                            O sr. ministro do Reino fez
                                  entregar por um empregado de polícia
                                  ao Sr. Zagalo, diretor do Casino, um
                                  papel - reacionário pela intenção, mas
                                  demagógico pela gramática - em que se
                                  notificava que, por ordem superior,
                                  estavam fechadas as conferências
                                    democráticas. 
                            Conheces já decerto, leitor
                                  sensato e honrado, o protesto dos
                                  conferentes, a adesão de outros
                                  cidadãos, a opinião da imprensa... 
                            E achas certamente na tua
                                  consciência que este ato do sr.
                                  marquês de Ávila, não tendo de certo
                                  modo equidade, não tem de modo algum
                                  legalidade; que é sobretudo
                                  profundamente inábil; e que o sr. marquês, dando um
                                  golpe de Estado contra alguns
                                  escritores que no Casino faziam
                                  crítica de história e de literatura,
                                  foi criar uma atitude política onde só
                                  havia um intuito científico. 
                            Homens que numa sala, com
                                  senhoras na galeria, movem questões
                                  científicas e literárias, numa alta
                                  generalização de ideias, são tão
                                  inofensivos na política do seu país
                                  como um livro de matemática.
                                  São motores de pensamento e de estudo,
                                  que vão tocar a rebate no sino das
                                  Mercês. - Mas homens que o Governo
                                  obriga a fazer um protesto num café,
                                  na agitação de trezentas pessoas; a
                                  percorrerem as redações dos jornais,
                                  seguidos de uma multidão indignada; a
                                  colocarem-se como defensores da
                                  consciência ofendida - esses
                                  parecem-se terrivelmente com homens de
                                  uma ação política! As conferências
                                  desceram assim da sua serenidade
                                  filosófica; estão na luta, estão na
                                  discussão da Carta, estão na
                                  prosa da gazeta do Povo! 
                            Vejamos a legalidade do
                                  facto. Num país constitucional, tem-se
                                  sempre aberta sobre a mesa a Carta
                                  Constitucional - ou para descansar
                                  nela o charuto, ou para tirar dela um
                                  argumento. 
                            Diz a Carta no seu artigo
                                  145.º: 
                            A
                                    inviolabilidade dos direitos civis e
                                    políticos dos cidadãos
                                    portugueses... é garantida pela
                                    Constituição do Reino, pela maneira
                                    seguinte: 
                            § 3.º Todos
                                    podem comunicar o seu pensamento por
                                    palavras e escritos, e publicá-los
                                    pela imprensa sem dependência de
                                    censura, contanto que hajam de
                                    responder pelos abusos que cometerem
                                    no exercício desse direito. 
                            Temos, pois, adquiridos à
                                  certeza dois pontos: 
                            1.º Que todo o cidadão pode
                                publicar o seu pensamento falando ou
                                escrevendo;  
                            2.º Que o cidadão fica
                                responsável pelo abuso do seu direito.
                            Por consequência, logo na
                                  primeira conferência: 
                            1.º O Sr.  Antero de Quental
                                podia falar sobre a religião em toda a
                                liberdade da sua opinião;
                             
                            2.º Se abusasse, o Sr.  Antero de Quental
                                respondia pelo abuso.
                            É lógico. Ora quem torna
                                  efetiva a responsabilidade desse
                                  abuso? 
                            Em primeiro lugar: O
                                  comissário que deve assistir a todas
                                  as reuniões públicas, na ideia do
                                  decreto com força de lei de 15 de
                                  junho de 1870. «As reuniões públicas
                                  (diz este decreto) podem ser
                                  dissolvidas pela autoridade... quando
                                  por qualquer forma perturbarem a ordem
                                  pública. A dissolução da reunião só
                                  pode ser intimada à assembleia -
                                  depois da autoridade advertir em voz
                                  alta os diretores da reunião (neste
                                  caso, o preletor)». O comissário
                                  assistente das conferências, o Sr.
                                  Rangel, não intimou, e não advertiu o
                                  Sr.  Antero de
                                    Quental, nem em voz alta, nem
                                  com gestos. Talvez o tivesse feito por
                                  suspiros - mas esse caso não está na
                                  lei. Portanto o sr. comissário não
                                  achou, na sua consciência, que o Sr.  Antero de
                                    Quental abusasse da liberdade de
                                  expor o seu pensamento. 
                            Em segundo lugar: O
                                  ministério público querelou do Sr.  Antero de
                                    Quental? Não. 
                            Por consequência nem o
                                  comissário presente à conferência, nem
                                  o ministério público, encontraram na
                                  conferência do Sr.  Antero de
                                    Quental abuso punível. 
                            As conferências que se
                                  seguiram foram, uma sobre crítica
                                    literária contemporânea, outra
                                  sobre o realismo, como nova
                                    expressão da arte, a terceira
                                  sobre o ensino e as suas reformas.
                                  Em que atacavam estas a religião ou as
                                  instituições políticas? Fazer a
                                  crítica da literatura contemporânea é
                                  ofender (segundo a linguagem rococó
                                  da portaria) o código fundamental da
                                  monarquia? Nesse caso pedimos a cabeça
                                  do Sr. Pinheiro Chagas, o crânio do
                                  Sr. Júlio Machado, e uma grande porção
                                  do Sr. Luciano Cordeiro! Quem o
                                  diria!? Quando se escrever que o Sr.
                                  Vidal é um poeta lírico ligeiramente
                                  inferior a Lamartine, o trono de Sua
                                  Majestade ficará bambaleando um quarto
                                  de hora! 
                            Mas vejamos! A última
                                  conferência foi feita no dia 19 de
                                  junho; a portaria foi dada no dia 26
                                  do mesmo mês, antes da conferência que
                                  ia ser feita. Por consequência o ser.
                                  marquês de Ávila fechou, não as
                                  conferências que se tinham feito, o
                                  que seria um pouco inútil - mas as
                                  conferências que se iam fazer. 
                            Ora, segundo o citado artigo
                                  da Carta, só se pode coibir a
                                  liberdade de pensamento quando
                                    houver abuso: e como esse abuso
                                  não existia, pelo simples motivo que a
                                  conferência ainda não fora feita, e
                                  por consequência o pensamento não fora
                                  manifestado - segue-se que o sr.
                                  ministro do Reino violou a Carta, se
                                  esta palavra violar ainda se
                                  pode empregar a respeito da Carta, sem
                                  atrair sorrisos maliciosos sobre tão
                                  insensata metáfora. 
                            Ao ministro cabia unicamente
                                  o direito de fazer processar o Sr.  Antero de
                                    Quental. Isso era a lógica, o
                                  bom senso, a legalidade. 
                            Do que o ministro não tem o
                                  mínimo direito é da rude supressão da
                                  palavra a preletores de literatura, de
                                  arte e de pedagogia. Fazendo, como
                                  fez, tal supressão está fora da lei,
                                  fora do espírito do tempo, quase fora
                                  da humanidade. 
                            Com direito igual pode amanhã
                                  o sr. ministro mandar suprimir As
                                    Farpas, os romances do Sr.
                                  Camilo Castelo Branco, os volumes de
                                  história do Sr. Alexandre Herculano,
                                  os jornais, a conversação, esta
                                  simples pergunta - «Como está? passou
                                  bem?» Pode suprimir ainda um sorriso
                                  ou um olhar expressivo. Pode fulminar
                                  o espirro! 
                            Ora o artigo 103.º da Carta
                                  diz: 
                            «Os ministros são
                                  responsáveis... § 5.º Pelo que obrarem
                                  contra a liberdade dos cidadãos.» 
                            E o § 28 do artigo 145.º
                                  acrescenta: 
                            «todo o cidadão poderá fazer
                                  apresentar reclamações, queixas... e
                                  ATÉ expor qualquer infração da
                                  constituição, requerendo... a efetiva
                                  responsabilidade do infrator.» 
                            Seria portanto possível
                                  responder à portaria do sr. marquês de
                                  Ávila com o instrumento seguinte: 
                            - «Requeiro à Câmara dos
                                  Deputados que torne efetiva a
                                  responsabilidade do sr. ministro do
                                  Reino, procedendo contra ele como
                                  infrator do § 3.º do art.º 145 da
                                  Carta Constitucional - segundo me é
                                  permitido pelo § 28 do citado artigo.» 
                            Tanto em relação ao preletor
                                  que abusou da liberdade, segundo a
                                  Carta, como para o ministro que
                                  infringiu a lei, segundo a mesma
                                  Carta, temos até aqui argumentado com
                                  a legalidade. 
                            Agora a equidade: 
                            Que se quis fazer calar nas
                                  conferências? Foi a crítica política?
                                  Para que se deixa então circular no
                                  País os livros de Proudhon, de
                                  Girardin, de Luís Blanc, de Vacherot?
                                  Foi a crítica religiosa? Para que se
                                  consente então que atravessem a
                                  fronteira ou a alfândega os livros de
                                  Renan, de Strauss, de Salvador, de
                                  Michelet? 
                            Sejamos lógicos; fechemos as
                                  conferências do Casino onde se ouvem
                                  doutrinas livres, mas expulsemos os
                                  livros onde se lêem doutrinas
                                  livres. Ouvir ou ler
                                  dá os mesmos resultados para a
                                  inteligência, para a memória, e para a
                                  ação: é a mesma entrada para a
                                  consciência por duas portas paralelas.
                                  Façamos calar o Sr.  Antero
                                    de Quental, mas proibamos na alfândega
                                  a entrada dos livros de Vítor Hugo,
                                  Proudhon, Langlois, Feuerbach, Quinet,
                                  Littré, toda a crítica francesa, todo
                                  o pensamento alemão, toda a ideia,
                                  toda a história. Dobremos a cabeça
                                  sobre a nossa ignorância e sobre a
                                  nossa inércia, e deixemo-nos
                                  apodrecer, mudos, vis, inertes, na
                                  torpeza moral e no tédio. 
                            Nós não queremos também que
                                  num país como este, ignorante,
                                  desorganizado, se lance através das
                                  ambições e das cóleras o grito de
                                  revolta! Queremos a revolução
                                  preparada na região das ideias e da
                                  ciência; espalhada pela influência
                                  pacífica de uma opinião esclarecida;
                                  realizada pelas concessões sucessivas
                                  dos poderes conservadores; - enfim uma
                                    revolução pelo Governo, tal como
                                  ela se faz lentamente e fecundamente
                                  na sociedade inglesa. É assim que
                                  queremos a revolução. Detestamos o
                                  facho tradicional, o sentimento rebate
                                  de sinos; e parece-nos que um tiro é
                                  um argumento que penetra o adversário
                                  - um tanto de mais! 
                            Seríamos pois nós os
                                  primeiros a pedir o encerramento das
                                  conferências do Casino, se a ciência
                                  dos conferentes se resumisse a dizer: 
                            - A barricada, meus senhores,
                                  é amanhã na Rua da Bitesga! Quanto ao
                                  petróleo, está lá em baixo no
                                  bilheteiro! 
                            Mas que se faça calar,
                                  pondo-lhe a mão na boca, a ciência, a
                                  crítica literária, a história, contra
                                  isso, do fundo deste livro, pequeno
                                  mas honrado, em nome do respeito que
                                  nós devemos a nós mesmos, e do exemplo
                                  que devemos a nossos filhos,
                                  protestamos e apelamos, não para a
                                  Europa, o que seria sofrivelmente
                                  inútil, mas para o próprio sr. marquês
                                  de Ávila, para uma coisa que ele deve
                                  ter debaixo da sua farda, uma coisa
                                  que não se cala, ainda quando em redor
                                  a intriga e o interesse fazem um ruído
                                  horrível - a consciência! 
                            Pois quê! Podem ler-se nas
                                  Bibliotecas e no Grémio, jornais
                                  republicanos, jornais da Comuna, toda
                                  a sorte de livros materialistas,
                                  racionalistas e socialistas - e não
                                  há-de ser permitido falar do que há de
                                  mais abstrato na política, de mais
                                  estranho e superior às agitações
                                  humanas e às violências partidárias, a
                                  História? 
                            Pois é permitido à Nação
                                  publicar, em prosa impressa e
                                  permanente, ataques rancorosos à
                                  liberdade constitucional e à realeza
                                  constitucional - e não pode ser
                                  permitido ao Sr.  Antero condenar as monarquias
                                  absolutas, e ao Sr. Soromenho condenar
                                  os romances eróticos? 
                            Pois o marquês de Pombal expulsa
                                  os jesuítas e a sua política, e não é
                                  permitido a um conferente do Casino
                                  fazer a crítica da política
                                  dos jesuítas? 
                            Argumentemos! Eu posso
                                  comprar um livro de Proudhon que
                                  combate o catolicismo, as monarquias,
                                  o capital: estou na legalidade. Posso
                                  lê-lo em voz alta aos meus amigos, ou
                                  aos meus criados: estou nos limites da
                                  Carta. Posso decorá-lo: haverá alguma
                                  lei que me proíba este exercício de
                                  memória? Posso recitá-lo. à luz do Sol
                                  ou à luz do gás, com gestos moderados
                                  ou com gestos descompostos: tudo isto
                                  é legal. Que eu trate no Casino de
                                  algum dos pontos de que se ocupa esse
                                  livro, proíbem-mo! Concordo em que mo
                                  proíbam, mas proíbam também aos
                                  livreiros a venda de Proudhon! 
                            Quando se proibiu em França
                                  que Renan falasse, obstou-se ao mesmo
                                  tempo que Renan fosse lido. 
                            Antes de haver conferências
                                  no Casino havia ali cançonetas.
                                  Mulheres decotadas até ao estômago,
                                  com os braços nus, a pantorrilla
                                  ao léu, a boca avinhada, cantavam,
                                  entre toda a sorte de gestos
                                  desbragados, um repertório de cantigas
                                  impuras, obscenas, imundas! Num verso
                                  bestial, a um compasso acanalhado,
                                  ridicularizava-se aí o pudor, a
                                  família, o trabalho, a virgindade, a
                                  dignidade, a honra, Deus! Eram também
                                  conferências. Eram as conferências do
                                  deboche. E havia muitos alunos! 
                            Pois isso que era a
                                  obscenidade, a infâmia, a crápula,
                                  parecia ao sr. marquês de Ávila
                                  compatível com a moral do Estado! 
                            As conferências, que eram o
                                  estudo, o pensamento, a crítica, a
                                  história, a literatura, essas
                                  pareceram ao sr. marquês incompatíveis
                                  com toda a moral! 
                            Homens refestelados, bebendo
                                  conhaque, gritando, apupando
                                  desgraçadas criaturas que se deslocam
                                  em trejeitos vis para fazer rir - isso
                                  é permitido por todas as leis! 
                            Homens que escutam gravemente
                                  uma voz que fala de justiça, de moral,
                                  de arte, de civilização - isso
                                  é proibido com tanta violência que se
                                  salta por cima da Carta para o
                                  proibir! a isso manda-se um
                                  polícia dar duas voltas à chave! Miserere!
                                    Miserere! 
                            Queiroz, Eça de, Uma
                                    Campanha Alegre (de «As
                                  Farpas»), volume I, Lello & Irmão
                                  - Editores, Porto, 1979 
                             
                           | 
                         
                        
                           
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                           | 
                          A 4ª
                                  Conferência do Casino | 
                         
                        
                           
                           | 
                           
                            «o Realismo como nova
                                  expressão da arte» 
                             
                                    
                            Numa
                                  conferência proferida no «Casino» [12
                                  de junho], disse Eça de Queirós a
                                  respeito do 
                                    Realismo (reconstituição de
                                  Antônio Salgado Júnior,
                                    História das Conferências do Casino,
                                  Lisboa, 1930J páginas 55-56): 
                                    
                            «É a
                                    negação da arte pela arte; é a
                                    proscrição do convencional, do
                                    enfático e do piegas. É a abolição
                                    da retórica considerada arte de
                                    promover a emoção, usando da
                                    inchação do período, da epilepsia da
                                    palavra, da congestão dos tropos. É
                                    a análise com o fito na verdade
                                    absoluta. Por outro lado, o realismo
                                    é uma reação contra o romantismo: o
                                    romantismo era a apoteose do
                                    sentimento; o realismo é a anatomia
                                    do caráter, é a crítica do homem. É
                                    a arte que nos pinta a nossos
                                    próprios olhos – para condenar o que
                                    houver de mau na nossa sociedade. 
                            E, sobre os
                                  preceitos a seguir na nova escola,
                                  acrescentou o mesmo romancista:  
                                 
                            «A norma
                                    agora são as narrativas a frio,
                                    deslizando como as imagens na
                                    superfície de um espelho, sem
                                    intromissão do narrador. O romance
                                    tem de nos transmitir a natureza em
                                    quadros exatíssimos, flagrantes,
                                    reais.» 
                            Estas frases
                                  do autor d'Os Maias
                                  são elucidativas. Aí se encontram as
                                  principais características do Realismo,
                                  que podemos resumir nas alíneas que
                                  seguem. 
                                
                                 
                            a)
                                    Conteúdo ideológico profundo.  
                            A carga
                                  ideológica transportada nas obras
                                  românticas não era grande, nem mesmo
                                  bem definida. A este vazio se quiseram
                                  opor, logo de início, os realistas. O
                                  problema aparece bem enunciado na «Questão
                                    Coimbrã» por Antero, que
                                  pergunta na carta Bom
                                    Senso e Bom Gosto : «Será
                                  possível viver sem ideias ? Esta é que
                                  é a grande questão». E tal problema
                                  foi trabalhado, ou pelo menos começou
                                  a sê-lo, nas «Conferências do Casino»,
                                  que, no entender dos seus promotores,
                                  deviam expor ao público português «as
                                  grandes questões contemporâneas,
                                  religiosas, literárias, políticas,
                                  sociais e científicas». Proibidas as
                                  «Conferências», o aprofundamento
                                  ideológico da obra de arte foi ainda a
                                  finalidade de muitos artigos d'As Farpas, da poesia de
                                  Antero, das
                                  obras de Oliveira Martins, etc. 
                            A literatura
                                  – era convencimento geral dos
                                  realistas – devia inspirar-se nas
                                  correntes filosóficas e sociológicas
                                  modernas (hegelianismo, positivismo,
                                  socialismo) para exprimir a real
                                  problemática do homem da época. Só a
                                  expressão dessa problemática lhe
                                  ofereceria conteúdo ideológico válido. 
                                      
                            b)
                                    Impassibilidade na análise do real. 
                            Reage a
                                  escola realista contra o idealismo e
                                  as atitudes emocionais enfáticas e
                                  hiperbólicas dos românticos e advoga a
                                  análise, síntese e exposição da
                                  realidade com verdade e com
                                  neutralidade do coração. O «eu»
                                  pensante ficará indiferente diante da
                                  Natureza, que deve ser recriada com
                                  exatidão, com pormenor, em retratos
                                  fidelíssimos. 
                            Perante o
                                  bem e o mal, o vício e a virtude, o
                                  belo e o feio, o coração do escritor
                                  realista não deixará transparecer
                                  quaisquer emoções. Também não dará
                                  nomes belos ao que é imoral e baixo,
                                  nem encobrirá as reais consequências
                                  do crime, por mais perfeita e
                                  apaixonante que tenha sido a sua
                                  execução. 
                             
                             
                            c) Crítica
                                    social e de costumes.   
                             Cedo
                                  se comprometeram 
                                  os realistas portugueses com a
                                  reforma da sociedade. O passado
                                  olhavam-no como estéril; o presente
                                  sem nada que se lhe aproveitasse. Daí
                                  os ataques que começaram a ser
                                  lançados d’As Farpas,
                                  das Odes Modernas de
                                  Antero, dos
                                  romances de Eça de Queirós, das obras
                                  e Oliveira Martins contra a alta e
                                  média burguesia e o clero, contra a
                                  política e a literatura do tempo,
                                  contra a educação e a economia, etc. 
                            Paralelamente,
                                  os realistas descobrem e atacam a
                                  imoralidade, os maus costumes.
                                  Analisam corajosamente os aspetos
                                  baixos da vida, sobretudo os vícios e
                                  as taras, não ocultando essas mazelas
                                  por mais asquerosas e degradantes que
                                  sejam. E, para que a obra literária se
                                  revista de cariz científico,
                                  esforçam-se por relacionar as causas
                                  (biológias e/ou sociais) do
                                  comportamento das personagens do
                                  romance com o tipo desse mesmo
                                  comportamento. 
                            Às vezes, os
                                  processos desta crítica moral acabam
                                  eles próprios paradoxalmente por
                                  fomentar também a imoralidade. Nem
                                  sempre são tão inofensivos e
                                  construtivos como pretendiam os seus
                                  autores. Mas o que desejavam com essa
                                  crítica era, sem dúvida, corrigir as
                                  pessoas que por ela se viam atingidas
                                  como se se olhassem num espelho. Não
                                  se lê em Stendhal que «o romance é um
                                  espelho que se passeia ao longo de uma
                                  estrada»? 
                             
                                    
                            d) Técnica
                                    narrativa e descritiva perfeita. 
                                      
                             Em
                                  oposição à retórica e ao 
                                    hiperbolismo dos românticos, os
                                  realistas procuram ver as coisas e os
                                  factos dentro dos seus limites
                                  naturais e depois recriá-los, narrando
                                  ou descrevendo, de maneira que a obra
                                  literária não seja mais que um puro
                                  reflexo da realidade. 
                            Por isso,
                                  usam os escritores a expressão
                                  simples, o tom desafetado. São então
                                  mestres no desenho, no colorido, na
                                  inserção oportuna e significativa do
                                  tempo da narração. Deste modo, os
                                  lugares, os acontecimentos, as ideias
                                  transparecem das suas criações
                                  literárias sem esforço, sem
                                  convencionalismos, com naturalidade.
                                  Simultaneamente cuidam com esmero o
                                  aspeto formal da escrita. 
                            Lembramos
                                  que o romance romântico é, por vezes,
                                  absolutamente verosímil e pode mesmo
                                  propugnar uma tese. Mas, na sua base,
                                  é todo fruto da imaginação e do
                                  sentimentalismo do autor, que, por
                                  isso, lança mão de lugares comuns
                                  arredados da objetividade: o quimérico
                                  e o prodigioso, o ideal e o
                                  sentimento, o monstro e o super-homem.
                                  Nisto se afasta do romance realista. 
                            Barreiros,
                                  António José, HISTÓRIA DA LITERATURA
                                  PORTUGUESA, vol. II, 13ª edição,
                                  Braga, Livraria Editora Pax, Lda, 1992 
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