FL Farol das Letras


| Início | Mapa do Sítio | Autor |

Antero de Quental


[Romagem ao espírito de Antero] * [Prefácio de Oliveira Martins aos Sonetos de Antero]

[Missão social e moral da poesia e da arte] * [Carta (biográfica) de Antero a Wilhem Stork]

[Sonetos]

Romagem ao Espírito de Antero

por

Manuel Maria

Artigo publicado no NOTÍCIAS DE GONDOMAR de 30 de outubro de 1999

 

No dia em que este número do Notícias de Gondomar chegar às mãos da maioria dos seus leitores, já teremos cumprido, uma vez mais, o ritual da romagem aos cemitérios em memória dos que nos são queridos. E, quer queiramos, quer não, esta data acaba sempre por ser, em maior ou menor grau, um motivo de profunda reflexão, a reflexão sobre o insondável mistério que é o absurdo da morte. Tal facto trouxe-me à memória um vulto enorme da Literatura Portuguesa, dos maiores entre os maiores, e um dos três mestres de Fernando Pessoa, para além de Alberto Caeiro, um dos seus heterónimos. «É mestre quem tem de ensinar...», diz Pessoa, e Antero de Quental «ensinou a pensar em ritmo; descobriu-nos a verdade de que ser imbecil não é indispensável a um poeta.»

Nascido a 18 de abril de 1842, em Ponta Delgada, nos Açores, Antero recebeu uma esmerada educação religiosa, ao ponto de ter planeado tornar-se sacerdote, o que, a verificar-se, não seria caso único na família. Diz-se, por exemplo, que, aos 12 anos já se extasiava com a poesia da Harpa do Crente, de Alexandre Herculano, uma poesia profundamente mística.

Aos 16 anos, porém, estava matriculado na Universidade de Coimbra, aonde chegavam as influências de vultos como Darwin, Proudhon, Marx, Michelet, Taine, Balzac, Flaubert, Zola, entre outros. Deste modo, não admira que, após a sua saída de S. Miguel, em carta autobiográfica, registe a seguinte confissão: «Varrida num instante toda a minha educação católica e tradicional, caí num estado de dúvida e incerteza, tanto mais pungente quanto, espírito naturalmente religioso, tinha nascido para crer placidamente e obedecer sem esforço a uma regra reconhecida.»

É, pois, este estado pungente de dúvida e de incerteza que irá determinar a sua poesia ao longo da sua vida, independentemente de alguns estudiosos, nomeadamente contemporâneos seus, como é o caso de Oliveira Martins, pretenderem definir diferentes períodos de produção literária.

Depois de ter afirmado, aquando da publicação das Odes Modernas, que «A Poesia moderna é a voz da Revolução», a sua obra poética ganha alcance em temas como a Justiça, a Fraternidade, o Amor, a Solidão, Deus, a Morte e o Nada, o que revela, à evidência, as suas verdadeiras preocupações.

A par dos que defendem a estratificação da sua obra de acordo com diferentes períodos da sua vida, há também quem afirme estarmos diante de um espírito em permanente convulsão, no qual já se sente fermentar a gestação duma heteronímia não declarada, que apenas viria a ganhar corpo, tal como a conhecemos, em Fernando Pessoa.

Não admira que o protagonista da célebre Questão Coimbrã, na generosidade da sua juventude e no espírito vanguardista das Odes Modernas, se dirigisse aos poetas do seu tempo, incitando-os ao combate em nome de valores como o Amor, a Fraternidade e a Justiça, que, no fundo, alimentavam o seu sonho de mudar o mundo: Tu que dormes, espírito sereno / [...] / [...] / Longe da luta e do fragor terreno, / / Acorda! É tempo! [...] / [...] / [...] / Um mundo novo espera só um aceno... / / Escuta! É a grande voz das multidões! / São teus irmãos, que se erguem! São canções... / Mas de guerra... e são vozes de rebate! / / Ergue-te, pois, soldado do Futuro, / E dos raios de luz do sonho puro, / Sonhador, faze espada de combate! [i]

Num outro soneto, depois de falar «Dum Deus que luta, poderoso e inculto» e que se manifesta nas florestas, na serra, no espaço constelado, no mar, estabelece o contraste com o que se verifica nas «negras cidades», naquilo que me parece ser clara alusão às consequências da Revolução Industrial: «Mas nas negras cidades, onde solta / Se ergue, de sangue mádida, a revolta, / Como incêndio que um vento bravo atiça, / /Há mais alta missão, mais alta glória: / O combater, à grande luz da história, / Os combates eternos da Justiça!» [ii]

Porém, a cruel realidade da vida desvanece tamanho altruísmo e o herói vacila, evidenciando um espírito cada vez menos sereno e comportando-se como barco à deriva em mar revolto e tempestuoso, em busca desesperada dum seguro porto de abrigo. Se, num soneto, por exemplo, faz a apologia da luz, num outro, embrulha-se na proteção da noite: «Amem a noite os magros crapulosos, / e os que sonham com virgens impossíveis, / E os que se inclinam, mudos e impassíveis, / À borda dos abismos silenciosos... / / [...] / / Eu amarei a santa madrugada, / E o meio-dia, em vida refervendo, / E a tarde rumorosa e repousada. / / Viva e trabalhe em plena luz: depois, / Seja-me dado ainda ver, morrendo, / O claro Sol, amigo dos heróis!» [iii]

«Noite, vão para ti meus pensamentos, / Quando olho e vejo, à luz cruel do dia, / Tanto estéril lutar, tanta agonia, / E inúteis tantos ásperos tormentos...» [iv]

É inegável que é já o reflexo do desalento que manifestará em muitos outros poemas, de que é exemplo paradigmático O Palácio da Ventura, um soneto em que podemos assistir a uma espécie de balanço introspetivo da sua vida: «Sonho que sou um cavaleiro andante / Por desertos, por sóis, por noite escura. / Paladino do amor, busco anelante / O palácio encantado da Ventura!»

Apesar das adversidades anunciadas, de forma eloquentemente metafórica, no segundo verso, este paladino do amor (universal), procura, ansiosamente, o palácio da Ventura, isto é, tudo o que possa simbolizar o seu sossego, a sua tranquilidade, no fundo, a felicidade a que todo o ser humano aspira por direito de nascença. Todavia, antevê-se já a frustração final deste cavaleiro. É que se trata de um cavaleiro que se não afirma como sendo, mas como sonhando que é, e, como se não bastasse, o quarto verso aponta para um objeto de busca que só ganha forma no mundo a que pertence, o mundo feérico e onírico, o mundo da fantasia.

«Mas já desmaio, exausto e vacilante, / Quebrada a espada já, rota a armadura... / E eis que súbito o avisto, fulgurante / Na sua pompa e aérea formosura!»

O desafio parece inumano, por isso não é de estranhar a tibieza manifestada nos dois primeiros versos desta segunda quadra. É apenas um momento mais de desalento, como tantos da sua vida. Entretanto, parece avistar, lá longe, o objeto da sua busca, uma espécie de luzinha no fundo do túnel, fazendo renascer a esperança. Mas, tal como acontece aos beduínos do deserto (elemento apontado já na primeira quadra), constata-se que tudo não vai passar duma mera miragem, fruto do seu ardente desejo, fruto duma ânsia desmedida: «Com grandes golpes bato à porta e brado: / Eu sou o Vagabundo, o Deserdado... / Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais! / / Abrem-se as portas d'ouro, com fragor...» E enquanto as portas se abrem, parecerá infindável esse momento de enorme expectativa: é fácil adivinhar a ansiedade do cavaleiro que quer ver banidos para sempre os seus desesperos, os seus sofrimentos, as suas angústias. «Mas dentro encontro só, cheio de dor, / Silêncio e escuridão - e nada mais!»

Não espanta, por isso, que um espírito, num estado de alma como este, procure, desesperadamente, a tranquilidade final e absoluta - absoluto que, no fundo, terá sido a grande causa de toda a sua angústia existencial: «E o homem porque vaga desolado / E em vão busca certeza que o conforte? / / Mas, na pompa de imenso funeral, / Muda, a noite, sinistra e triunfal, / Passa volvendo as horas vagarosas... / / É tudo, em torno de mim, dúvida e luto...» [v]

Daqui ao refúgio na morte é apenas o tempo de um ai: « - “Se esta espada que empunho é coruscante, / (Responde o negro cavaleiro andante) / É porque esta é a espada da Verdade. / / Firo mas salvo... Prostro e desbarato, / Mas consolo... Subverto, mas resgato... / E, sendo a Morte, sou a liberdade.”» [vi] A liberdade, sim, porque a morte liberta-o de todo o sofrimento: «Em mim, os Sofrimentos que não saram, / Paixão, Dúvida e Mal, se desvanecem. / As torrentes da Dor, que nunca param, / Como num mar em mim desaparecem. [vii] Não surpreende, pois, que o poeta se lhe entregue: «Dormirei no teu seio inalterável, / Na comunhão da paz universal, / Morte libertadora e inviolável! [viii]

No entanto, reminiscências da sua cultura judaico-cristã parecem trazer à superfície um certo complexo de culpa, que não de pecado: «Talvez seja pecado procurar-te, / Mas não sonhar contigo e adorar-te, / Não-ser, que és o Ser único absoluto.»

Esta é, talvez, a grande verdade a chegou o espírito compungido do poeta: a morte como único absoluto a que pode ascender a razão humana.

Num último golpe de desespero, lança-se nas mãos da sua derradeira e extrema aspiração, a de um Deus no qual gostaria de acreditar: «Na mão de Deus, na sua mão direita, / Descansou afinal meu coração. / [...] / Como criança, em lôbrega jornada, / Que a mãe leva no colo agasalhada / E atravessa, sorrindo vagamente, / / Selvas, mares, areias do deserto... / Dorme o teu sono, coração liberto, / Dorme na mão de Deus eternamente! [ix] Mas, ainda agora, o sono não é um sono profundo e tranquilo: [Deus] «Buscou quem o não quis; e a mim, que o chamo, / Há de fugir-me, como a ingrato filho? / Ó Deus, meu pai e abrigo! Espero!... eu creio! [x] Será que crê? Se tal fosse verdade, desaparecer-lhe-iam todas as dúvidas que lhe alimentam as angústias, desapareceriam os pesadelos de seu sono intranquilo: «Só uma vez ousei interrogá-lo: / - “Quem és (lhe perguntei com grande abalo), / Fantasma a quem odeio e a quem amo?” / / - “Teus irmãos (respondeu), os vãos humanos, / Chamam-me Deus, há mais de dez mil anos... / Mas eu por mim não sei como me chamo... [xi]

Por mais que apregoasse a conversão, creio que nunca a terá alcançado, para infelicidade sua: «Entre os filhos dum século maldito / Tomei também lugar na ímpia mesa, / [...] / Mas um dia abalou-se-me a firmeza, / Deu-me rebate o coração contrito! / / Erma, cheia de tédio e de quebranto, / Rompendo os diques ao represo pranto, / Virou-se para Deus minha alma triste! / / Amortalhei na Fé o pensamento, / E achei a paz na inércia e esquecimento... / Só me falta saber se Deus existe! [xii]

Como viver em paz um espírito assim?

Antero de Quental pôs termo à vida em 11 de Setembro de 1891.



[i] Antero de Quental, Sonetos, A Um Poeta, Círculo de Leitores;
[ii]
Idem, Justitia Mater;
[iii]
Idem, Mais Luz!;
[iv]
Idem, Nox;
[v]
Idem, Lacrimae Rerum (Lágrimas das Coisas);
[vi]
Idem, Mors Liberatrix (Morte Libertadora);
[vii]
Idem, O que diz a Morte;
[viii]
Idem, O Elogio da Morte, V;
[ix]
Idem, Na Mão de Deus;
[x]
Idem, Salmo;
[xi]
Idem, O Inconsciente;
[xii]
Idem, O Convertido.

topo


Prefácio de Oliveira Martins aos Sonetos de Antero

[...]

I

Eu não conheço fisionomia mais difícil de desenhar, porque nunca vi natureza mais complexamente bem dotada. Se fosse possível desdobrar um homem, como quem desdobra os fios de um cabo, Antero de Quental dava alma para uma família inteira. É sabidamente um poeta na mais elevada expressão da palavra; mas ao mesmo tempo é a inteligência mais crítica, o instinto mais prático, a sagacidade mais lúcida, que eu conheço. É um poeta que sente, mas é um raciocínio que pensa. Pensa o que sente; sente o que pensa.

Inventa e critica. Depois, por um movimento reflexo da inteligência, dá corpo ao que criticou, e raciocina o que imaginou. O seu temperamento apresenta um contraste correlativo: é meigo como uma criança, sensitivo como uma mulher nervosa, mas intermitentemente é duro e violento.

É fraco, portanto? Não. A vontade, em obediência à qual, e com esforço, se faz colérico, fá-lo também forte - dessa força persistente, raciocinada e na aparência plácida, como a superfície do mar em dias de bonança. O oceano, porém, é interiormente agitado pelo gulf stream quente e invisível: Também às vezes a placidez extrema da sua face encobre ondas de aflição que sobem até aos olhos e rebentam em lágrimas ardentes. Sabe chorar, como todo o homem digno da humanidade.

É destas crises que nasceram os seus versos, porque Antero de Quental não faz versos à maneira dos literatos: nascem-lhe, brotam-lhe da alma como soluços e agonias. Mas, apesar disso, é requintado e exigente como um artista: as suas lágrimas hão de ter o contorno de pérolas, os seus gemidos hão de ser musicais. As faculdades artísticas geradoras da estatuária e da sinfonia são as que vibram na sua alma estética. A noção das formas, das linhas e dos sons possui-a num grau eminente: não já assim a da cor nem da composição. Aos quadros chama painéis com desdém, e por isso mesmo tem horror à descrição e ao pitoresco. É artista, no que a arte contém de mais subjetivo. A sua poesia é escultural e hierática, e por isso fantástica. É exclusivamente psicológica e dantesca: não pode pintar, nem descrever: acha isso inferior e quase indigno.

Os seus versos são sentidos, são vividos como nenhuns; mas o sentir e o viver deste homem é de uma natureza especial que tem por fronteiras físicas as paredes do seu crânio, mas que não tem fronteiras no mundo real, porque a sua imaginação paira librada nas asas de uma razão especulativa para a qual não há limites.

O poeta é por isso um místico, e o crítico um filósofo. O misticismo e a metafísica, o sentimento e a razão, a sensibilidade e a vontade, o temperamento e a inteligência, combatem-se às vezes dilacerando-se. Eis aí a explicação desta poesia que é o retrato vivo do homem. O génio, esse quid divinatório, que não é honra para nenhuma criatura possuir, porque só nos dá merecimento aquilo que ganhámos à força de inteligência e de vontade; o génio, que é uma faculdade tão acidental como a cor dos cabelos, ou o desenho das feições; o génio, que pode andar ligado a uma inteligência medíocre, mas que o não anda no caso de Antero de Quental - é o predicado particular e a chave do enigma deste homem. O génio pressupõe a intuição de uma verdade visceral ou fundamental da natureza. Essa intuição, essa aspiração absorvente, é para o nosso poeta a síntese da verdade racional ou positiva e do sentimento místico: uma poesia que exprima o raciocínio, ou antes uma filosofia onde caibam todas as suas visões. O próprio do génio é querer realizar o irrealizável; é ser quimérico, no sentido crítico da palavra, quando por quimera entendemos uma verdade essencial que não pode todavia reduzir-se a fórmulas compreensíveis, ou uma coisa cuja realidade se sente, sem se poder ver.

Dos aspetos quase inesgotavelmente variáveis desta singular fisionomia de homem, desta mistura excecional de pensamentos e de temperamento num mesmo indivíduo, resulta porém um tipo de sinceridade e de retidão mais singular ainda, porque mais facilmente podia resultar dela um grande cínico. É sobretudo um estoico, sem deixar de ter bastante de cético; é um místico, mas com uma forte dose de ironia e humorismo; é um misantropo, quando não é o homem do trato mais afável, da convivência mais alegre; é um pessimista, que todavia acha em geral tudo ótimo. Intelectualmente é a fisionomia mais dúbia, complexa e contraditória por vezes; moralmente é o carácter mais inteiro e melhor que existe. A sua inteligência encontra-se permanentemente no estado de alguém que, querendo ir para um sítio, resiste por não querer ao mesmo tempo, sem todavia ter razões bastantes para querer nem também para não querer. O núcleo da sua personalidade, se a encararmos pelo lado praticamente humano, está na energia do seu querer moral, e não na lucidez do seu pensamento, embora tenha a pretensão de julgar que a sua vontade obedece sempre à sua razão. É verdade que dentro de si tem permanentemente um espelho facetado que representa e critica as modalidades do seu pensamento: mas, por isso mesmo, vê ou inventa faces de mais às coisas, e também por vezes o cristal embacia. O que nunca esmorece é a bondade luminosa da sua alma. É um homem fundamentalmente bom.

A complexidade do seu espírito dá-lhe uma verdade de aptidões, singular.

[...]

A sua força é a prodigalidade com que a natureza dotou o seu espírito; mas essa força é uma fraqueza. Tem demasiada imaginação para ver bem, e por outro lado o raciocínio crítico peia-lhe os voos luminosos da fantasia. Vê de mais para poder ser ativo, ou não tem a energia correspondente à sua visão. Se a tivesse, seria verdadeiramente um assombro. A imaginação e a razão, irredutíveis nos cérebros humanos com as circunvoluções limitadas que contêm, são igualmente poderosas no seu cérebro para que qualquer delas domine. Lutam em permanência, procurando entender-se, combinar-se, penetrar-se, e, no desejo quimérico da síntese, desequilibram o homem, atrofiando-lhe a energia ativa. Ainda assim, felizes daqueles cuja inércia desse um livro comparável a este!

Mas é que as suas páginas foram escritas com sangue e lágrimas! E dói ver a vida do mais belo espírito consumir-se em agonias de uma alma em luta consigo mesmo! O comum da gente, ao ler as páginas deste volume, dirá então: Quantas catástrofes, que desgraças, este homem sofreu! Que singular hostilidade do Mundo para uma criatura humana! - E todavia o Mundo nunca lhe foi propriamente hostil, nenhuma desgraça o acabrunhou; a sua vida tem corrido serena, plácida, e até, para o geral da gente, em condições de felicidade.

É que o geral da gente não sabe que as tempestades da imaginação são as mais duras de passar! Não há dores tão agudas como as dores imaginárias. Não há problemas mais difíceis do que os problemas do pensamento, nem crises mais dolorosas do que as crises do sentimento. As agonias dilacerantes da morte com as ânsias do estertor, os horrores mais inverosímeis dos crimes monstruosos, as aflições mais pungentes da saudade, as tristezas mais dolorosas da solidão, as lutas do dever com a paixão, os gritos do homem arruinado, os ais da orfandade faminta... tudo, tudo quanto no Mundo pode haver de doloroso, desde a miséria até à prostituição, desde o andrajo até ao veludo arrastado pela imundície, desde o cardo que dilacera os pés até ao punhal que rasga o coração: tudo isto é menos do que a agonia de um poeta vendo passar diante de si, em turbilhão medonho, as lúgubres misérias do Mundo. Todas as aflições têm o seu quê de imaginativas, e por isso há apenas uma espécie de homens que não sentem: são os cínicos, esses que perderam os nervos da moralidade, anestesiados do sentimento.

Quando se é poeta como Antero de Quental, a imaginação exarcebada vibra como as harpas que os gregos expunham às virações da brisa nos ramos das árvores. Nenhum dedo dedo lhes feria as cordas, e todavia tocavam! Nenhuma dessas desgraças do Mundo feriu a harpa da vida do poeta; e todavia essa harpa geme e chora; soluça e grita, porque pelas suas cordas passa o vento agreste das ideias, passa o eco ululante do egoísmo dos homens, aflitivo como os uivos de uma alcateia de lobos famintos.

II

Esta coleção de Sonetos é, portanto, ao mesmo tempo biográfica e cíclica. Conta-nos as tempestades de um espírito; mas essas tempestades não são os quaisquer episódios particulares de uma vida de homem: são a refração das agonias morais do nosso tempo, vividas, porém, na imaginação de um poeta.

O primeiro período, de 1860-62, contém em embrião todos os sucessivos, da mesma forma que as flores incluem em si a substância dos frutos. Denuncia uma alma sensível, mas patenteia já a preocupação metafísica na sua fase rudimentar de dúvida teológica, e apresenta uns assomos de tristeza que são como os farrapos de nuvens quando velam intermitentemente o Sol, deixando antever a tempestade para o dia seguinte. Estes primeiros sonetos são o balbuciar de uma criança. Romântica? De modo nenhum. Este poeta não se filia em escolas, não obedece a correntes literárias: a sua poesia é exclusivamente pessoal. Sucedia, porém, que nesse tempo já os nossos bardos classicamente românticos tinham passado de moda; e a Coimbra chegavam, por via de Paris, os ecos do espírito novo, expresso nas obras de Michelet, de Quinet, de Vera-Hegel, etc.

Tudo isso fermentava no cérebro de Antero de Quental, mas a sua personalidade não se deixava absorver pelo otimismo que, depois dos românticos, se espalhou na Europa, liricamente ingénuo no Ocidente afrancesado, sistematicamente filosófico na Alemanha hegeliana. Schopenhauer, ninguém o lia. Não era moda. Pois foi essa corrente, dominante hoje, aquela em que o nosso poeta, espontaneamente, por um movimento do seu temperamento se achou levado. Aos dezoito ou vinte anos, ignorante ainda, mas inquieto e perscrutador, o poeta, que desdenha sinceramente da fama e da glória, vê no eterno feminino de que nos fala Goethe a síntese da existência. Os seus amores já são fantásticos: só têm realidade no Céu.

Ali, ó lírio dos celestes vales,

Tendo seu fim, terão o seu começo,

Para não mais findar, nossos amores.

E se ainda o dia, a luz, o Sol, esposo amado, têm o condão de o encher de entusiasmo, é mister desconfiar de um homem mais caprichoso do que todas as mulheres, porque

Pedindo à forma, em vão, a ideia pura.

Tropeço, em sombras, na matéria dura

E encontro a imperfeição de quanto existe

Esta nota é mais constitucionalmente verdadeira. «Seja a Terra degredo, o Céu destino», diz num ponto; e noutro:

Minha alma, ó Deus, a outros céus aspira:

Se um momento a prendeu mortal beleza

É pela eterna pátria que suspira...

Não acreditemos também demasiadamente nisto, porque Deus não passa ainda de uma interrogação:

Pura essência das lágrimas que choro

E sonho dos meus sonhos! Se és verdade,

Descobre-te, visão, no Céu ao menos!

As lutas infantis deste primeiro período para saber se Deus é ou não é verdade bastam, em si mesmo e no próprio modo por que estão expressas, para nos mostrar que o poeta não saiu ainda das esferas de representação elementar dos seres para a esfera compreensiva das abstrações racionais. Os sonetos desta primeira série desenrolam-se no terreno da fantasmagoria transcendente. O traço mais seguro de todos e o mais significativo está neste verso:

Que sempre o mal pior é ter nascido.

A segunda série tem a data de 1862-66. Psicologicamente é a menos original, artisticamente é a mais brilhante. O Sonho Oriental, o Idílio, o Palácio da Ventura, são obras-primas, até de colorido. Talvez por isso mesmo que o estado de espírito do poeta o não obrigava a tirar tanto de si, e porque nesta época viveu mais à lei da natureza; talvez por isso mesmo a sentiu e pintou melhor nas suas cores, nas suas imagens.

A nebulose do primeiro período começava a resolver-se numa tragédia mental, que umas vezes tem os sonhos dos que mastigam haxixe, outras vezes fúrias de desespero, ironias como punhais e gritos lancinantes:

Se nada há que me aqueça esta frieza,

Se estou cheio de fel e de tristeza,

É de crer que só eu seja o culpado.

Meu pobre amigo, como foi amarga esta época! Outros sofreram também, outros penaram iguais dores, sem conseguirem porém estrangular os monstros que defendem os áditos do templo da Sabedoria. Heine e Espronceda, Nerval e Baudelaire viveram vidas inteiras nesse estado de ironia e de sarcasmo, de desespero e de raiva, de orgia e de abatimento, de fúria e de atonia, que para ti representam quatro anos apenas!

Mas é que não havia em nenhum desses homens a semente de abstração que se descobre no Palácio da Ventura:

Abrem-se as portas de ouro, com fragor...

Mas dentro encontro só, cheio de dor,

Silêncio e escuridão - e nada mais!

Os românticos, mais ou menos satanistas ou satanizados, ficavam-se por aqui. Achando apenas silêncio e escuridão onde tinham sonhado venturas, ou davam em bêbedos, como Espronceda, ou suicidavam-se, como Nerval, ou faziam-se cínicos. à maneira de Baudelaire, cultivando com amor as Flores do Mal.

De 1864 a 74, nesses dez anos em que a tempestade caminha, vê-se o «silêncio e a escuridão», que antes surgiam como surpresas medonhas, ganharem um lugar apropriado, embora eminente, no regime das coisas; vê-se o espírito do filósofo reagir sobre o temperamento do poeta, e tornar-se sistema o que até aí era fúria. Bom prenúncio.

Nesta época Antero de Quental é niilista como filósofo, anarquista como político; é tudo o que for negativo, é tudo o que for excessivo; e é-o de um modo tão determinante, tão dogmático e tão afirmativo, que por isso mesmo hesitamos em crer na consciência com que o é. Da sinceridade não é lícito duvidar, mas contra a segurança depõe a própria violência. A nevrose contemporânea, que produzira nele a terceira época, dá de si ainda a quarta; mas se pôde galgar a saltos por entre a floresta incendiada que devorou e consumiu os satânicos, não poderá também sair da estepe lúgubre onde apodrecem os pessimistas, embriagados na negação universal, sem se lembrarem de que são contraditórios no próprio facto de pregarem o que quer que seja?

Ora a isto responde esta própria série, porque, ao lado dos sonetos crepuscularmente desolados, levantam-se como auroras os sonetos estoicos. Para curar o poeta da vertigem satânica serviu-lhe a metafísica pessimista; para o curar mais tarde dessa metafísica, servir-lhe-á a reação do sentimento moral sobre a razão especulativa. Quando pede Mais Luz, quando chama ao Sol «o claro sol amigo dos heróis», quando define a Ideia acabando por estes versos diamantinos:

A Ideia, o Sumo bem, o Verbo, a Essência,

só se revela aos homens e às nações

No céu incorruptível da Consciência!

sentimo-nos bem distantes das fantasmagorias do princípio e das loucuras da viagem, que todavia o poeta não terminou ainda.

Lutando furioso contra a desilusão, caindo esmagado pelo aniquilamento, Antero de Quental ensimismou-se (para usar de uma feliz expressão espanhola), meteu-se dentro de si, a sós consigo, apelou para as energias do seu instinto de homem, e foi isso que lhe inspirou o belo Hino à Razão.

Porém, na luta entre o temperamento de estoico e a imaginação metafísica, o seu espírito atribulado não conseguiu manter o equilíbrio, porque as suas exigências de crítico e filósofo (alimentadas agora por leituras variadíssimas e profundas) contrariavam ou contradiziam as suas visões de poeta. À maneira que a inteligência se lhe cultivava, que o saber lhe crescia, que a experiência o educava com mais de um caso doloroso ou apenas triste - apurava-se-lhe a imaginação até ao ponto de ver claramente o que para o comum dos espíritos são apenas conceções do entendimento abstrato. A sua poesia despe-se então de acessórios: não há quase uma imagem; há apenas linhas, mas essas linhas de estátuas incorpóreas têm uma nitidez dantesca.

O seu pessimismo torna-se sistemático: é uma filosofia inteira, a que corresponde, como expressão sentimental, a ironia transcendente. Na Disputa em Família, Deus responde aos ateus:

Muito antes de nascerem vossos pais

Dum barro vil, ridículas crianças,

Sabia eu tudo isso... e muito mais!

No Inconsciente, este herói metafísico diz assim:

Chamam-me Deus há mais de dez mil anos...

Mas eu por mim não sei como me chamo.

N' A Divina Comédia, os homens queixam-se aos deuses do que sofrem, invetivando-os por os terem criado:

Mas os deuses, com voz ainda mais triste,

Dizem: - Homens! porque é que nos criastes?

Como se vê, houve um progresso. No período anterior a negação era violenta e terminante; agora tem como expressão a ironia, que é uma das formas conhecidas do saber e uma das linguagens da verdade. Eis aí o que a reação moral conseguiu, acompanhada pelo esclarecimento da razão, da inteligência e do conhecimento. O antigo poeta satânico, transformado em niilista, vemo-lo agora na pele de um pessimista sistemático, sorrindo já bondosamente, com a ironia nesses próprios lábios, que, primeiro cobertos de espuma, depois nos apareciam brancos de agonias.

Não tinha eu razão para chamar cíclica a esta coleção de sonetos? Não tem sido este o movimento das ideias, a evolução do pensamento criador na segunda metade do nosso século?

Quando escreveu o primeiro soneto da quarta série (1880-84)

Já sossega, depois de tanta luta,

Já me descansa em paz o coração...

Antero de Quental resolveu destruir todas as suas poesias lúgubres. Sentia remorsos por alguma vez ter estado numa disposição de ânimo que agora considerava com horror. Entendia que esses versos tétricos não podiam consolar ninguém e fariam mal a muita gente. Destruiu-os, pois, com aquela violência própria de um carácter intermitentemente meigo e frenético como o de uma mulher. Desse naufrágio, onde se perderam verdadeiras obras primas, salvei eu as poesias que vão no fim deste ensaio; e salvei-as porque as possuía entre os originais remetidos em cartas, e mais de uma vez como texto de notícias do estado do seu espírito, ou cartas rimadas.

Que espécie de paz era porém essa em que o seu coração descansava? Era o Nirvana:

E quando o pensamento, assim absorto,

Emerge a custo desse mundo morto

E torna a olhar coisas naturais,

À bela luz da vida, ampla, infinita,

Só vê com tédio em tudo que quanto fita

A ilusão e o vazio universais.

O Nirvana é o céu do budismo, a religião mais filosófica e menos fantasmagórica inventada pelos homens. É por este motivo que o budismo atrai hoje em dia todos os espíritos a um tempo racionalistas e místicos, desta época em tudo semelhante à alexandrina, menos no volume do saber positivo, que já se não compadece com muitas das teorias sobre que os neoplatónicos especulavam. A teoria da Substância levou-os a eles a uma conceção do Ser que produziu o mito do Verbo cristão, encarnado popularmente em Jesus Cristo. Ora hoje tudo isso vale apenas como documento histórico, e, por paradoxal que isso pareça, o Não-Ser é, segundo a metafísica contemporânea, a essência de tudo o que existe. O Absoluto é o Nada. O Universo, a realidade inteira, são modalidades, aspetos fugitivos, que só se tornam verdades racionais quando nos aparecem despidas de todos os acidentes. E como é pelos acidentes apenas que nós, distinguindo-as, as conhecemos, a realidade verdadeiramente e em si é nada.

Religiosamente, Nada é igual a Nirvana; e o budismo é a única religião que atingiu esta conclusão sumária do pensamento científico moderno. O Nirvana é esse estado em que os seres, despindo-se de todas as suas modalidades e acidentes, de todas as condições de realidade, condições que os limitam distinguindo-os entre si, adquirem a não-realidade (o não contingente) e com ela a existência absoluta e a absoluta liberdade. Essa liberdade é o tipo e a essência da vida espiritual; e o Nirvana, puro  Não-Ser para a inteligência, é, para o sentimento moral, o símbolo e o veículo de toda a perfeição e virtude: radicalmente negativo na esfera da razão, é, na esfera do sentimento absolutamente afirmativo. O pessimismo torna-se desta forma um otimismo gigantesco; toda a inércia é condenada, e o sistema das coisas, agitando-se, movendo-se na direção do aniquilamento final, move-se e agita-se no sentido de uma liberdade evolutivamente progressiva, até atingir a plenitude. O Universo é uma grande vida que tem, no termo, o termo de todas as vidas - a morte, idealizada agora e tornada luminosa e apetecível por essa idealização.

Leiam-se os dois sonetos Redenção, talvez os mais belos de todo o livro, e compreender-se-á melhor o que fica dito. Leia-se o Elogio da Morte,

Dormirei no teu seio inalterável,

Na comunhão da paz universal,

Morte libertadora e inviolável!

e ver-se-á quanto estamos longe do desespero trágico de outros anos. A tempestade acalmou,

Na esfera do invisível, do intangível,

Sobre desertos, vácuo, soledade,

Voa e paira o espírito impassível,

presidindo à evolução dos seres (v. o soneto Evolução), desde a rocha até ao homem, evolução que seria absolutamente inexpressiva se não tivesse um destino, um fim, um ideal. A teoria do progresso indefinido é, com efeito, racionalmente absurda. Esse destino, para os neobudistas, é o Nada transcendente; esse ideal é a Liberdade. A existência está, pois, consagrada racionalmente: falta consagrá-la sentimentalmente. Falta ainda ao sistema medianeiro: é o Amor.

Porém o coração, feito valente

Na escola da tortura repetida,

E no uso do penar tornado crente,

Respondeu: Desta altura vejo o Amor!

Viver não foi em vão, se é isto a vida,

Nem foi demais o desengano e a dor.

O Universo está pois construído e santificado na mente do poeta e na razão do filósofo. Dir-se-á portanto que a quimera, de que a princípio falámos, ficou desvendada, o problema resolvido, conciliada a visão com a razão, e que nos não resta mais do que fazermo-nos todos budistas? Suprema ilusão! Creia-o embora o poeta; eu, como crítico, observando que o pensamento humano, desde que existe e trabalha, progride sempre, com efeito, mas progride em três estradas paralelas que, por serem paralelas, nunca podem encontrar-se, atrevo-me a afirmar a irredutibilidade do misticismo, racional ou imaginativamente concebido, e do naturalismo, ponderada ou orgiacamente realizado. Atrevo-ma a dizer que estes dois feitios ou temperamentos são constitucionais do espírito humano, e que da coexistência necessária deles resulta um terceiro - o cético, o crítico, o que provém da comparação de ambos, e por isso não tem cor, nem é afirmativo; [...]

«Um helenismo coroado por um budismo», eis a fórmula com que mais de uma vez Antero de Quental me tem exprimido o seu pensamento - a sua quimera! Quimera, digo, porque a coroa não nos pode assentar na cabeça, sob pena de a crivar de espinhos e de a deixar escorrendo sangue. Fundar o princípio da ação na inércia sistemática, a realidade no Não-Ser, a vida no aniquilamento, só é praticamente aceitável para o comum dos homens quando acreditem na metempsicose, dogma tão infantilmente mítico do budismo como, v. g., o inferno do cristianismo. Ao cristianismo, porém, tirando-se-lhe tudo quanto a imaginação semita deu para a sua formação, fica ainda o helenismo, isto é, um idealismo mais ou menos panteísta e uma teoria moral - coisas que eu não afirmo que resistam a uma análise rigorosamente lógica, por isso mesmo que todo o nosso conhecimento racional das coisas assenta apenas sobre axiomas do senso comum - ao passo que, em se tirando a metempsicose ao budismo, o budismo reduz-se a uma névoa de abstrações.

Pobre humanidade, se se visse condenada à coroação budista! Nós, europeus, incapazes de nos sujeitarmos ao regime de contemplação inerte, sofreríamos as agonias, experimentaríamos as aflições do poeta, que, tendo no peito um coração ativo, tem na cabeça uma imaginação mística, e, para obedecer ao pensamento, tortura o coração, sem poder também esmagá-lo sob o manto da inteligência.

Deste cruel estado vêm os documentos que atestam a transformação sofrida pela ironia dos períodos anteriores. Que nome se há de dar ao sentimento que inspira os sonetos À Virgem Santíssima e o Na Mão de Deus, que fecha o volume? Eu, por mim, chamarei humorismo transcendente a essa liga íntima da piedade  e da ironia, e declaro que nunca vi coisa parecida em verso. [...]

Ó visão, visão triste e piedosa!

Fita-me assim calada, assim chorosa,

E deixa-me sonhar a vida inteira!

A visão é a Virgem Santíssima, e a poesia é tão sincera, tão verdadeira, tão cheia de piedade e unção, que eu sei de mais de um livro de rezas onde andam cópias escritas.

Dorme o teu sono, coração liberto,

Dorme na mão de Deus eternamente!

Um monge cristão escreveria isto. E Antero de Quental nem é cristão, nem crê em Deus, nem na Virgem, segundo o sentido ordinário da palavra crer.

Blasfemar era bom noutros tempos; para a ironia também a idade passou; finalmente para o exercício literário nunca se inclinou a pena que o poeta molhou sempre no seu sangue. Como explicar, pois, o fenómeno?

Por acaso subiu já o leitor ao cume de um monte suficientemente alto para que toda a paisagem lhe aparecesse à vista, fundida ao ponto de não distinguir uma árvore de um casal, nem um rio de um vale sem curso de água? Pois sucede assim nas campinas da história do pensamento humano, quando as olhamos das cumeadas luminosas da crítica. Veem-se as coisas na sua essência, não importam os acidentes. O fetiche que o selvagem adora, a imagem perante a qual se prostra o comum dos crentes, o arquiteto universal dos pensadores livres, e finalmente esse quid inominado a que a filosofia moderna chamou Inconsciente - tudo isso é igualmente Deus: somente é Deus percebido pela inteligência vulgar, Deus percebido pelo saber incipiente, e Deus finalmente incompreendido, mas sentido, pela sabedoria. E todas essas modalidades de uma mesma impressão, recebida e representada de forma diversa, consoante a natureza e o estado de educação dos homens, são igualmente verdadeiras, igualmente santas e igualmente humorísticas, para aquele que tem coração para sentir as coisas por dentro e olhos para as ver de fora - objetivamente, como os alemães dizem, e nós diremos criticamente.

Eis aí a suprema liberdade do espírito, o Nirvana apenas intelectual, a que eu prefiro chamar impassibilidade subjetiva: um estado que permite compreender todas as coisas, analisando-as e classificando-as, sem todavia nos transmitir essa espécie de frialdade de coração, própria dos naturalistas quando estudam uma rocha, uma planta ou um animal. O filósofo, impassível ao analisar e classificar os fenómenos do espírito humano, há de misturar ao sorriso que provocam todas as vaidades e ilusões o amor que merecem todos os sentimentos ingénuos e fundamentalmente bons; há de aliar à compreensão da nulidade extrínseca das coisas a compreensão da sua excelência intrínseca; exigindo que o homem seja ativo, porque a atividade é boa por ser indispensável à saúde do espírito, embora os objetos da atividade sejam as mais das vezes írritos e nulos, quando considerados em si próprios e isoladamente.

E eis aí as razões por que não sou budista... nem Antero de Quental o é, embora julgue sê-lo. A evolução dolorosa que terminou com o seu último soneto, esta longa e tempestuosa viagem através do mar tenebroso da fantasia metafísica, parece ter concluído. A idade, talvez, acima de tudo, trouxe ao espírito do poeta uma paz iluminada de bondade e sabedoria: e como a sua alma é sã e a sua inteligência firme e sempre ativa, é mais que provável que o declinar da vida de Antero de Quental enriqueça o pecúlio, por sinal bem pobre, da filosofia portuguesa com algum trabalho tão digno de se conservar na memória dos tempos como estes Sonetos, que são as amargas flores de uma mocidade. Esse trabalho, porém, não será um catecismo budista, não pode ser nenhuma revelação milagrosa do verdadeiro sistema, porque a sabedoria nos diz que toda a pretensão da Verdade é ilusória, pois sendo nós, a nossa inteligência, os nossos pensamentos, simples e fugitivas contingências, é loucura pensar que jamais possamos definir o Absoluto. Cada qual sente-o a seu modo, segundo o seu temperamento; e sábio é aquele que se limita a registar as relações das coisas.

III

Quem diante destes versos não sentir elevar-se-lhe o espírito, como numa oração, àquela espécie de Deus que é compatível com o seu temperamento ou com o estado de educação do seu pensamento, é porque tem dentro do peito, no lugar do coração, um seixo polido e frio. Quem, no meio do lidar da vida, roçando os braços pelas arestas cortantes que a eriçam de ângulos, pousar o olhar da alma sobre um destes sonetos e não sentir o que os sequiosos sentem ao encontrarem um arroio de água límpida, é porque tem a alma feita apenas de egoísmo. Quem, emergindo dos montões de papelada que as imprensas vomitam diariamente, deitar os olhos sobre estas páginas e não sentir o deslumbramento que os diamantes produzem, é porque a sua vista se embaciou com o exame dos livros grosseiros em todo o sentido, e a sua língua perdeu o hábito de falar português. Um dos nossos queridos amigos, um dos que conhecem de perto Antero de Quental - e somente o conhece quem com ele viveu largo tempo na intimidade -, interroga-me geralmente deste modo: «E santo Antero, como vai?»

Di-lo com a convicção quente dos artistas, mas eu, que o não sou, tenho a pôr embargos, porque a santidade não é planta adequada ao clima do nosso tempo. Exige uma porção de sentimento ingénuo que já não há nos ares que respiramos.

A vida contemplativa, porém, a vida asceta inclusivamente: essa virtude austera para consigo, tolerante para com tudo e para com todos; esse observar constante de si próprio e o dispensar de um sorriso sempre bom, embora indiferente com frequência, aos que alguma vez o rodeiam; a caridade, o amor, a abnegação, as tentações, as crises, as lágrimas, as aflições, as dúvidas cruciantes e as dores angustiosas: tudo o que, reunido, forma uma mística - tudo isso mora na alma deste poeta arrebatada pela visão inextinguível do Bem.

Só no meu coração, que sondo e meço,

Não sei que voz, que eu mesmo desconheço,

Em segredo protesta e afirma o Bem.

E para nada faltar a este místico, anacronicamente perdido no meio do burburinho de um século ativo até à demência, tem também uma fé ardente - uma fé budista. Somente o seu Deus, Deus sem vontade, sem inteligência e sem consciência, é para nós outros, a quem são vedados os mistérios da metafísica budista, igual a coisa nenhuma.

Este homem, fundamentalmente bom, se tivesse vivido no século VI ou no século XIII, seria um dos companheiros de S. Bento ou de S. Francisco de Assis. No século XIX é um excêntrico, mas desse feitio de excentricidade que é indispensável, porque a todos os tempos foram indispensáveis os hereges, a que hoje se chama dissidentes.

Oliveira Martins, in A GERAÇÃO DE 70, Antero de Quental, Sonetos, Círculo de Leitores, 1987 

topo


Missão Social e Moral da Poesia e da Arte

A primeira edição das Odes Modernas, 1865, traz uma nota final Sobre a Missão Revolucionária da Poesia [recolhida em Prosas, I, pp. 306-315]. Logo no primeiro parágrafo, a poesia é caracterizada como sendo «a confissão sincera do pensamento mais íntimo de uma idade», donde se infere que «a poesia moderna é a voz da Revolução - porque revolução é o nome que o sacerdote da história, o tempo, deixou cair sobre a fronte fatídica do nosso século». Esta conceção está de acordo com uma série de folhas volantes que desde 1862 imprimia para distribuição no Teatro Académico, em saraus dominados pela intenção de homenagem a Itália de Garibaldi, como mostra António Salgado Júnior num muito seguro prefácio para Raios de Extinta Luz. (1) Segundo essa Nota, já muito tocada por Proudhon, que doravante será sempre o maior «mestre» reconhecido de Antero, é a própria burguesia que, meio século após o seu triunfo, se esfacela e, involuntariamente, prepara a transformação iminente. «Não há já mão que a possa salvar. O seu nome é contradição. Contradição de desejos e condições. Contradição de palavras e obras.» É certo que a Revolução social ainda poderia aos portugueses parecer muito distante, por viverem ainda «fora da história e do progresso». Mas nem por isso deixaria de lhes chegar «essa onda misteriosa», preparada pelos «apóstolos de um Evangelho tão grande que pode conter no seu seio todos quantos têm [...] pregado ao norte e ao sul, os Cristos de todas as raças e de todas as cores. [...] Reconstrução do mundo humano sobre as bases eternas da Justiça, da Razão e da Verdade, com exclusão dos Reis e de Governos tirânicos, de Deus e Religiões inúteis e ilusórias - é este o mais alto desejo, a aspiração mais santa desta sociedade tumultuosa. [...] Esta voz, se é a mais alta, deve ser também a mais poética. A poesia que quiser corresponder ao sentir mais fundo do seu tempo, hoje, tem forçosamente de ser uma poesia revolucionária. Que importa que a palavra não pareça poética às vestais literárias do culto da arte pela arte? (2)
É ainda no estilo tribunício deste posfácio que, quatro meses mais tarde (ou seja, em novembro de 1865), se dirige num folheto de carta aberta a António Feliciano de Castilho que deu o nome à mais intensa polémica literária portuguesa: Bom Senso e Bom Gosto. (3) Bastara uma alusão desdenhosa de Castilho aos poemas recém-publicados de Teófilo Braga e Antero (4) para que este reagisse como se tivesse perigado a sua «liberdade absoluta», a sua independência de «homem sem pretensões literárias». Deixando de lado o muito que tal folheto tem de puramente oratório e agressivo, registemos apenas que «a imensa missão do escritor» é aí concebida como «um sacerdócio, um ofício público e religioso»; que, nos seus termos, a primeira «condição da grandeza, da beleza, da bondade, não é o talento, nem a ciência, nem a experiência: é a elevação moral [...] a dignidade do pensamento e do carácter». Castilho é visado como «mero adorador da palavra», desprezador da «ideia que custa muito e nada luz», como simples imitador e efeitador de «ninharias luzidias». Ora a época era de «transformação dolorosa. (...) Refundem-se as crenças antigas. Geram-se com esforço novas ideias. Desmoronam-se velhas religiões. [...] Há toda uma humanidade em dissolução, de que é preciso extrair uma humanidade viva, sã, crente e formosa. [...] Todavia quem pensa e sabe hoje na Europa não é Portugal, não é Lisboa [...] é Paris, é Londres, é Berlim». O foliculário menciona então os seus mestres e novas disciplinas, «a filosofia alemã, a crítica francesa [da religião], o positivismo, o naturalismo, a [filosofia da] história e a metafísica», cifrando tudo isto numa palavra-chave que Castilho ridicularizara: o Ideal.

Logo no mês seguinte (dezembro de 1865) Antero volta à estacada com um novo folheto, A Dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais, que em apêndice faz uma crítica, quase toda ela justa e ponderada, à obra literária de Castilho, então patriarca abonador de diversos epígonos do primeiro Romantismo português. A sua nota mais insistente é a da responsabilidade dos escritores e dos artistas, «que fazem a corrupção e a grandeza das épocas», a sua responsabilidade perante a Nação. «Mas a nação, a nação verdadeira, não sois vós, senhores do funcionalismo, parasitas ociosos, improdutivos. A nação portuguesa são três milhões de homens que trabalham, suam, produzem, ativos e honrados» e que apenas conhecem o Governo para o maldizer, e nem sequer sabem os nomes dos pretensos «grandes homens [...] a três léguas das vossas academias e das vossas redações».

Antero não mais deixará de conceber-se investido de uma grande responsabilidade como escritor, mesmo quando substitui o Ideal revolucionário por um «novo misticismo». Pois com efeito a sua conceção histórica da poesia e da arte oscilará entre dois extremos. Em 1865, como vimos, pensa que a poesia revolucionária, voz mais íntima do seu tempo, seria também «a mais alta» e por isso «a mais poética». Num prefácio do mesmo ano, vê-a mesmo como «a ciência do Ideal». (5) E num artigo pouco mais ou menos do mesmo período considera a arte como eterna, síntese imperecível da Ciência e da Religião, ambas perecíveis, como Espírito em que se fundem e culminam a Alma e a Natureza. (6) Sem embargo disso, e por influência indireta da dialética racionalista de Hegel, da conceção genética do espírito humano vinda de G. Vico através do seu tradutor e admirador Michelet, e ainda de outros ideólogos então muito influentes, como P.-C. E. Pelletan (Profession de foi du XIX siècle, 1852), já em 1866 Antero se mostra convicto de que a música (Antero preferiu sempre as artes rítmicas às artes plásticas) desaparecerá um dia com a racionalização da vida social, pois ela seria expressão de um conflito tipicamente moderno: «Este contraste inaudito de esperança sem termo e profunda melancolia, este paradoxo do maior desejo e a maior desgraça, unidos num mesmo sentimento e dentro do coração, é isto que faz a alta originalidade do espírito dos últimos três séculos, o fundo mesmo da alma moderna.» (7) E ainda em 1881 abraça a ideia de Vico segundo a qual a poesia, contemporânea da «produção das línguas e dos mitos», reduzir-se-á, graças ao progresso científico, «à expressão isolada de sentimentos muito pessoais e muito limitados», pois «a alta poesia, épica, lírica» - essa irmã da metafísica e da religião -, terá assim desaparecido. (8) Salta à vista que estas conceções colidem com a primazia que por diversas vezes Antero atribui ao sentimento sobre a razão. (9)

Há ainda um ponto importante a consignar na atividade teorética e crítica de Antero com respeito à função social da literatura e da Arte. A geração da Questão Coimbrã de 1865 e das Conferências Democráticas de 1871 é muitas vezes ligada à teoria e prática do realismo. Esta conotação carece de várias especificações, mormente pelo que se relaciona com o nosso poeta. Em primeiro lugar, a apologia, a preceituação e o exercício do realismo tinham já, por finais do decénio de 1860, conciliado diversas adesões, antes da intervenção de Eça de Queirós nas Conferências Democráticas que constitui o primeiro manifesto em forma da nova estética. Balzac foi, em geral, pouco prezado pelos românticos portugueses da primeira geração, mas na carreira do (mais) consagrado novelista, Camilo Castelo Branco, o aproveitamento da melhor técnica balzaquiana é evidente desde cerca de 1855, e a qualificação de realista era já favoravelmente atribuída a obras da chamada «escola do elogio mútuo» de Castilho, na barricada oposta à de Antero na Questão Coimbrã. (10) A teoria do realismo exposta por Eça de Queirós em 1871, quer na conferência sobre «O Realismo como nova expressão da Arte» quer em textos contemporâneos no folheto periódico As Farpas, baseia-se afinal numa obra que Antero impusera ao estudo dos companheiros de Cenáculo: De la justice dans la révolution et dans l' église, 3 vols., 1958, P.-J. Proudhon. (11) Antero nem sempre acompanhou o realismo tal como foi praticado por Eça de Queirós. Encontram-se ácidas críticas aos realistas, e nomeadamente a Eça de Queirós, em várias cartas. (12) No entanto Antero reconhece os méritos do realismo. São várias as referências a leituras em curso, ou em projeto, de Balzac, cujos romances admira profundamente. (13)


(1) Trata-se da 3.ª edição, muito modificada, desta recolha póstuma, Lisboa, 1948, pp. V-XLII.
(2) Nota cit., Prosas, I, especialmente pp. 306 e 313-315.
(3) Recolhido em Prosas, I, pp. 330-347.
(4) Visão dos Tempos e Tempestades Sonoras, 1864, de Teófilo, Odes Modernas, ob. ci. de Antero.
(5) Introdução a Cantos na Solidão de Manuel Ferreira da Portela, incluso em Prosas, I, pp. 316-321.
(6) «Arte e verdade», inserto em Prosas, I, pp. 322-329.
(7) «O futuro da música», in O Instituto, vol. XIII, n.º 10, Coimbra, 1866, recolhido em Prosas, II, pp. 26-46.
(8) A Poesia na Atualidade, opúsculo impresso no Porto, 1881, e incluído em Prosas, II, pp. 310-326.
(9) A expressão mais cabal do primado da poesia como «evidência da alma» no âmbito do primado e sobrevivência do sentimento em relação às ideias encontra-se numa longa carta não datada a Anselmo de Andrade, Cartas, 1.ª ed., IX, pp. 22-35.
(10) António José Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, 12.ª ed., Porto, 1979, pp. 827 e seguintes.
(11) Vejam-se, nomeadamente, os capítulos VII e VIII do Neuvième Étude, «Progrès et Décadence», que na edição anotada de 1930-1935, em 4 vols., figuram no vol. III, pp. 582-648; e veja-se ainda de P.-J. Proudhon Du principe de l' art et de sa destination sociale, Paris, 1865, cuja influência é ainda mais sensível na exposição de Eça. Estudo fundamental a este respeito: António Salgado Júnior, História das Conferências do Casino, Lisboa, 1930.

(12) Cartas a António de Azevedo Castelo Branco, Lisboa, 1942, XXIV, de 1875, pp. 81-83, e XXVII, de 24-2-1876, pp. 97-99; Cartas, 1.ª ed., Porto, 1915, CXI, a José Félix Pereira, de 24-9-1880, p. 216; XVIII, de 25-7-1873, pp. 78-81. Cartas Inéditas de Antero de Quental a Oliveira Martins, Coimbra, 1931, nomeadamente XV, pp. 33-34.

(13) Cartas, ob. cit., LIV, a Germano Meireles, 1886, pp. 138-139: «Os romances de Balzac são uma verdadeira história íntima do nosso século, e tenho admirado como em certas coisas capitais (como a influência da bancocracia, a anarquia do livre-câmbio, as ilusões do constitucionalismo, etc.) a sua observação despreocupada da sociedade se encontra e concorda com a crítica sistemática do grande Proudhon.» Ver ainda ibidem, XXII, a Cândido de Figueiredo, de 1-5-1870, pp. 60-86, onde contradiz Cousin e os espiritualistas franceses quanto ao preceito da intemporalidade clássica, nomeadamente no teatro de Schiller, e sustenta, de acordo com uma linha teorética romântico-realista, que as personagens não podem «viver sem pátria nem idade certa», sob pena de se reduzirem a «uma abstracção» sem vida ou existência possível. Em Cartas Inéditas de Antero de Quental a Oliveira Martins, XXXIII, de 5-2-1877, pp. 72-73, pede ao amigo a aquisição de quatro romances de Balzac.

Lopes, Óscar, Antero de Quental - Vida e Legado de uma Utopia, Editorial Caminho, Lisboa, 1983

topo


Carta Biográfica a Wilhem Stork

Ponta Delgada (Ilha de S. Miguel, Açores)

24 de Maio de 1887

Ex.mo Sr.:

Só agora me chegou às mãos a sua estimada carta de 23 de abril último, pelo facto de me encontrar, há dois meses, nesta ilha (que é a minha pátria) trazido aqui por urgentes negócios de família. A demora das comunicações com o continente explica este atraso.

Agradeço a V. Ex.ª as amáveis e para mim tão honrosas expressões de sua carta, e nada me pode ser, como poeta e como homem, mais grato do que o apreço que um tal mestre e crítico manifesta pelas minhas composições, ao ponto de querer ser meu intérprete e introdutor junto do público o mais culto do mundo e que mais direito tem a ser exigente. Discípulo da Alemanha filosófica e poética, oxalá que ela receba com benignidade essas pobres flores, que uma semente sua, trazida pelo vento do século, faz desabrochar neste solo pouco preparado. Qualquer que seja a sua fortuna, toda a minha gratidão é devida ao bom e gentil espírito, que generosamente me toma pela mão, para me apresentar.

As informações biográficas e bibliográficas que V. Ex.a me pede, podem reduzir-se ao seguinte: nasci nesta ilha de S. Miguel, descendente de uma das mais antigas famílias dos seus colonizadores, em abril de 1842, tendo por conseguinte perfeito 45 anos. Cursei, entre 1856 e 1864, a Universidade de Coimbra, sendo por ela bacharel formado em Direito. Confesso, porém, que não foi o estudo do Direito que me interessou e absorveu durante aqueles anos, tendo sido e ficando um insignificante legista.

O facto importante da minha vida, durante aqueles anos, e provavelmente o mais decisivo dela, foi a espécie de revolução intelectual e moral que em mim se deu, ao sair, pobre criança arrancada do viver quase patriarcal de uma província remota e imersa no seu plácido sono histórico, para o meio da irrespeitosa agitação intelectual de um centro, onde mais ou menos vinham repercutir-se as encontradas correntes do espírito moderno. Varrida num instante toda a minha educação católica e tradicional, caí num estado de dúvida e incerteza, tanto mais pungentes quanto, espírito naturalmente religioso, tinha nascido para crer placidamente e obedecer sem esforço a uma regra reconhecida. Achei-me sem direção, estado terrível de espírito, partilhado mais ou menos por quase todos os da minha geração, a primeira em Portugal que saiu decididamente e conscientemente da velha estrada da tradição.

Se a isto se juntar a imaginação ardente, com que em excesso me dotara a natureza, o acordar das paixões amorosas próprias da primeira mocidade, a turbulência e a petulância, os fogachos e os abatimentos de um temperamento meridional, muito boa fé e boa vontade, mas muita falta de paciência e método, ficará feito o quadro das qualidades e defeitos com que, aos 18 anos, penetrei no grande mundo do pensamento e da poesia.

No meio das católicas leituras a que então me entregava, devorando com igual voracidade romances e livros de ciências naturais, poetas e publicistas e até teólogos, a leitura do Fausto de Goethe (na tradução francesa de Blaze de Bury) e o livro de Rémusat sobre a nova filosofia alemã exerceram todavia sobre o meu espírito uma impressão profunda e duradoura: fiquei definitivamente conquistado para o germanismo; e, se entre os franceses, preferi a todos Proudhon e Michelet, foi sem dúvida por serem estes dois os que mais se ressentem do espírito de além-Reno. Li depois muito de He gel, nas traduções francesas de Vera (pois só mais tarde é que aprendi alemão); não sei se o entendi bem, nem a independência do meu espírito me consentia ser discípulo: mas é certo que me seduziam as tendências grandiosas daquele estupenda síntese. Em todo o caso o hegelianismo foi o ponto de partida das minhas especulações filosóficas, e posso dizer que foi dentro dele que se deu a minha evolução intelectual.

Como acomodava eu este culto pelas doutrinas do apologista do Estado prussiano, com o radicalismo e o socialismo de Michelet, Quinet e Proudhon? Mistérios da incoerência da mocidade! O que é certo é que, revestido com esta armadura mais brilhante do que sólida, desci confiado para a arena: queria reformar tudo, eu que nem sequer estava ainda a meio caminho da formação de mim mesmo! Consumi muita atividade e algum talento, merecedor de melhor emprego, em artigos de jornais, em folhetos, em proclamações, em conferências revolucionárias: ao mesmo tempo que conspirava a favor da União Ibérica, fundava com a outra mão sociedades operárias e introduzia, adepto de Marx e de Engels, em Portugal a Associação Internacional dos Trabalhadores. Fui durante uns sete ou oito anos uma espécie de pequeno Lassalle, e tive a minha hora de vã popularidade.

Do que publiquei por esse tempo, aí vai o que ainda posso lembrar. O meu primeiro folheto é do ano de 1864. Intitula-se: Defesa da Carta Encíclica de S. S. Pio IX contra a Chamada Opinião Liberal. É um protesto contra a falta de lógica com que as folhas liberais atacavam o Syllabus, declarando-se ao mesmo tempo fiéis católicos. O autor, glorificando o Pontífice pela beleza da sua atitude intransigente em face do século, via nessa intransigência uma lei histórica, rezava respeitosamente um De profundis sobre a Igreja condenada pela mesma grandeza da sua instituição a cair inteira mas não a render-se, e atacava a hipocrisia dos jornais liberais.

O meu último folheto é de 1871. Intitula-se: Carta ao Ex.mo Marquês de' Ávila e Bolama, sobre a Portaria Que Mandou Fechar as Conferências do Casino Lisbonense. As Conferências Democráticas tinham sido fundadas por mim com o concurso de homens moços (que quase todos têm hoje nome na política) e eram muito frequentadas pelo escol da classe operária. Pareceram perigosas ao Governo, que arbitrariamente as mandou fechar. O meu folheto parece que concorreu, segundo se disse, para a queda do ministério, que, de resto, não ,podia durar muito, sendo dos chamados de transição. E uma diatribe, mas eloquente.

Entre esses dois extremos, coloca-se a famosa Questão Literária ou a Questão de Coimbra, que durante mais de seis meses agitou o nosso pequeno mundo literário, e foi o ponto de partida da atual evolução da literatura portuguesa. Os novos datam todos de então. O hegelianismo dos coimbrões fez explosão.

O velho Castilho, o árcade póstumo, como então lhe chamaram, viu a geração nova insurgir-se contra a sua chefatura anacrónica. Houve em tudo isto muita irreverência e muito excesso; mas é certo que Castilho, artista primoroso mas totalmente destituído de ideia, não podia presidir, como pretendia, a uma geração ardente, que surgia, e antes de tudo aspirava a uma nova direção, a orientar-se como depois se disse, nas correntes do espírito da época. Havia na mocidade uma grande fermentação intelectual, confusa, desordenada, mas fecunda: Castilho, que a não compreendia, julgou poder suprimi-la com processos de velho pedagogo. lnde irae. Rompi eu o fogo com o folheto Bom Senso e Bom Gosto, Carta ao Ex.mo A. F. de Castilho. Seguiu-se Teófilo Braga, seguiram-se depois muitos outros, la mêlée devint générale. Todo o inverno de 1865 a 66 se passou neste batalhar. Quando o fumo se dissipou, o que se viu mais claramente foi que havia em Portugal um grupo de dezasseis a vinte rapazes, que não queriam saber da Academia nem dos académicos, que já não eram católicos nem monárquicos, que falavam de Goethe e Hegel como os velhos tinham falado de Chateaubriand e de Cousin; e de Michelet e Proudhon, como os outros de Guizot e Bastiat; que citavam nomes bárbaros e ciências desconhecidas, como glótica, filologia, etc., que inspiravam talvez pouca confiança pela petulância e irreverência, mas que inquestionavelmente tinham talento e estavam de boa-fé e que, em suma, havia a esperar deles alguma cousa, quando assentassem.

Os factos confirmaram esta impressão: os dez ou doze primeiros nomes da literatura de hoje saíram todos (salvos dois ou três) da Escola Coimbrã ou da influência dela. O germanismo tomara pé em Portugal. Abrira-se uma nova era para o pensamento português. O velho Portugal ainda conservado artificialmente por uma literatura de convenção morrera definitivamente. Desta espécie de revolução fui eu o porta-estandarte, com o que me não desvaneço sobremaneira, mas do que também não me arrependo. Se a uma ordem artificial se seguiu uma espécie de anarquia, é isso ainda assim preferível, porque uma contém gérmenes de vida, e da outra nada havia a esperar. Pertence ainda a essa época o folheto: Dignidade das Letras e Literaturas Oficiais.

Durante o ano de 1867 e parte de 68 viajei em França e Espanha e visitei os Estados Unidos da América. No fim desse ano de 68 publiquei o folheto: Portugal perante a Revolução de Espanha. Advogava aí a União Ibérica por meio da República Federal, então representada em Espanha por Castellar, Pi y Margall e a maioria das Cortes Constituintes. Era uma grande ilusão, da qual porém só desisti ( como de muitas outras desse tempo) à força de golpes brutais e repetidos da experiência. Tanto custa a corrigir um certo falso idealismo nas cousas da sociedade!

O meu Discurso sobre as Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Séculos XVII e XVIII, embora pisasse um terreno mais sólido, o terreno da História, ressente-se ainda muito da influência das ideias políticas preconcebidas, da crítica histórica com tendências. E do ano de 1871.

Nesse ano e no seguinte tomei parte ativa no movimento socialista, que se iniciava em Lisboa, e tanto nessa cidade como no Porto escrevi bastante nos jornais políticos. Incidentemente publiquei, num pequeno volume, uma série de estudos com o título de Considerações sobre a Filosofia da História Literária Portuguesa. Creio que é, ainda assim, o que fiz de melhor, ou pelo menos, de mais razoável em prosa. Confesso sinceramente que dou muito pouca importância a todos esses meus escritozinhos de ocasião, e até, às vezes, preciso de certa força de reflexão para não me envergonhar de ter publicado tanta cousa pouco pensada. E todavia era aplaudido! Porquê? Em primeiro lugar, creio eu, porque os que me aplaudiam não pensavam, ainda assim, mais nem melhor do que eu. Em segundo lugar, porque me concedeu a natureza o dom da prosa portuguesa, não da prosa de convenção, arremedando o estilo dos séculos XVI e XVII mas de uma prosa que tem o seu tipo na língua viva e falada hoje, analítica já nos movimentos da frase, mas na linguagem ainda e sempre portuguesa. Isso agradou, porque era o que convinha e, em suma, acabei por ser citado como modelo da prosa moderna! É certo porém que tudo aquilo são escritinhos de ocasião e que, em prosa, não produzi ainda o que se chama uma obra, isto é, uma cousa original, pessoal e aprofundada. Há muito tempo que sei escrever, mas foi-me necessário chegar aos 45 anos para ter que escrever. Por isso, deixemos toda essa farragem que não cito senão para corresponder ao desejo de V. Ex.a na matéria bibliográfica. E passemos aos versos.

Além da coleção de sonetos que V. Ex.a conhece, publiquei ainda mais dois volumes. Um, de 1872, com o título de Primaveras Românticas contém os meus Juvenília, as poesias de amor e fantasia, compostas na sua quase totalidade, entre 1860 e 65, que andavam dispersas por várias publicações periódicas, e que só em 72 reuni em volume, juntamente com mais alguma cousa posterior, de mesmo carácter e estilo. Talvez a melhor maneira de caracterizar esse volume será dizer em francês que é du Heine de deuxième qualité. Como muitas pessoas, por cá, têm achado essa semelhança, por isso a indico. A segunda secção dos Sonetos Completos que não contém senão composições desse período dará a V. Ex.a uma ideia suficiente do fundo e do estilo daquela poesia: assim como a terceira secção lhe dará ideia das Odes Modernas, cuja primeira edição apareceu em 1865. Não sei bem como caracterizar este livro: não é certamente medíocre; há nele paixão sincera e elevação de pensamento; mas além de declamatória e abstrata, por vezes aquela poesia é indistinta, e não define bem e tipicamente o estado de espírito que a produziu. O que ela representa perfeitamente é a singular aliança, a que atrás me referi já, do naturalismo hegeliano e do humanitarismo radical francês. Acima de tudo é, como dizem os franceses, poesia de combate; o panfletário divisa-se muitas vezes por detrás do poeta, e a Igreja, a monarquia, os grandes do mundo, são o alvo das suas apóstrofes de nivelador idealista. Noutras composições, é verdade, o tom é mais calmo e patenteia-se nelas a intenção filosófica do livro, vaga sim, mas humana e elevada. A novidade, o arrojo, talvez a mesma indeterminação do pensamento, apenas vagamente idealista e humanitária, fizeram a fortuna do livro, junto da geração nova, o que prova pelo menos que veio no seu momento: é tudo quanto poderei dizer. Correspondem a este ciclo os sonetos compreendidos na secção dos Sonetos Completos, muitos dos quais já entraram nas Odes Modernas. Em 1874 teve este livro uma segunda edição muito correta e contendo várias composições novas que considero, tal como é e com todos os defeitos inerentes à própria essência do género, como definitiva.

Nesse mesmo ano de 1874 adoeci gravissimamente, com uma doença nervosa de que nunca mais pude restabelecer-me completamente. A forçada inação, a perspetiva da morte vizinha, a ruína de muitos projetos ambiciosos e uma certa acuidade de sentimentos, própria da nevrose, puseram-me novamente, e mais imperiosamente do que nunca, em face do grande problema da existência. A minha antiga vida pareceu-me vã e a existência em geral incompreensível. Da luta que então combati, durante cinco ou seis anos, com o meu próprio pensamento e o meu próprio sentimento que me arrastavam para um pessimismo vácuo e para o desespero, dão testemunho, além de muitas poesias, que depois destruí (subsistindo apenas as que o Oliveira Martins publicou na sua introdução aos Sonetos) as composições que perfazem a quarta secção (de 1874 a 80) do meu livrinho. Conhece-as V. Ex.a, não preciso comentá-las. Direi somente que esta evolução de sentimento correspondia a uma evolução de pensamento. O naturalismo, ainda o mais elevado e mais harmónico, ainda o de um Goethe ou de um Hegel, não tem soluções verdadeiras, deixa a consciência suspensa, o sentimento, no que ele tem de mais profundo, por satisfazer. A sua religiosidade é falsa, e só aparente; no fundo não é mais do que um paganismo intelectual e requintado. Ora eu debatia-me desesperadamente, sem poder sair do naturalismo, dentro do qual nascera para a inteligência e me desenvolvera. Era a minha atmosfera, e todavia sentia-me asfixiar dentro dela. O .naturalismo, na sua forma empírica e científica, é o struggle for life, o horror duma luta universal no meio da cegueira universal; na sua forma transcendente é uma dialética gelada e inerte, ou um epicurismo egoistamente contemplativo. Eram estas as consequências que eu via sair da doutrina com que me criara, da minha alma mater, agora que a interrogava com a seriedade e a energia de quem, antes de morrer, quer ao menos saber para que veio ao mundo.

A reação das forças morais e um novo esforço do pensamento salvaram-me do desespero. Ao mesmo tempo que percebia que a voz da consciência moral não pode ser a única voz sem significação no meio das vozes inúmeras do Universo, refundindo a minha educação filosófica, achava, quer nas doutrinas, quer na História, a confirmação deste ponto de vista; Voltei a ler muito os filósofos, Hartmann, Lange, Du Bois-Raymond e, indo às origens do pensamento alemão, Leibnitz e Kant. Li ainda mais os moralistas e místicos antigos e modernos, entre todos a Teologia Germânica e os livros budistas. Achei que o misticismo, sendo a última palavra do desenvolvimento psicológico, deve corresponder, a não ser a consciência humana uma extravagância no meio do Universo, à essência mais funda das cousas.

O naturalismo apareceu-me, não já como a explicação última das cousas, mas apenas como o sistema exterior, a lei das aparências e a fenomenologia do Ser . No psiquismo, isto é, no Bem e na Liberdade moral, é que encontrei a explicação última e verdadeira de tudo, não só do homem moral mas de toda a natureza, ainda nos seus momentos fisicos elementares. A monadologia de Leibnitz, convenientemente reformada, presta-se perfeitamente a esta interpretação do mundo, ao mesmo tempo naturalista e espiritualista. O espírito é que é o tipo da realidade: a natureza não é mais do que uma longínqua imitação, um vago arremedo, um símbolo obscuro e imperfeito do espírito. O Universo tem pois como lei suprema o bem, essência do espírito. A liberdade, em despeito do determinismo inflexível da natureza, não é uma palavra vã: ela é possível e realiza-se na santidade. Para o santo, o mundo cessou de ser um cárcere: ele é pelo contrário o senhor do mundo, porque é o seu supremo intérprete. Só por ele é que o Universo sabe para que existe: só ele realiza o fim do Universo.

Estes pensamentos e muitos outros, mas concatenados sistematicamente, formam o que eu chamarei, embora ambiciosamente, a minha filosofia. O meu amigo Oliveira Martins apresentou-me como um budista. Há, com efeito, muita coisa comum entre as minhas doutrinas e o budismo, mas creio que há nelas mais alguma cousa do que isso. Parece-me que é esta a tendência do espírito moderno que, dada a sua direção e os seus pontos de partida, não pode sair do naturalismo, cada vez em maior estado de bancarrota, senão por esta porta do psicodinamismo ou panpsiquismo. Creio que é este o ponto nodal e o centro de atração da grande nebulose do pensamento moderno, em via de condensação. Por toda a parte, mas sobretudo na Alemanha, encontram-se claros sintomas desta tendência. O Ocidente produzirá pois, por seu turno, o seu budismo, a sua doutrina mística definitiva, mas com mais sólidos alicerces e, por todos os lados, em melhores condições do que o Oriente.

Não sei se poderei realizar, como tenho desejo, a exposição dogmática das minhas ideias filosóficas. Quisera concentrar nessa obra suprema toda a atividade dos anos que me restam a viver. Desconfio, porém, que não o conseguirei; a doença que me ataca os centros nervosos não me permite esforço tão grande e tão aturado como fora indispensável para levar a cabo tão grande empresa. Morrerei, porém, com a satisfação de ter entrevisto a direcção definitiva do pensamento europeu, o norte para onde se inclina a divina bússola do espírito humano. Morrerei também, depois de uma vida moralmente tão agitada e dolorosa, na placidez de pensamentos tão irmãos das mais íntimas aspirações da alma humana, e, como diziam os antigos, na paz do Senhor! Assim o espero.

Os últimos vinte e um sonetos do meu livrinho dão um reflexo desta fase final do meu espírito e representam simbólica e sentimentalmente as minhas atuais ideias sobre o mundo e a vida humana. É bem pouco para tão vasto assunto, mas não estava na minha mão fazer mais, nem melhor. Fazer versos foi sempre em mim cousa perfeitamente involuntária; pelo menos ganhei com isso fazê-los sempre perfeitamente sinceros. Estimo este livrinho dos Sonetos por acompanhar, como a notação dum diário íntimo e sem mais preocupações do que a exatidão das notas dum diário, as fases sucessivas da minha vida intelectual e sentimental. Ele forma uma espécie de autobiografia de um pensamento e como que as memórias de uma consciência.

Se entrei em tão largos desenvolvimentos biográficos, foi por entender que, sem eles, se havia de perder a maior parte do interesse que a leitura dos meus sonetos pode inspirar. Os críticos alemães acharão talvez interessante observar as reações provocadas pela inoculação do germanismo, no espírito não preparado dum meridional, descendente dos navegadores católicos do século XVI. Poderá essa ser mais uma página, embora ténue, na história do germanismo na Europa, e porventura parecerá curiosa aos que se ocupam da psicologia comparada dos novos.

Ao bom e amável espírito que me introduz, a mim neófito, nesses grandes círculos do pensamento e do saber, tributo, além de muita simpatia, indelével gratidão.

E sou de V. Ex.a com a máxima consideração.

criado m.to obrg.º 

ANTERO DE QUENTAL

topo


© 2001- - Manuel Maria, associado da SPA.