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Sonetos de Luís de Camões

Índice

1. Enquanto quis Fortuna *

2. Eu cantarei de amor

3. Com grandes esperanças

4. Depois que quis Amor

5. Em prisões baixas fui

6. Ilustre e digno ramo

7. No tempo que de amor

8. Amor, que o gesto humano

9. Tanto de meu estado *

10. Transforma-se o amador

11. Passo por meus trabalhos

12. Em flor vos arrancou

13. Num jardim adornado

14. Todo o animal da calma

15.  Busque Amor novas artes *

16.  Quem vê, Senhora, claro

17.  Quando da bela vista

18.  Doces lembranças

19.  Alma minha gentil

20.  Num bosque, que das Ninfas

21.  Os reinos e os impérios

22.  De vós me parto, ó vida

23.  Cara minha inimiga

24.  Aquela triste e leda madrugada

25.  Se quando vos perdi

26.  Em formosa Leteia

27.  Males, que contra mim

28.  Está-se a Primavera

29.  Sete anos de pastor

30.  Está o lascivo e doce

31.  Pede o desejo, Dama

32.  Porque quereis, Senhora

33.  Se tanta pena tenho

34. Quando o Sol encoberto *

35. Um mover de olhos

36. Tomou-me vossa vista

37. - Não passes, caminhante

38. Formosos olhos

39. O fogo que na branda cera

40. Alegre campos, verdes

41. Quantas vezes do fuso

42. Lindo e subtil trançado

43. O cisne, quando sente

44. Pelos raros extremos

45. Tomava Daliana

46. Grão tempo há já

47. Se somente hora alguma

48. Oh como se me alonga

49. Já é tempo, já, que

50. Amor, co'a esperança

51. Apolo e as nove Musas

52. Lembranças saudosas

53. Apartava-se Nise

54. Quando vejo que meu destino

55. Depois de tantos dias

56. Náiades, vos que os rios

57. Mudam-se os tempos

58. Se as penas com que amor

59. Quem jaz no grão sepulcro *

60. Quem pode livre ser

61. Como fizeste, ó Pórcia *

62. De tão divino acento *

63. Debaixo desta pedra *

64. Que vençais no Oriente *

65. Vossos olhos, Senhora

66. Formosura do Céu

67. Pois meus olhos não cansam

68. Dai-me ũa lei, Senhora

69. Ferido sem ter cura

70. Na metade do Céu

71. Já a roxa e clara Aurora

72. Quando de minhas mágoas

73. Suspiros inflamados

74. Aquela fera humana

75. Ditoso seja aquele

76. Quem fosse acompanhando

77. O culto divinal

78. Leda serenidade

79. Bem sei, Amor, que é certo

80. Como quando do mar

81. Amor é um fogo que arde

193. Erros meus, má Fortuna

194. Cá nesta Babilónia *

O dia em que nasci

Nota: os sonetos com asterisco (*) contêm Linhas de Leitura.

I *

Enquanto quis Fortuna que tivesse

Esperança de algum contentamento,

O gosto de um suave pensamento

Me fez que seus versos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse

Minha escritura a algum juízo isento,

Escureceu-me o engenho co tormento,

Para que seus enganos não dissesse.

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos

A diversas vontades! Quando lerdes

Num breve livro casos tão diversos,

Verdades puras são, e não defeitos...

E sabei que, segundo o amor tiverdes,

Tereis o entendimento de meus versos!

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II

Eu cantarei de amor tão docemente,

Por uns termos em si tão concertados,

Que dois mil acidentes namorados

Faça sentir ao peito que não sente.

Farei que Amor a todos avivente,

Pintando mil segredos delicados,

Brandas iras, suspiros magoados,

Temerosa ousadia, e pena, ausente.

Também, Senhora, do desprezo honesto

De vossa vista branda e rigorosa,

Contentar-me-ei dizendo a menor parte.

Porém para cantar de vosso gesto

A composição alta e milagrosa,

Aqui falta saber, engenho, e arte.

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III

Com grandes esperanças já cantei,

Com que os deuses no Olimpo conquistara;

Depois vim a chorar porque cantara,

E agora choro já porque chorei.

Se cuido nas passadas que já dei,

Custa-me esta lembrança só tão cara,

Que a dor de ver as mágoas que passara,

Tenho por a mor mágoa que passei.

Pois logo, se está claro que um tormento

Dá causa que outro na alma se acrescente,

Já nunca posso ter contentamento.

Mas esta fantasia se me mente?

Oh ocioso e cego pensamento!

Ainda eu imagino em ser contente?

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IV

Depois que quis Amor que eu só passasse

Quanto mal já por muitos repartiu,

Entregou-me à Fortuna, porque viu

Que não tinha mais mal que em mim mostrasse.

Ela, porque do Amor se avantajasse

Na pena a que ele só me reduziu,

O que para ninguém se consentiu,

Para mim consentiu que se inventasse.

Eis-me aqui vou com vário som gritando,

Copioso exemplário para a gente

Que destes dois tiranos é sujeita;

Desvarios em versos concertando.

Triste quem seu descanso tanto estreita,

Que deste tão pequeno está contente!

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V

Em prisões baixas fui um tempo atado;

Vergonhoso castigo de meus erros:

Inda agora arrojando levo os ferros,

Que a morte, a meu pesar, tem já quebrado.

Sacrifiquei a vida a meu cuidado,

Que Amor não quer cordeiros nem bezerros;

Vi mágoas, vi misérias, vi desterros:

Parece-me que estava assi ordenado.

Contentei-me com pouco, conhecendo

Que era o contentamento vergonhoso,

Só por ver que coisa era viver ledo.

Mas minha Estrela, que eu já agora entendo,

A Morte cega, e o Caso duvidoso

Me fizeram de gostos haver medo.

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VI

Ilustre e digno ramo dos Meneses,

Aos quais o providente e largo Céu

(Que errar não sabe) em dote concedeu,

Rompessem os Maométicos arneses;

Desprezando a Fortuna e seus reveses,

Ide para onde o Fado vos moveu;

Erguei flamas no mar alto Eritreu,

E serei nova luz aos Portugueses.

Oprimi com tão firme e forte peito

O Pirata insolente, que se espante

E trema Taprobana e Gedrosia.

Dai nova causa à cor do Arabo Estreito;

Assim que o Roxo mar, daqui em diante

O seja só com sangue de Turquia.

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VII

No tempo que de amor viver soía,

Nem sempre andava ao remo ferrolhado;

Antes agora livre, agora atado,

Em várias flamas variamente ardia.

Que ardesse n'um só fogo não queria

O Céu porque tivesse experimentado

Que nem mudar as causas ao cuidado

Mudança na ventura me faria.

E se algum pouco tempo andava isento,

Foi como quem co'o peso descansou

Por tornar a cansar com mais alento.

Louvado seja Amor em meu tormento,

Pois para passatempo seu tomou

Este meu tão cansado sofrimento!

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VIII

Amor, que o gesto humano na alma escreve,

Vivas faíscas me mostrou um dia,

Donde um puro cristal se derretia

Por entre vivas rosas a alva neve.

A vista, que em si mesma não se atreve,

Por se certificar do que ali via,

Foi convertida em fonte, que fazia

A dor ao sofrimento doce e leve.

Jura Amor, que brandura de vontade

Causa o primeiro efeito; o pensamento

Endoidece, se cuida que é verdade.

Olhai como Amor gera, em um momento,

De lágrimas de honesta piedade

Lágrimas de imortal contentamento.

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IX *

Tanto de meu estado me acho incerto,

Que em vivo ardor tremendo estou de frio;

Sem causa, juntamente choro e rio,

O mundo todo abarco, e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto:

Da alma um fogo me sai, da vista um rio;

Agora espero, agora desconfio;

Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao céu voando;

Num' hora acho mil anos, e é de jeito

Que em mil anos não posso achar um' hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando,

Respondo que não sei; porém suspeito

Que só porque vos vi, minha Senhora.

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X

Transforma-se o amador na cousa amada,

Por virtude do muito imaginar;

Não tenho logo mais que desejar,

Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,

Que mais deseja o corpo de alcançar?

Em si somente pode descansar,

Pois com ele tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,

Que como o acidente em seu sujeito,

Assim co'a alma minha se conforma,

Está no pensamento como ideia;

E o vivo e puro amor de que sou feito,

Como a matéria simples busca a forma.

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XI

Passo por meus trabalhos tão isento

De sentimento grande nem pequeno,

Que só por a vontade com que peno

Me fica Amor devendo mais tormento.

Mas vai-me Amor matando tanto a tento,

Temperando a triaga c'o veneno,

Que do penar a ordem desordeno,

Porque não mo consente o sofrimento.

Porém se esta fineza o Amor sente

E pagar-me meu mal com mal pretende,

Torna-me com prazer como ao sol neve.

Mas se me vê co'os males tão contente,

Faz-se avaro da pena, porque entende

Que quanto mais me paga, mais me deve.

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XII

Em flor vos arrancou, de então crescida,

(Ah Senhor Dom António!) a dura sorte

Donde fazendo andava o braço forte

A fama dos antigos esquecida.

Uma só razão tenho conhecida

Com que tamanha mágoa se conforte:

Que se no Mundo havia honrada morte,

Não podíeis vós ter mais larga vida.

Se meus humildes versos podem tanto

Que co'o desejo meu se iguale a arte,

Especial matéria me sereis.

E celebrado em triste e longo canto,

Se morrestes nas mãos do fero Marte,

Na memória das gentes vivereis.

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XIII

Num jardim adornado de verdura,

Que esmaltavam por cima várias flores,

Entrou um dia a deusa dos amores,

Com a deusa da caça e da espessura.

Diana tomou logo ũa rosa pura,

Vénus um roxo lírio, dos melhores;

Mas excediam muito às outras flores

As violas na graça e formosura.

Perguntam a Cupido, que ali estava,

Qual de aquelas três flores tomaria

Por mais suave e pura, e mais formosa.

Sorrindo-se o menino lhes tornava:

Todas formosas são; mas eu queria

Viola antes que lírio, nem que rosa.

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XIV

Todo animal da calma repousava,

Só Liso o ardor dela não sentia;

Que o repouso do fogo, em que ele ardia,

Consistia na Ninfa que buscava.

Os montes parecia que abalava

O triste som das mágoas que dizia:

Mas nada o duro peito comovia,

Que na vontade de outro posto estava.

Cansado já de andar pela espessura,

No tronco de uma faia, por lembrança

Escreve estas palavras de tristeza:

Nunca ponha ninguém sua esperança

Em peito feminil, que de natura

Somente em ser mudável tem firmeza.

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XV *

Busque Amor novas artes, novo engenho

Para matar-me, e novas esquivanças;

Que não pode tirar-me as esperanças,

Que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!

Vede que perigosas seguranças!

Pois não temo contrastes nem mudanças,

Andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas conquanto não pode haver desgosto

Onde esperança falta, lá me esconde

Amor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que na alma me tem posto

Um não sei quê, que nasce não sei onde;

Vem não sei como; e dói não sei porquê.

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XVI

Quem vê, Senhora, claro e manifesto

O lindo ser de vossos olhos belos,

Se não perder a vista só com vê-los,

Já não paga o que deve a vosso gesto.

Este me parecia preço honesto;

Mas eu, por de vantagem merecê-los,

Dei mais a vida e alma por querê-los;

Donde já me não fica mais de resto.

Assim que Alma, que vida, que esperança,

E que quanto for meu, é tudo vosso:

Mas de tudo o interesse eu só o levo.

Porque é tamanha bem-aventurança

O dar-vos quanto tenho, e quanto posso,

Que quanto mais vos pago, mais vos devo.

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XVII

Quando da bela vista e doce riso

Tomando estão meus olhos mantimento,

Tão elevado sinto o pensamento,

Que me faz ver na terra o Paraíso.

Tanto do bem humano estou diviso,

Que qualquer outro bem julgo por vento:

Assim que em termo tal, segundo sento,

Pouco vem a fazer quem perde o siso.

Em louvar-vos, Senhora, não me fundo;

Porque quem vossas graças claro sente,

Sentirá que não pode conhecê-las.

Pois de tanta estranheza sois ao mundo,

Que não é de estranhar, dama excelente,

Que quem vos fez, fizesse céu e estrelas.

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XVIII

Doces lembranças da passada glória,

Que me tirou fortuna roubadora,

Deixai-me descansar em paz uma hora,

Que comigo ganhais pouca vitória.

Impressa tenho na alma larga história

Deste passado bem, que nunca fora;

Ou fora, e não passara: mas já agora

Em mim não pode haver mais que a memória.

Vivo em lembranças, morro de esquecido

De quem sempre devera ser lembrado,

Se lhe lembrara estado tão contente.

Oh quem tornar pudera a ser nascido!

Soubera-me lograr do bem passado,

Se conhecer soubera o mal presente.

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XIX

Alma minha gentil, que te partiste

Tão cedo desta vida descontente,

Repousa lá no Céu eternamente,

E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento Etéreo, onde subiste,

Memória desta vida se consente,

Não te esqueças daquele amor ardente,

Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te

Algũa cousa a dor que me ficou

Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,

Que tão cedo de cá me leve a ver-te,

Quão cedo de meus olhos te levou.

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XX

Num bosque, que das Ninfas se habitava,

Sibela, Ninfa linda, andava um dia;

E subida nũa árvore sombria,

As amarelas flores apanhava.

Cupido, que ali sempre costumava

A vir passar a sesta à sombra fria,

Num ramo arco e setas, que trazia,

Antes que adormecesse, pendurava.

A Ninfa, como idóneo tempo vira

Para tamanha empresa, não dilata;

Mas com as armas foge ao moço esquivo.

As setas traz nos olhos, com que tira.

Ó pastores! fugi, que a todos mata,

Senão a mim, que de matar-me vivo.

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XXI

Os reinos e os impérios poderosos,

Que em grandeza no mundo mais cresceram,

Ou por valor de esforço floresceram,

Ou por varões nas letras espantosos.

Teve Grécia Temístocles; famosos,

Os Cipiões a Roma engrandeceram;

Doze Pares a França glória deram;

Cides a Espanha, e Laras belicosos.

Ao nosso Portugal, que agora vemos

Tão diferente de seu ser primeiro,

Os vossos deram honra e liberdade.

E em vós, grão sucessor e novo herdeiro

Do Braganção estado, há mil extremos

Iguais ao sangue e mores que a idade.

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XXII

De vós me parto, ó vida, e em tal mudança

Sinto vivo da morte o sentimento.

Não sei para que é ter contentamento,

Se mais há de perder quem mais alcança!

Mas dou-vos esta firme segurança:

Que, posto que me mate o meu tormento,

Pelas águas do eterno esquecimento

Segura passará minha lembrança.

Antes sem vós meus olhos se entristeçam,

Que com cousa outra alguma se contentem:

Antes os esqueçais, que vos esqueçam.

Antes nesta lembrança se atormentem,

Que com esquecimento desmereçam

A glória que em sofrer tal pena sentem.

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XXIII

Cara minha inimiga, em cuja mão

Pôs meus contentamentos a ventura,

Faltou-te a ti na terra sepultura,

Por que me falte a mim consolação.

Eternamente as águas lograrão

A tua peregrina formosura:

Mas enquanto me a mim a vida dura,

Sempre viva em minha alma te acharão.

E, se meus rudos versos podem tanto,

Que possam prometer-te longa história

Daquele amor tão puro e verdadeiro,

Celebrada serás sempre em meu canto:

Porque, enquanto no mundo houver memória,

Será a minha escritura o teu letreiro.

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XXIV

Aquela triste e leda madrugada,

Cheia toda de mágoa e de piedade,

Enquanto houver no mundo saudade,

Quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetada

Saía, dando à terra claridade,

Viu apartar-se de uma outra vontade,

Que nunca poderá ver-se apartada.

Ela só viu as lágrimas em fio,

Que de uns e de outros olhos derivadas,

Juntando-se, formaram largo rio.

Ela ouviu as palavras magoadas

Que puderam tornar o fogo frio

E dar descanso às almas condenadas.

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XXV

Se quando vos perdi, minha esperança,

A memória perdera juntamente

Do doce bem passado e mal presente,

Pouco sentira a dor de tal mudança.

Mas Amor, em quem tinha confiança,

Me representa mui miudamente

Quantas vezes me vi ledo e contente,

Por me tirar a vida esta lembrança.

De cousas de que apenas um sinal

Havia, porque as dei ao esquecimento,

Me vejo com memórias perseguido.

Ah dura estrela minha! Ah grão tormento!

Que mal pode ser mor, que no meu mal

Ter lembranças do bem que é já passado?

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XXVI

Em formosa Leteia se confia,

Por onde vaidade tanta alcança,

Que, tornada em soberba e confiança,

Com os deuses celestes competia.

Por que não fosse avante esta ousadia,

(Que nascem muitos erros da tardança)

Em efeito puseram a vingança

Que tamanha doudice merecia.

Mas Oleno, perdido por Leteia,

Não lhe sofrendo Amor que suportasse

Duro castigo em tanta formosura,

Quis a pena tomar da culpa alheia.

Mas, por que a morte Amor não apartasse,

Ambos tornados são em pedra dura.

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XXVII

Males, que contra mim vos conjurastes,

Quanto há de durar tão duro intento?

Se dura, por que dure meu tormento,

Baste-vos quanto já me atormentastes.

Mas se assim porfiais, porque cuidastes

Derribar o meu alto pensamento,

Mais pode a causa dele, em que o sustento,

Que vós, que dela mesma o ser tomastes.

E pois vossa tenção com minha morte

É de acabar o mal destes amores,

Dai já fim a tormento tão comprido.

Assim de ambos contente será a sorte:

Em vós por acabar-me, vencedores,

Em mim porque acabei de vós vencido.

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XXVIII

Está-se a Primavera trasladando

Em vossa vista deleitosa e honesta;

Nas belas faces, e na boca e testa,

Cecéns, rosas, e cravos debuxando.

De sorte, vosso gesto matizando,

Natura quanto pode manifesta,

Que o monte, o campo, o rio, e a floresta,

Se estão de vós, Senhora, namorando.

Se agora não quereis que quem vos ama

Possa colher o fruto destas flores,

Perderão toda a graça os vossos olhos.

Porque pouco aproveita, linda Dama,

Que semeasse o Amor em vós amores,

Se vossa condição produz abrolhos.

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XXIX

Sete anos de pastor Jacob servia

Labão, pai de Raquel, serrana bela;

Mas não servia ao pai, servia a ela,

Que a ela só por prémio pretendia.

Os dias na esperança de um só dia

Passava, contentando-se com vê-la;

Porém o pai, usando de cautela,

Em lugar de Raquel lhe deu Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos

Assim lhe era negada a sua pastora,

Como se a não tivera merecida;

Começou a servir outros sete anos,

Dizendo: − Mais servira, senão fora

Para tão longo amor tão curta a vida.

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XXX

Está o lascivo e doce passarinho

Com o biquinho as penas ordenando,

O verso sem medida, alegre e brando,

Despedindo no rústico raminho.

O cruel caçador, que do caminho

Se vem calado e manso desviando,

Com pronta vista a seta endireitando,

Lhe dá no Estígio Lago eterno ninho.

Desta arte o coração, que livre andava,

(Posto que já de longe destinado)

Onde menos temia, foi ferido.

Porque o Frecheiro cego me esperava,

Para que me tomasse descuidado,

Em vossos claros olhos escondido.

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XXXI

Pede o desejo, Dama, que vos veja:

Não entende o que pede; está enganado.

É este amor tão fino e tão delgado,

Que quem o tem não sabe o que deseja.

Não há cousa, a qual natural seja,

Que não queira perpétuo o seu estado.

Não quer logo o desejo o desejado,

Só por que  nunca falte onde sobeja.

Mas este puro afeto em mim se dana:

Que, como a grave pedra tem por arte

O centro desejar da natureza,

Assim meu pensamento, pela parte

Que vai tomar de mim, terrestre e humana,

Foi, Senhora, pedir esta baixeza.

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XXXII

Porque quereis, Senhora, que ofereça

A vida a tanto mal como padeço?

Se vos nasce do pouco que eu mereço,

Bem por nascer está quem vos mereça.

Entendei que por muito que vos peça,

Poderei merecer quanto vos peço;

Pois não consente Amor que em baixo preço

Tão alto pensamento se conheça.

Assim que a paga igual de minhas dores

Com nada se restaura, mas deveis-ma

Por ser capaz de tantos desfavores.

E se o valor de vossos amadores

Houver de ser igual convosco mesma,

Vós só convosco mesma andai de amores.

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XXXIII

Se tanta pena tenho merecida

Em pago de sofrer tantas durezas,

Provai, Senhora, em mim vossas cruezas,

Que aqui tendes ũa alma oferecida.

Nela experimentai, se sois servida,

Desprezos, desfavores e asperezas,

Que mores sofrimentos e firmezas

Sustentarei na guerra desta vida.

Mas contra vossos olhos quais serão?

É preciso que tudo se lhes renda,

Mas porei por escudo o coração.

Porque, em tão dura e áspera contenda,

É bem que, pois não acho defensão,

Com meter-me nas lanças me defenda.

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XXXIV *

Quando o Sol encoberto vai mostrando

Ao mundo a luz quieta e duvidosa,

Ao longo de ũa praia deleitosa

Vou na minha inimiga imaginando.

Aqui a vi, os cabelos concertando;

Ali, co'a mão na face tão, formosa;

Aqui falando alegre, ali cuidosa;

Agora estando queda, agora andando.

Aqui esteve sentada, ali me viu,

Erguendo aqueles olhos, tão isentos;

Aqui movida um pouco, ali segura.

Aqui se entristeceu, ali se riu.

E, enfim, nestes cansados pensamentos

Passo esta vida vã, que sempre dura.

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XXXV

Um mover de olhos, brando e piedoso,

Sem ver de quê; um riso brando e honesto,

Quase forçado; um doce e humilde gesto,

De qualquer alegria duvidoso;

Um despejo quieto e vergonhoso;

Um repouso gravíssimo e modesto;

Uma pura bondade, manifesto

Indício da alma, limpo e gracioso;

Um encolhido ousar; uma brandura;

Um medo sem ter culpa; um ar sereno;

Um longo e obediente sofrimento;

Esta foi a celeste formosura

Da minha Circe, e o mágico veneno

Que pôde transformar meu pensamento.

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XXXVI

Tomou-me vossa vista soberana

Aonde tinha as armas mais à mão,

Por mostrar a quem busca defensão

Contra esses belos olhos, que se engana.

Por ficar da vitória mais ufana,

Deixou-me armar primeiro da razão;

Bem salvar-me cuidei, mas foi em vão,

Que contra o Céu não vale defensa humana.

Contudo, se vos tinha prometido

O vosso alto destino esta vitória,

Ser-vos ela bem pouco está entendido.

Pois, inda que eu me achasse apercebido,

Não levais de vencer-me grande glória,

Eu a levo maior de ser vencido.

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XXXVII

Não passes, caminhante! − Quem me chama?

Ũa memória nova e nunca ouvida,

De um que trocou finita e humana vida

Por divina, infinita e clara fama.

Quem é que tão gentil louvor derrama?

Quem derramar seu sangue não duvida

Por seguir a bandeira esclarecida

De um capitão de Cristo, que mais ama.

Ditoso fim, ditoso sacrifício,

Que a Deus se fez e ao mundo juntamente!

Apregoando direi tão alta sorte.

Mais poderás contar a toda a gente

Que sempre deu na vida claro indício

De vir a merecer tão santa morte.

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XXXVIII

Formosos olhos, que na idade nossa
Mostrais do Céu certíssimos sinais,
Se quereis conhecer quanto possais,
Olhai-me a mim, que sou feitura vossa.

Vereis que do viver me desapossa
Aquele riso com que a vida dais;
Vereis como de Amor não quero mais,
Por mais que o tempo corra, o dano possa.

E se ver-vos nesta alma, enfim, quiserdes,
Como num claro espelho, ali vereis
Também a vossa, angélica e serena.

Mas eu cuido que, só por me não verdes,
Ver-vos em mim, Senhora, não quereis:
Tanto gosto levais de minha pena!

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XXXIX

O fogo que na branda cera ardia,
Vendo o rosto gentil, que eu na alma vejo,
Se acendeu de outro fogo do desejo
Por alcançar a luz que vence o dia.

Como de dois ardores se incendia,
Da grande impaciência fez despejo,
E, remetendo com furor sobejo,
Vos foi beijar na parte onde se via.

Ditosa aquela flama que se atreve
A apagar seus ardores e tormentos
Na vista a quem o sol temores deve!

Namoram-se, Senhora, os Elementos
De vós, e queima o fogo aquela neve
Que queima corações e pensamentos.

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XL

Alegres campos, verdes arvoredos,

Claras e frescas águas de cristal,

Que em vós os debuxais ao natural,

Discorrendo da altura dos rochedos;

Silvestres montes, ásperos penedos

Compostos de concerto desigual;

Sabei que, sem licença de meu mal,

Já não podeis fazer meus olhos ledos.

E pois já me não vedes como vistes,

Não me alegrem verduras deleitosas,

Nem águas que correndo alegres vêm.

Semearei em vós lembranças tristes,

Regar-vos-ei com lágrimas saudosas,

E nascerão saudades de meu bem.

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XLI

Quantas vezes do fuso se esquecia

Daliana, banhando o lindo seio,

Outras tantas de um áspero receio

Salteado Laurénio a cor perdia.

Ela, que a Sílvio mais que a si queria,

Para podê-lo ver não tinha meio.

Ora como curara o mal alheio

Quem o seu mal tão mal curar podia?

Ele, que viu tão clara esta verdade,

Com soluços dizia (que a espessura

Inclinavam, de mágoa, a piedade):

Como pode a desordem da natura

Fazer tão diferentes na vontade

Aos que fez tão conformes na ventura?

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XLII

Lindo e subtil trançado, que ficaste

Em penhor do remédio que mereço,

Se só contigo, vendo-te, endoudeço,

Que fora co'os cabelos que apertaste?

Aquelas tranças de ouro que ligaste,

Que os raios de sol têm em pouco preço,

Não sei se para engano do que peço,

Ou para me matar as desataste.

Lindo trançado, em minhas mãos te vejo,

E por satisfação de minhas dores,

Como quem não tem outra, hei de tomar-te.

E se não for contente o meu desejo,

Dir-lhe-ei que, nesta regra dos amores,

Por o todo também se toma a parte.

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XLIII

O cisne, quando sente ser chegada

A hora que põe termo à sua vida,

Harmonia maior, com voz sentida,

Levanta pela praia inabitada.

Deseja lograr vida prolongada,

E dela está chorando a despedida;

Com grande saudade da partida,

Celebra o triste fim desta jornada.

Assim, Senhora minha, quando eu via

O triste fim que davam meus amores,

Estando posto já no extremo fio,

Com mais suave acento de harmonia

Descantei pelos vossos desfavores

La vuestra falsa fe y el amor mio.

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XLIV

Pelos raros extremos que mostrou

Em sábia Palas, Vénus em formosa,

Diana em casta, Juno em animosa,

África, Europa e Ásia as adorou.

Aquele saber grande que juntou

Espírito e corpo em liga generosa,

Esta mundana máquina lustrosa

De só quatro elementos fabricou.

Mas fez maior milagre a natureza

Em vós, Senhoras, pondo em cada ũa

O que por todas quatro repartiu.

A vós seu resplendor deu Sol e Lũa:

A vós com viva luz, graça e pureza,

Ar, Fogo, Terra e Água vos serviu.

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XLV

Tomava Daliana por vingança

Da culpa do pastor que tanto amava,

Casar com Gil vaqueiro; e em si vingava

O erro alheio e pérfida esquivança.

A discrição segura, a confiança

Das rosas que o seu rosto debuxava,

O descontentamento lhas mudava,

Que tudo muda ũa áspera mudança.

Gentil planta disposta em seca terra,

Lindo fruto de dura mão colhido,

Lembranças de outro amor e fé perjura,

Tornaram verde prado em dura serra;

Interesse enganoso, amor fingido,

Fizeram desditosa a formosura.

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XLVI

Grão tempo há já que soube da Ventura

A vida que me tinha destinada,

Que a longa experiência da passada

Me dava claro indício da futura.

Amor fero e cruel, Fortuna escura,

Bem tendes vossa força exprimentada;

Assolai, destruí, não fique nada;

Vingai-vos desta vida, que inda dura.

Soube Amor da Ventura que a não tinha,

E por que mais sentisse a falta dela,

De imagens impossíveis me mantinha.

Mas vós, Senhora, pois que minha estrela

Não foi melhor, vivei nesta alma minha,

Que não tem a Fortuna poder nela.

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XLVII

Se somente hora alguma em vós piedade

De tão longo tormento se sentira,

Amor sofrera, mal que eu me partira

De vossos olhos, minha saudade.

Apartei-me de vós, mas a vontade,

Que por o natural na alma vos tira,

Me faz crer que esta ausência é de mentira;

Porém venho a provar que é de verdade.

Ir-me-ei, Senhora; e neste apartamento

Lágrimas tristes tomarão vingança

Nos olhos de quem fostes mantimento.

Desta arte darei vida a meu tormento,

Que, enfim, cá me achará minha lembrança

Sepultado no vosso esquecimento.

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XLVIII

Oh como se me alonga de ano em ano

A peregrinação cansada minha!

Como se encurta, e como ao fim caminha

Este meu breve e vão discurso humano!

Minguando a idade vai, crescendo o dano;

Perdeu-se-me um remédio, que inda tinha;

Se por experiência se adivinha,

Qualquer grande esperança é grande engano.

Corro após este bem que não se alcança;

No meio do caminho me falece;

Mil vezes caio, e perco a confiança.

Quando ele foge, eu tardo; e na tardança,

Se os olhos ergo a ver se inda aparece,

De vista se me perde, e da esperança.

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XLIX

Já é tempo, já, que minha confiança

Se desça duma falsa opinião;

Mas Amor não se rege por razão,

Não posso perder, logo, a esperança.

A vida sim, que uma áspera mudança

Não deixa viver tanto um coração.

E eu só na morte tenho a salvação?

Sim, mas quem a deseja não a alcança.

Forçado é logo que eu espere e viva.

Ah dura lei de Amor, que não consente

Quietação num'alma que é cativa!

Se hei de viver, enfim, forçadamente,

Para que quero a glória fugitiva

Duma esperança vã que me atormente?

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L

Amor, co'a esperança já perdida

Teu soberano templo visitei;

Por sinal do naufrágio que passei,

Em lugar dos vestidos, pus a vida.

Que mais queres de mim, pois destruída

Me tens a glória toda que alcancei?

Não cuides de render-me, que não sei

Tornar a entrar onde não há saída.

Vês aqui vida, alma e esperança,

Doces despojos de meu bem passado,

Enquanto o quis aquela que eu adoro.

Nelas podes tomar de mim vingança;

E se te queres ainda mais vingado,

Contenta-te co'as lágrimas que choro.

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LI

Apolo e as nove Musas, descantando

Com a dourada lira, me influíam

Na suave harmonia que faziam,

Quando tomei a pena, começando:

Ditoso seja o dia e hora, quando

Tão delicados olhos me feriam!

Ditosos os sentidos que sentiam

Estar-se em seu desejo traspassando!

Assim cantava, quando Amor virou

A roda à esperança, que corria

Tão ligeira, que quase era invisível.

Converteu-se-me em noite o claro dia;

E, se alguma esperança me ficou,

Será de maior mal, se for possível.

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LII

Lembranças saudosas, se cuidais

De me acabar a vida neste estado,

Não vivo com meu mal tão enganado,

Que não espere dele muito mais.

De longo tempo já me costumais

A viver de algum bem desesperado:

Já tenho co'a Fortuna concertado

De sofrer os tormentos que me dais.

Atada ao remo tenho a paciência

Para quantos desgostos der a vida;

Cuide quanto quiser o pensamento.

Que pois não posso ter mais resistência

Para tão dura queda, de subida,

Aparar-lhe-ei debaixo o sofrimento.

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LIII

Apartava-se Nise de Montano,

Em cuja alma, partindo-se, ficava,

Que o pastor na memória a debuxava,

Por poder sustentar-se deste engano.

Por ũa praia do Índico Oceano

Sobre o curvo cajado se encostava,

E os olhos pelas águas alongava,

Que pouco se doíam de seu dano.

Pois com tamanha mágoa e saudade,

(Dizia) quis deixar-me a que eu adoro,

Por testemunhas tomo céu e estrelas.

Mas se em vós, ondas, mora piedade,

Levai também as lágrimas que choro,

Pois assim me levais a causa delas.

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LIV

Quando vejo que meu destino ordena

Que, por me experimentar, de vós me aparte,

Deixando de meu bem tão grande parte,

Que a mesma culpa fica grave pena,

O duro desfavor, que me condena,

Quando pela memória se reparte,

Endurece os sentidos de tal arte

Que a dor da ausência fica mais pequena.

Mas como pode ser que na mudança

Daquilo que mais quero, estê tão fora

De me não apartar também da vida?

Eu refrearei tão áspera esquivança,

Porque mais sentirei partir, Senhora,

Sem sentir muito a pena da partida.

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LV

Depois de tantos dias mal gastados,

Depois de tantas noites mal dormidas,

Depois de tantas lágrimas vertidas,

Tantos suspiros vãos vãmente dados,

Como não sois vós já desenganados,

Desejos, que de cousas esquecidas

Quereis remediar mortais feridas,

Que amor fez sem remédio, o tempo, os Fados?

Se não tivéreis já longa exp'riência

Das sem-razões de Amor a quem servistes,

Fraqueza fora em vós a resistência.

Mas pois por vosso mal seus males vistes,

Que o tempo não curou, nem larga ausência,

Qual bem dele esperais, desejos tristes?

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LVI

Náiades, vós que os rios habitais

Que os saudosos campos vão regando,

De meus olhos vereis estar manando

Outros que quase aos vossos são iguais.

Dríades, que com seta sempre andais

Os fugitivos cervos derribando,

Outros olhos vereis, que triunfando

Derribam corações, que valem mais.

Deixai logo as aljavas e águas frias,

E vinde, Ninfas belas, se quereis,

A ver como de uns olhos nascem mágoas.

Notareis como em vão passam os dias;

Mas em vão não vireis, porque achareis

Nos seus as setas, e nos meus as águas.

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LVII

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

Muda-se o ser, muda-se a confiança:

Todo o mundo é composto de mudança,

Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,

Diferentes em tudo da esperança:

Do mal ficam as mágoas na lembrança,

E do bem (se algum houve) as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,

Que já coberto foi de neve fria,

E em mim converte em choro o doce canto.

E afora este mudar-se cada dia,

Outra mudança faz de mor espanto,

Que não se muda já como soía.

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LVIII

Se as penas com que Amor tão mal me trata

Permitirem que eu tanto viva delas,

Que veja escuro o lume das estrelas,

Em cuja vista o meu se acende e mata;

E se o tempo, que tudo desbarata,

Secar as frescas rosas, sem colhê-las,

Deixando a linda cor das tranças belas

Mudada de ouro fino em fina prata;

Também, Senhora, então vereis mudado

O pensamento e a aspereza vossa,

Quando não sirva já sua mudança.

Ver-vos-eis suspirar por o passado,

Em tempo quando executar-se possa

No vosso arrepender minha vingança.

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LIX *

Quem jaz no grão sepulcro, que descreve

Tão ilustres sinais no forte escudo?

Ninguém, que nisso, enfim, se torna tudo;

Mas foi quem tudo pôde e quem tudo teve.

Foi Rei? Fez tudo quanto a Rei deve:

Pôs na guerra e na paz devido estudo.

Mas quão pesado foi ao Mouro rudo,

Tanto lhe seja agora a terra leve.

Alexandre será? Ninguém se engane:

Mais que o adquirir, o sustentar estima.

Será Adriano grão senhor do mundo?

Mais observante foi da Lei de cima.

É Numa? Numa não, mas é Joane

De Portugal Terceiro sem Segundo.

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LX

Quem pode livre ser, gentil Senhora,

Vendo-vos com juízo sossegado,

Se o Menino, que de olhos é privado,

Nas Meninas dos vossos olhos mora?

Ali manda, ali reina, ali namora,

Ali vive das gentes venerado;

Que  vivo lume, e o rosto delicado,

Imagens são adonde Amor se adora.

Quem vê que em branca neve nascem rosas

Que crespos fios de ouro vão cercando?

Se por entre esta luz a vista passa,

Raios de ouro verá, que as duvidosas

Almas estão no peito traspassando,

Assim como um cristal o Sol traspassa.

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LXI *

Como fizeste, ó Porcia, tal ferida? (1)

Foi voluntária, ou foi por inocência?

É que Amor fazer só quis experiência

Se podia eu sofrer, tirar-me a vida?

E com teu próprio sangue te convida

A que faças à morte resistência?

É que costume faço da paciência,

Porque o temor morrer me não impida.

Pois porque estás comendo com fogo ardente,

Se a ferro te costumas? É que ordena

Amor que morra, e pene juntamente.

E tens a dor do ferro por pequena?

Si, que a dor costumada não se sente,

E não quero eu a morte sem a pena.

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LXII *

De tão divino acento em voz humana,

De elegâncias que são tão peregrinas,

Sei bem que minhas obras não são dignas,

Que o rudo engenho meu me desengana.

Porém da vossa pena ilustre mana

Licor que vence as águas Cabalinas;

E convosco do Tejo as flores finas

Farão inveja à cópia Mantuana.

E pois a vós, de si não sendo avaras,

As filhas de Mnemósine fermosa

Partes dadas vos têm ao mundo claras;

A minha Musa, e a vossa tão famosa,

Ambas se podem nele chamar raras,

A vossa de alta, a minha de invejosa. (1)

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LXIII *

Debaixo desta pedra está metido,

Das sanguinosas armas descansado,

O Capitão ilustre, e assinalado,

Dom Fernando de Castro, e esclarecido. (1)

Este por todo o Oriente tão metido,

Este da própria inveja tão cantado,

Este, enfim, raio de Mavorte irado,

Aqui está agora em terra convertido.

Alegra-te, ó guerreira Lusitânia,

Por est'outro Viriato que criaste,

E chora a perda sua eternamente.

Exemplo toma nisto de Dardânia;

Que se a Roma com ele aniquilaste,

Nem por isso Cartago está contente.

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LXIV *

Que vençais no Oriente tantos Reis,

Que de novo nos deis da Índia o Estado,

Que escureçais a fama que hão ganhado

Aqueles que a ganharam de infiéis;

Que vencidas tenhais da morte as leis,

E que vencêsseis tudo, enfim, armado,

Mais é vencer na Pátria, desarmado,

Os monstros e as Quimeras que venceis.

Sobre vencerdes, pois, tanto inimigo,

E por armas fazer que sem segundo

No mundo o vosso nome ouvido seja;

O que vos dá mais fama inda no mundo,

É vencerdes, Senhor, no Reino amigo,

Tantas ingratidões, tão grande inveja.

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LXV

Vossos olhos, Senhora, que competem

Com o Sol em beleza e claridade,

Enchem os meus de tal suavidade,

Que em lágrimas de vê-los se derretem.

Meus sentidos prostrados se submetem

Assim cegos a tanta majestade;

E da triste prisão, da escuridade,

Cheios de medo, por fugir remetem.

Porém se então me vedes por acerto,

Esse áspero desprezo com que olhais

Me torna a animar a alma enfraquecida.

Oh gentil cura! Oh estranho desconcerto!

Que dareis c' um favor que vós não dais,

Quando com um desprezo me dais vida?

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LXVI

Formosura do Céu a nós descida,

Que nenhum coração deixas isento,

Satisfazendo a todo pensamento,

Sem que sejas de algum bem entendida;

Qual língua pode haver tão atrevida,

Que tenha de louvar-te atrevimento,

Pois a parte melhor do entendimento,

No menos que em ti há se vê perdida?

Se em teu valor contemplo a menor parte,

Vendo que abre na terra um paraíso,

Logo o engenho me falta, o espírito míngua.

Mas o que mais me impede inda louvar-te,

É que quando te vejo perco a língua,

E quando não te vejo perco o siso.

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LXVII

Pois meus olhos não cansam de chorar

Tristezas não cansadas de cansar-me;

Pois não se abranda o fogo em que abrasar-me

Pôde quem eu jamais pude abrandar;

Não canse o cego Amor de me guiar

Donde nunca de lá possa tornar-me;

Nem deixe o mundo todo de escutar-me,

Enquanto a fraca voz me não deixar.

E se em montes, se em prados, e se em vales

Piedade mora alguma, algum amor

Em feras, plantas, aves, pedras, águas;

Ouçam a longa história de meus males,

E curem sua dor com minha dor;

Que grandes mágoas podem curar mágoas.

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LXVIII

Dai-me ũa lei, Senhora, de querer-vos,

Porque a guarde sob pena de enojar-vos;

Pois a fé que me obriga a tanto amar-vos

Fará que fique em lei de obedecer-vos.

Tudo me defendei, senão só ver-vos

E dentro na minha alma contemplar-vos;

Que se assim não chegar a contentar-vos,

Ao menos nunca chegue a aborrecer-vos.

E se essa condição cruel e esquiva

Que me deis lei de vida não consente,

Dai-ma, Senhora, já, seja de morte.

Se nem essa me dais, é bem que viva,

Sem saber como vivo, tristemente;

Mas contente estarei com minha sorte.

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LXIX

Ferido sem ter cura perecia

O forte e duro Télefo temido (1)

Por aquele que na água foi metido,

E a quem ferro nenhum cortar podia.

Quando a apolíneo Oráculo pedia

Conselho para ser restituído,

Respondeu-lhe, tornasse a ser ferido

Por quem o já ferira, e sararia.

Assi, Senhora, quer minha ventura,

Que ferido de ver-vos claramente,

Com tornar-vos a ver Amor me cura.

Mas é tão doce vossa formosura,

Que fico como o hidrópico doente,

Que bebendo lhe cresce mor secura.

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LXX

Na metade do Céu subido ardia

O claro, almo Pastor, quando deixavam

O verde pasto as cabras, e buscavam

A frescura suave da água fria.

Com a folha das árvores, sombria,

Do raio ardente as aves se amparavam;

O módulo cantar, de que cessavam,

Só nas roucas cigarras se sentia.

Quando Liso Pastor, num campo verde,

Natércia, crua Ninfa, só buscava

Com mil suspiros tristes que derrama.

Porque te vás de quem por ti se perde,

Para quem pouco te ama? (suspirava)

E o eco lhe responde: Pouco te ama.

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LXXI

Já a roxa e clara Aurora destoucava

Os seus cabelos de ouro delicados,

E das flores os campos esmaltados

Com cristalino orvalho borrifava;

Quando o formoso gado se espalhava

De Sílvio e de Laurente pelos prados;

Pastores ambos, e ambos apartados

De quem o mesmo Amor não se apartava.

Com verdadeiras lágrimas, Laurente,

− Não sei − dizia − ó Ninfa delicada,

Porque não morre já quem vive ausente,

Pois a vida sem ti não presta nada.

Responde Sílvio: − Amor não o consente,

Que ofende as esperanças da tornada.

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LXXII

Quando de minhas mágoas a comprida

Maginação os olhos me adormece,

Em sonhos aquela alma me aparece,

Que para mi foi sonho nesta vida.

Lá numa soidade, onde estendida

A vista por o campo desfalece,

Corro após ela; e ela então parece

Que mais de mi se alonga, compelida.

Brado: − Não me fujais, sombra benina. −

Ela (os olhos em mi c'um brando pejo,

Como quem diz que já não pode ser)

Torna a fugir-me; torno a bradar: − Dina...

E antes que diga mene, acordo, e vejo

Que nem um breve engano posso ter.

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LXXIII

Suspiros inflamados que cantais

A tristeza com que eu vivi tão tedo;

Eu morro e não vos levo, porque hei medo

Que ao passar do Leteo vos percais.

Escritos para sempre já ficais

Onde vos mostrarão todos co'o dedo,

Como exemplo de males; e eu concedo

Que para aviso de outros estejais.

Em quem, pois, virdes largas esperanças

De Amor e da Fortuna (cujos danos

Alguns terão por bem-aventuranças),

Dizei-lhe que os servistes muitos anos,

E que em Fortuna tudo são mudanças,

E que em Amor não há senão enganos.

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LXXIV

Aquela fera humana que enriquece

A sua presunçosa tirania

Destas minhas entranhas, onde cria

Amor um mal que falta quando cresce;

Se nela o Céu mostrou (como parece)

Quanto mostrar ao mundo pretendia,

Porque de minha vida se injuria?

Porque de minha morte se enobrece?

Ora, enfim, sublimai vossa vitória,

Senhora, com vencer-me e cativar-me;

Fazei dela no mundo larga história.

Pois, por mais que vos veja atormentar-me,

Já me fico logrando desta glória

De ver que tendes tanta de matar-me.

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LXXV

Ditoso seja aquele que somente

Se queixa de amorosas esquivanças;

Pois por elas não perde as esperanças

De poder nalgum tempo ser contente.

Ditoso seja quem estando ausente

Não sente mais que a pena das lembranças;

Porqu'inda que se tema de mudanças,

Menos se teme a dor quando se sente.

Ditoso seja, enfim, qualquer estado,

Onde enganos, desprezos e isenção

Trazem um coração atormentado.

Mas triste quem se sente magoado

De erros em que não pode haver perdão

Sem ficar na alma a mágoa do pecado.

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LXXVI

Quem fosse acompanhando juntamente

Por esses verdes campos a avezinha,

Que despois de perder um bem que tinha,

Não sabe mais que cousa é ser contente!

E quem fosse apartando-se da gente,

Ela por companheira e por vizinha,

Me ajudasse a chorar a pena minha,

E eu a ela também a que ela sente!

Ditosa ave! que ao menos, se a natura

A seu primeiro bem não dá segundo,

Dá-lhe o ser triste a seu contentamento.

Mas triste quem de longe quis ventura

Que para respirar lhe falte o vento,

E para tudo, enfim, lhe falte o mundo!

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LXXVII

O culto divinal se celebrava

No templo donde toda criatura

Louva o Feitor divino, que a feitura

Com seu sagrado sangue restaurava.

Amor ali, que o tempo me aguardava

Onde a vontade tinha mais segura,

Com uma rara e angélica figura

A vista da razão me salteava.

Eu crendo que o lugar me defendia

De seu livre costume, não sabendo

Que nenhum confiado lhe fugia,

Deixei-me cativar; mas hoje vendo,

Senhora, que por vosso me queria,

Do tempo que fui livre me arrependo.

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LXXVIII

Leda serenidade deleitosa,

Que representa em terra um paraíso;

Entre rubis e perlas, doce riso,

Debaixo de ouro e neve, cor-de-rosa;

Presença moderada e graciosa,

Onde ensinando estão despejo e siso

Que se pode por arte e por aviso,

Como por natureza, ser formosa;

Fala de que ou já vida, ou morte pende,

Rara e suave, enfim, Senhora, vossa,

Repouso na alegria comedido:

Estas as armas são com que me rende

E me cativa Amor; mas não que possa

Despojar-me da glória de rendido.(1)

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LXXIX

Bem sei, Amor, que é certo o que receio;

Mas tu, porque com isso mais te apuras,

De manhoso, mo negas, e mo juras

Nesse teu arco de ouro; e eu te creio.

A mão tenho metida no meu seio,

E não vejo os meus danos às escuras;

Porém porfias tanto e me asseguras,

Que me digo que minto, e que me enleio.

Nem somente consinto neste engano,

Mas inda to agradeço, e a mim me nego

Tudo o que vejo e sinto de meu dano.

Oh poderoso mal a que me entrego!

Que no meio do justo desengano

Me possa inda cegar um moço cego?

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LXXX

Como quando do mar tempestuoso

O marinheiro todo trabalhado,

De um naufrágio cruel saindo a nado,

Só de ouvir falar nele está medroso;

Firme jura que o vê-lo bonançoso

Do seu lar o não tire sossegado;

Mas esquecido já do horror passado,

Dele a fiar se torna cobiçoso;

Assi, Senhora, eu que da tormenta

De vossa vista fujo, por salvar-me,

Jurando de não mais em outra ver-me;

Com a alma que de vós nunca se ausenta,

Me torno, por cobiça de ganhar-me,

Onde estive tão perto de perder-me.

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LXXXI

Amor é um fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se e contente;
É um cuidar que ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

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CXCIII

Erros meus, má Fortuna, Amor ardente

Em minha perdição se conjuraram;

Os erros e a Fortuna sobejaram,

Que para mim bastava Amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente

A grande dor das cousas que passaram,

Que já as frequências suas me ensinaram

A desejos deixar de ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;

Dei causa a que a Fortuna castigasse

As minhas mal fundadas esperanças.

De Amor não vi senão breves enganos.

Oh! Quem tanto pudesse, que fartasse

Este meu duro Génio de vinganças!

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CXCIV *

Cá nesta Babilónia, donde mana

Matéria a quanto mal o mundo cria;

Cá, onde o puro Amor não tem valia,

Que a Mãe, que manda mais, tudo profana;

Cá, onde o mal se afina, o bem se dana,

E pode mais que a honra a tirania;

Cá, onde a errada e cega Monarquia

Cuida que um nome vão a Deus engana;

Cá, neste labirinto, onde a Nobreza,

O Valor e o Saber pedindo vão

Às portas da Cobiça e da Vileza;

Cá, neste escuro caos de confusão,

Cumprindo o curso estou da natureza.

Vê se me esquecerei de ti, Sião!

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O dia em que nasci moura e pereça,

Não o queira jamais o tempo dar;

Não torne mais ao mundo, e, se tornar,

Eclipse nesse passo o sol padeça.

A luz lhe falte, o sol se [lhe] escureça,

Mostre o mundo sinais de se acabar;

Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,

A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,

As lágrimas no rosto, a cor perdida,

Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,

Que este dia deitou ao mundo a vida

Mais desgraçada que jamais se viu.

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Linhas de Leitura

Enquanto quis Fortuna

  1. Assunto: Enquanto o destino (Fortuna) permitiu que alimentasse a esperança de alguma felicidade, o poeta dedicou-se a escrever os efeitos da mesma, naturalmente em versos amorosos. Porém, o Amor, temendo que seus enganos fossem divulgados, secou-lhe a inspiração. Assim, aqueles a quem o Amor sujeita às suas insconstâncias, mesmo que, em tais versos, leiam casos tão diferentes (quiçá contraditórios), deverão considerá-los verdades puras, e não o contrário, sendo que as compreenderão tanto melhor, quanto mais larga for a sua experiência amorosa.

  2. Estrutura interna bipartida:

    • 1ª parte, constituída pelas quadras.
      • Esta 1.ª parte está, igualmente, subdividida: na primeira quadra, observamos o papel coadjuvante do destino (Fortuna) e, na segunda, confrontamo-nos com o carácter oponente do Amor (nome também atribuído a Cupido, filho de Vénus).
      • Note-se que a transição da primeira para a segunda quadra é feita através do conector (conjunção) adversativo "porém", o que, desde logo, antecipa a adversidade nela contida.
    • 2ª parte, constituída pelos tercetos, em que o poeta, apostrofando os que se sujeitam aos caprichos do Amor, adverte para a autenticidade de seus versos, cujo entendimento será tanto melhor quanto maior a experiência (porventura dolorosa) do mesmo amor.
  3. A estrutura interna bipartida também se faz notar ao nível da progressão das formas verbais: nas quadras, o tempo dominante é o pretérito perfeito do indicativo, que nos dá conta das posições assumidas por cada uma das entidades ("quis" (Fortuna); "fez" (o gosto de um suave pensamento); "escureceu-me" (Amor)); nos tercetos, a par do presente do indicativo ("obriga"; "são") e do futuro imperfeito do conjuntivo ("lerdes"; "tiverdes"), sobressaem o imperativo ("sabei") e o futuro do indicativo ("tereis"), associados à apóstrofe utilizada ("Ó vós").

  4. Algumas figuras de estilo: anástrofe (vv. 1, 4, 5, 8, 11, 12); hipérbato (vv.  5/6); metonímia (v. 5 (Amor, o Cupido, tomado pelo próprio sentimento do amor); antítese (estabelecida entre a atitude adjuvante da Fortuna, na primeira quadra, e a de oponente, por parte do Amor, na segunda); apóstrofe (v. 9).

Manuel Maria

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Tanto de meu estado me acho incerto

  1. Segundo Manuel de Faria e Sousa, em Rimas Várias de Luís de Camões (1685), este soneto de Camões é uma imitação do soneto 105 de Petrarca: Pace non trovo, e non ho da far guerra (Paz não encontro e não quadra a guerra (trad. de Esther de Lemos)). Em Luís de Camões − O Lírico, Hernâni Cidade testemunha o seguinte: «No soneto de Petrarca, sente-se um comprazimento maior no esmiuçar do tema. [...] o soneto de Camões ganha certamente em naturalidade de sentimento e porventura em fluência de expressão.»

  2. Estrutura interna bipartida:

    • 1ª parte, constituída pelas duas quadras e pelo primeiro terceto, em que o poeta, através de uma sequência de antíteses, desenvolve o tema anunciado logo no primeiro verso, dando-nos conta de todos os sintomas de que se reveste o "estado incerto" em que se encontra (V. 1), reiterado pelo "desconcerto" confessado no início da segunda quadra.
    • 2ª parte, constituída pelo último terceto, em que o poeta, de certa forma, desfaz a ambivalência de seu estado, já que, se, por um lado, confessa que desconhece a razão por que assim anda, por outro, afirma suspeitar que é só porque viu a amada.
      • Talvez seja curioso notar que, se o Poeta utiliza o pronome indefinido "alguém" no verso 12, acaba por se dirigir a um Tu, embora na forma do plural ("vos"), utilizando mesmo uma apóstrofe: "minha Senhora" (v. 14).
  3. Autores há que se inclinam para a inclusão deste soneto na esfera do platonismo. Penso ser razoável ser-se mais prudente em relação a tal inclinação, já que, tal como acontece noutros exemplos, Camões se mostra dividido entre o que é requerido pelo espírito e o que é exigido pelo corpo. Se prevalecesse, de uma forma categórica, o amor platónico, não se justificariam alguns paradoxos nem o trocadilho que o Poeta faz com o tempo cronológico e psicológico: se está uma hora sem ver a amada, parece-lhe mil anos (v. 10), e é de tal jeito, que, em mil anos que vivesse ou esperasse, não acharia uma hora de a ver, de estar com ela. É esta uma razão do corpo, que não da alma.

  4. Algumas figuras de estilo: anástrofe (vv. 1/2 (Tanto me acho incerto de meu estado, que em vivo ardor estou tremendo de frio), 4 (abarco o mundo todo), 5 (tudo quanto sinto é um desconcerto), 6 (um fogo me sai da alma, um rio, da vista), 10/11 (acho mil anos num'hora, e é de jeito que não posso achar um'hora em mil anos)); antítese (vv. 2/4; 6/8, 9, 13); apóstrofe (v. 14); hipérbole (vv. 4, 6); metáfora (vv. 2, 5, 9); paralelismo e anáfora (vv. 7/8); quiasmo (vv. 10/11).

Manuel Maria

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Busque Amor novas artes, novo engenho
  1. Assunto: O sujeito poético afirma que Amor poderá tentar novos subterfúgios para o matar, mas não poderá roubar-lhe as esperanças, uma vez que já as não tem.

  2. Estrutura interna bipartida:

    • Na 1ª parte, constituída pelas duas quadras, o poeta, depois de ter enunciado o tema do soneto na primeira, envereda por um processo reiterativo na segunda, evidenciando os seus argumentos através das antífrases, carregadas de ironia, presentes nos versos 5 e 6: não se mantém de quaisquer esperanças, porque as não tem, tal como não sente qualquer segurança, uma vez que, se a sentisse, seria perigosa, porque efémera, inconstante. Assim, despojado de qualquer esperança, não teme contrastes nem mudanças, mesmo que se sinta como náufrago no conturbado mar de Amor. A desgraça já não pode ser maior, se mais nenhum bem se espera.
    • Na 2ª parte, constituída pelos tercetos, o poeta antecipa uma espécie de contra-argumentação (embora pareça ilógica e incompreensível) que, desde logo, se antevê, uma vez que somos confrontados com o articulador adversativo Mas, seguido de um enunciado concessivo (conquanto não pode haver desgosto / Onde esperança falta): é que, apesar disso, Amor esconde um mal que mata (Busque Amor novas artes, novo engenho, / Pera matar-me (vv.1/2)) e não se vê. Não se vê e, por isso, é "um não sei quê": "um não sei quê" que não sabe onde nasce (v. 13), que não sabe como vem (v. 14), e que dói sem saber porquê (v. 14). Tudo isto, provavelmente, por estar despojado de qualquer esperança, como afirmara anteriormente.
  3. Convém notar que, na lírica camoniana, e, por vezes, num mesmo poema, nos aparece a palavra "amor" grafada de duas maneiras: com minúscula (amor) e com maiúscula (Amor). Sempre que ocorre esta última grafia, estamos perante um outro nome de Cupido, filho de Vénus, que, deste modo, surge como metonímia do sentimento do amor.

  4. Algumas figuras de estilo: anáfora (vv. 3/4, 7, 12) anástrofe (vv. 2, 12/13); imagem (v. 8); ironia (vv. 5/6); metáfora (v. 8); metonímia (v. 1 (Amor)); paradoxo (vv. 11, 13/14).

Manuel Maria

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Quando o Sol encoberto vai mostrando
  1. Assunto: Passeando por uma praia, à luz do crepúsculo, o poeta recorda a amada, a quem chama "inimiga" (v. 4).

    • A hora do crepúsculo é-nos sugerida pela expressão "Luz quieta e duvidosa" (v.2). "Quieta", talvez por os raios solares não serem tão violentos àquela hora, e "duvidosa" por ser o momento em que começa a anunciar-se a chegada da noite.

  2. Estrutura interna tripartida:

    • 1.ª parte, constituída pela primeira quadra, na qual o sujeito poético nos dá conta do assunto do soneto.

    • 2.ª parte, constituída pela segunda quadra, pelo primeiro terceto e pelo primeiro verso do segundo terceto. Nesta segunda parte, o sujeito poético, como quem executa uma sequência de disparos de uma máquina fotográfica, vai-nos mostrando o modo como recorda a sua amada. De salientar as imagens antitéticas que vai obtendo (atitude dinâmica (v. 5) / atitude estática (v. 6); alegre / cuidosa (v. 7); queda / andando (v. 8); (co)movida / segura (tranquila, serena) (v. 11); entristeceu / riu (v. 12)).

      • Nota: suspeito que os advérbios aqui e ali, que servem, de forma eloquente, este jogo de antíteses, mais do que deíticos de lugar, possam ser locuções disjuntivas com carácter temporal (ora... ora), tal como acontece no verso 8 (agora... agora).

    • 3.ª parte, constituída pelos dois últimos versos, em forma de conclusão, dando-nos conta de que é "nestes cansados pensamentos" que passa a "vida vã que sempre dura".

      • Nota: o articulador enfim não só serve para nos introduzir a conclusão, como também para nos sugerir uma certa resignação por parte do sujeito poético em relação à vida que leva longe da pessoa amada.

  3. "Ao longo de ũa praia deleitosa" (v. 3)

    • Segundo Manuel de Faria e Sousa, em Rimas Várias de Luís de Camões (1685), será uma alusão a Ceuta, local onde se encontrava quando escreveu a Elegia II, sobre o mesmo assunto, utilizando a expressão "Ao longo dũa praia saudosa".

  4. "Vou na minha inimiga imaginando" (v. 4)

    • Se, por um lado, há quem advogue que o tratamento de inimiga se deve ao sofrimento que a amada provoca no sujeito poético, por outro, há quem defenda que tal mais não passava de um mimo dirigido à amada, tal como acontece no soneto XXIII.

  5. "Aqui falando alegre, ali cuidosa" (v. 7)

    • Cuidosa é o estado de quem, pensativo, se encontra em cuidados.

  6. "Erguendo aqueles olhos, tão isentos"

    • Isentos tem o sentido de despreocupação, de indiferença.

  7. "Aqui movida um pouco, ali segura"

    • Segura, como já foi referido no ponto 2, transmite-nos uma sensação de tranquilidade, de serenidade.

  8. Algumas figuras de estilo: adjetivação (encoberto (v.1), quieta/duvidosa (v.2), deleitosa (v.3), formosa (v.6),alegre/cuidosa (v. 7), queda (v. 8), sentada (v. 9), isentos (v. 10), movida/segura (v. 11), cansados (v. 13), vã (v. 14)); anáfora (aqui: vv. 5, 7, 9, 11, 12; ali: vv. 6, 7, 9, 11, 12)  antítese (vv. 7, 8, 11, 12).

Manuel Maria

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Quem jaz no grão sepulcro, que descreve

  1. Segundo Manuel de Faria e Sousa, em Rimas Várias de Luís de Camões (1685), este soneto de Camões é um «Epitáfio à sepultura do rei D. João III, que faleceu no ano de 1557, tempo em que o poeta andava na Índia».

Manuel Maria

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Como fizeste, ó Pórcia, tal ferida?

(1) - Pórcia, filha de Catão de Útica e casada com M. Júnio Bruto, tinha já tentado suicidar-se, ferindo-se a si própria com profundo golpe, quando soube pelo marido da conspiração contra César. Quando o marido, ao perder a batalha de Filipos, se atravessou com a espada, matou-se ela também, engolindo carvões acesos.

 Cidade, Hernâni, Luís de Camões - Lírica, Círculo de Leitores, Lisboa, 1973

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De tão divino acento em voz humana

(1) Resposta ao Soneto Quem é este?... atribuído a João Lopes Leitão.

Hernâni Cidade, Luís de Camões - Lírica, Círculo de Leitores, Lisboa, 1973

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Debaixo desta pedra está metido

(1) Crê Storck que se trata de D. Fernando de Castro, filho de D. João de Castro, morto em Diu em 1546. Mas é tão obscura a adaptação dos tercetos.

Hernâni Cidade, Luís de Camões - Lírica, Círculo de Leitores, Lisboa, 1973

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Que vençais no Oriente tantos Reis

É consagrado a D. Luís de Ataíde, Vice-Rei da Índia. Teria sido o comandante da expedição de D. Sebastião a África, se não fossem as ingratidões e invejas a que o soneto se refere.

Hernâni Cidade, Luís de Camões - Lírica, Círculo de Leitores, Lisboa, 1973

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Ferido sem ter cura perecia

(1) Télefo, filho de Hércules e de Augea, foi ferido na guerra troiana por Aquiles (aquele que foi metido na água que o tornou invulnerável – lembra o Poeta, nos versos seguintes), mas sarou mediante um emplasto feito da ferrugem da lança que o golpeara. Frequentemente se alude a este mito, para designar a cousa que traz consigo o remédio do mal que pode causar.

Hernâni Cidade, Luís de Camões - Lírica, Círculo de Leitores, Lisboa, 1973

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Leda serenidade deleitosa

(1) Neste soneto, que o Dr. José Maria Rodrigues julga provar a sua tese da paixão do Poeta pela Infanta D. Maria, há reminiscências petrarquistas nos mesmos traços em que ele viu o desenho da Infanta.

Hernâni Cidade, Luís de Camões - Lírica, Círculo de Leitores, Lisboa, 1973

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Cá nesta Babilónia, donde mana
  1. O presente soneto desenvolve-se em função da simbologia que representam dois espaços: Babilónia e Sião.

    • "No plano dos símbolos, a Babilónia é a antítese da Jerusalém celeste e do Paraíso. No entanto, de acordo com a etimologia, Babilónia significa: porta do deus. Mas o deus sobre o qual se abre esta porta, embora numa determinada altura tenha sido procurado nos céus, no sentido do espírito, perverteu-se em homem e naquilo que no homem existe de mais vil, o instinto de dominação e o instinto de luxúria, erigidos em absoluto.

    Esta cidade é tão magnífica, escrevia Heródoto, que não há no mundo uma cidade que se lhe possa comparar. A sua cintura de muralhas, os seus jardins suspensos figuravam entre as sete maravilhas do mundo. Tudo foi destruído, pois tudo assentava em valores unicamente temporais. O símbolo da Babilónia não é o de um esplendor condenado pela sua beleza, mas sim o de um esplendor viciado que se condenou a si próprio ao desencaminhar o homem da sua vocação espiritual. A Babilónia simboliza o triunfo passageiro de um mundo material e sensível, que exalta apenas uma parte do homem e, por conseguinte, o desintegra."

    Jean Chevalier / Alain Gheerbrant, Dicionário dos Símbolos, Círculo de Leitores, Lisboa, 1997

    • Também conhecida por Babel, para a Babilónia foram levados os Judeus em 586, após a invasão de Jerusalém por Nabucodonosor.

    • O monte Sião, ao qual, em alguns livros do Antigo Testamento, foram sendo atribuídas as prerrogativas do Monte Sinai, é a colina sobre a qual foi erigida a cidade de Jerusalém, bem como o Templo: é a montanha "onde o Senhor habitará para sempre".

  2. Esta temática pode ser também observada no poema Sôbolos rios que vão, inspirado, segundo o Professor Hernâni Cidade, no salmo 137 (136  em algumas edições litúrgicas).

  3. Camões escreveu este soneto na Índia e, segundo o Professor Hernâni Cidade, para o poeta, Babilónia era Goa.

  4. «Cá nesta Babilónia, donde mana / Matéria a quanto mal o mundo cria»

    • Para o Poeta, depois de assistir ao comportamento avaro dos Governadores e Capitães e à sua desmesurada ambição, são os bens materiais da região e a cobiça que suscitam que são a origem de todos os males.

  5. «Cá, onde o puro Amor não tem valia, / Que a Mãe, que manda mais, tudo profana»

    • A causa principal dos erros do mundo é não existir, entre os mortais, o verdadeiro e puro amor. Assim, o amor ao próximo cede o lugar ao egoísmo, à ambição e à lascívia. A Mãe de Amor é Vénus e simboliza o amor meramente sensual, por isso profano.

  6. «Cá, onde o mal se afina, o bem se dana, / E pode mais que a honra a tirania»

    • A ambição e a cobiça dos Governadores e seus seguidores subvertem os valores, não se olhando a meios para atingir os fins. Assim, paradoxalmente, o mal sobrepõe-se ao bem, e a tirania, à honra: a obtenção da riqueza tudo justifica.

  7. «Cá, onde a errada e cega Monarquia / Cuida que um nome vão a Deus engana»

    • O "nome vão" é uma referência aos que pensavam que tudo podiam justificar com a ostentação de seus títulos.

  8. «Cá, neste labirinto, onde a Nobreza, / O Valor e o Saber pedindo vão / Às portas da Cobiça e da Vileza»

    • Estes versos sugerem uma alusão ao labirinto de Creta, do qual quem lá entrasse não saberia como sair. Assim, por mais que a política oficial do reino apontasse para um espírito de Cruzada e de propagação da Fé Cristã, o que o Poeta pôde constatar foi que a ambição e a cobiça dos que chegavam à Índia os envolvia de tal modo, que, como que enredados numa teia labiríntica, não mais sabiam como abandonar essa vida meramente mercantil, ignorando ou desprezando valores como a Nobreza, o Valor e o Saber.

  9. «Cá, neste escuro caos de confusão, / Cumprindo o curso estou da natureza»

    • Símbolo de todos os vícios, a redundância do v. 12 reitera o desalento em que o Poeta vê cumprir-se o ciclo da sua vida: envelhecendo, não só se sente perseguido pelo destino, mas também por todos os que, tendo a obrigação do contrário, não o recompensam nem pelo mérito das armas, nem pelo mérito da sua poesia.

      • Obs.: Veja-se, a propósito, uma crónica sobre o dia de Camões.

  10. «Vê se me esquecerei de ti, Sião!»

    • Neste contexto, Sião, mais do que o espaço propriamente dito da Pátria, poderá simbolizar a Pátria com que o Poeta sonhava, uma Pátria de valores e não a «Pátria, que está metida / No gosto da cobiça e na rudeza / De ua austera, apagada e vil tristeza.» (ver crónica).

  11. Algumas figuras de estilo: adjetivação (puro (v.3), errada, cega (v. 7), vão (v.8), escuro (v.12)); anáfora (: vv. 1, 3, 5, 7, 9, 12); anástrofe (v. 10); antítese (v. 5); apóstrofe (v, 14); eufemismo (v. 13); hipérbato (vv. 6; 13); paradoxo (v. 6); perífrase (v. 13).

Manuel Maria

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Salmo 137

1 Junto aos rios de Babilónia nos sentámos a chorar, recordando-nos de Sião.

2 Nos salgueiros das suas margens pendurámos as nossas harpas.

3 Os que nos levaram para ali cativos pediam-nos um cântico; e os nossos opressores, uma canção de alegria: «Cantai-nos um cântico de Sião.»

4 Como poderíamos nós cantar um cântico do Senhor, estando numa terra estranha?

5 Se me esquecer de ti, Jerusalém, fique ressequida a minha mão direita!

6 Pegue-se-me a língua ao paladar, se eu não me lembrar de ti, se não fizer de Jerusalém a minha suprema alegria!

7 Lembra-te, Senhor, do que fizeram os filhos de Edom, no dia de Jerusalém, quando gritavam: «Arrasai-a! Arrasai-a até aos alicerces!»

8 Cidade da Babilónia devastadora, feliz de quem te retribuir com o mesmo mal que nos fizeste!

9 Feliz de quem agarrar nas tuas crianças e as esmagar contra as rochas!

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